sábado, 12 de março de 2022

EREWHON REVISITADA!


 

Nos primeiros dias, tão logo elaborei o tema do meu sermão, encomendei na biblioteca um exemplar de Contos da Era do Jazz, do Scott Fitzgerald, onde constava a primorosa e singular novela curta, O Estranho Caso de Benjamin Button, sobre um indivíduo que nasce idoso e vai rejuvenescendo até findar nos panos de um bebê, no colo de uma ama de leite. Menos prosaico e mais esotérico, encomendei também O Timeu, onde Platão explana a visão grega do universo e marquei as páginas onde o autor narra a fábula do universo original, quando o demiurgo com suas próprias mãos fazia o universo girar no bom sentido, o tempo passando ao contrário, como nessas modernas especulações da Cosmologia (a reversibilidade da Flecha do Tempo, os deslocamentos em velocidades superiores à velocidade da luz, estiramento do tempo em buracos negros e outras suposições admiráveis) e o crime bárbaro dos Atridas que fizera o demiurgo largar de mão o universo, deixando-o girar no sentido insano que conhecemos hoje, onde o mundo caminha para o declínio e degradação. Era tudo que podia contar visto minha erudição incipiente e as limitações da biblioteca do Presídio. Enviei os livros para o meu cliente, não sem antes fac-similar suas páginas e reler tais textos que comoveram meus anos de Faculdade. Benício iria ser enforcado em questão de dias e, por ter perdido desastrosamente a causa, eu sentia-me sentia na imperiosa obrigação de atenuar o pânico em que ele se encontrava diante da lâmina fria e nada conjectural que o aguardava! Na véspera do enforcamento, ao seu lado no pátio da prisão, caminhamos um pouco em profundo silêncio. Eu media as palavras:

 _ Leu os dois textos que lhe enviei?

 _Sim

_ Saiba que estes dois pensadores, um na Literatura e outro na Filosofia, tiveram um deslumbre, um insight de um aspecto até hoje não cogitado pela imaginação humana. Não ousaria lhe contar, isso que descobri por outros e impublicáveis meios, se não fosse este um segredo que você levará contigo para o túmulo!

 Ser direto com ele, fazendo alusão da sua morte iminente, era parte da minha estratégia em lhe convencer, impressionando-o com a serenidade que desejava lhe compartilhar.

_ O tempo, meu caro, verdadeiramente passa ao contrário do que experimentamos. Esse é o maior e mais profundo segredo do universo! Vamos primeiro analisar a faculdade com o qual experimentamos o passar do tempo, a nossa vontade. Veja como ela opera: primeiro vem o futuro iminente, aquilo que vamos fazer ou iremos evitar em breve, digamos, tenho sede e vou beber água. Em seguida, vem o passado: lembro-me onde fica o cântaro ou onde coloquei a garrafa (as condições de possibilidade para que eu possa agir), finamente vem o presente, o momento final onde eu bebo a água e sacio minha sede. Parece trivial, mas a integridade da nossa existência depende totalmente desse esquema e rompê-lo significa perdê-la, enlouquecer! Veja o exemplo de Napoleão: Primeiro ele quer invadir a Rússia (futuro), em seguida vai buscar nos seus feitos do passado as condições para isso, reúne seus exércitos e, por fim, parte em campanha! Anos depois, ele quer invadir a Europa a partir do exílio (novamente o futuro se apresenta), mas quando ele vai ao passado, este está destruído pela derrota de Waterloo, o tempo sai dos eixos e ele nada pode faze mais a não ser enlouquecer, delirar sobre falsos fundamentos. Outro exemplo encontramos em Hamlet quando a sucessão do trono se rompe, seu pai é assassinado e o tio dele assume o Reino da Dinamarca no seu lugar! Novamente o tempo sai do seu eixo funcional no contexto da existência humana. Hamlet enlouquece! Vejamos agora como a consciência apreende o tempo: mais precisa ilustração do que seja a consciência humana, e de como ela opera essa apreensão do tempo, é a imagem de um espelho. O espelho é, com perdão do trocadilho, a imagem mais fiel do que seja a consciência! E o que faz o espelho quando reflete uma imagem qualquer? INVERTE O SENTIDO DOS OBJETOS MUDA A ESQUERDA EM DIREITA! Também inverte a flecha do tempo, a nossa consciência! Pensamos assim, ao refletirmos sobre a ordem do tempo, e julgamos ser o passado que veio primeiro, depois o presente e por fim o futuro que só se torna realidade quando as outras duas dimensões já aconteceram! Resumindo: quando agimos, sabemos como o tempo se orienta, mas quando refletimos sobre ele a consciência nos ilude! À semelhança do cogito agostiniano: "quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei, mas se me perguntam"... De fato, o tempo escoa do futuro já existente para o passado ainda por vir-a-ser e nesse rio nós navegamos de costas, subindo a corrente do rio. Vemos a nossa frente o que pensamos ser o futuro iminente.previsível, mas é justamente o que se chamaria de passado se tivéssemos o poder de registrá-lo. Olhamos para trás e vemos o nosso futuro inteiro desenhado e o confundimos com o passado que não volta mais. Estamos a cada segundo que passa esquecendo o que já vivemos e que pensamos ser o nosso futuro obscuro. Amanhã eu serei um dia mais novo do que sou hoje, outubro sucede a novembro, minha juventude em breve devolverá o viço aos meus braços cansados! Estamos todos rejuvenescendo! É preciso ser tremendamente contra-intuitivo para apreender isso. Só iniciados o consegue, embora quase nenhum consiga explicar pois a linguagem também faz parte dessa ilusão, o que explicaria, por falência múltipla, os cogitos agostinianos e o meu. Aparentemente estou explicando-lhe essa doutrina, mas na verdade, estou desconstruindo-a, movendo-me na direção de um tempo onde ela ainda não lhe foi revelada. Quando ela não for mais conhecida, também não saberemos que existiu um dia, ela irá então fazer parte de um negro passado sem absolutamente memória nenhuma, perdida nisso que equivocadamente chamamos de futuro, onde a nossa imaginação se assusta com fantasmas irreais, tendo breves recordações (que chamamos de premonições e profecias - nossa memória, de fato), supondo coisas que jamais poderão acontecer pois que já aconteceram! Não, jamais seremos mais velhos do que somos agora, pois já o fomos e o tempo apagou. Não haverá um momento posterior a esse onde você venha saber de cor o que ouviu hoje, pois isso será – está sendo – vagarosamente perdido como um castelo em ruínas se desfazendo em areia. Tudo o que você hoje lembra de ter se repetido infinitas vezes, seu tédio e seu enfado, é uma espécie de cansaço deste futuro inexorável, que lentamente empalidece e alivia o seu fardo à medida em que nele penetramos e o apagamos (como dito acima: o que nos falta de verdadeira memória, sobra-nos de vidência). Seu dente molar renascerá, seus cabelos escurecerão como a sombra da tarde, e apenas a sua consciência infeliz, infeliz por inverter o ritmo da passagem, é que não pode entender!

 Com a serenidade estoica de quem sabe que vai morrer, Benício me contestou:

 _ Mas isso não passa de uma bela ficção! Amanhã vou me lembrar dessa conversa e saber que ela faz parte do meu passado! Que o mundo flui do passado para o futuro e que a cada hora que passa mais me aproximo da minha morte!

 _ Não esteja tão certo disso, pois a profunda convicção que você apresenta agora nasce apenas do hábito que cimenta as percepções da nossa consciência dando a elas essa organização sucessória. Na experiência mesmo, nunca vemos a ideia de algo ser causa de outra. Vemos uma bola de bilhar se mover, bater na outra, parar, e essa outra então se mover. Vemos as duas bolas, mas não vemos a ideia de causa ou de efeito, elas são apenas inferidas por nossa mente. Vemos o relâmpago e o trovão, o fogo e a fumaça, o grito e o eco, o vento e os lençóis agitados no varal... Mas não vemos a ideia de causa ou efeito.....

 _Aonde você quer chegar?

 _Assim como não vemos a causa e efeito, também não vemos a sucessão dos fenômenos, sendo apenas a nossa consciência que organiza o fluxo e infere essa sucessão, assim como inferimos causa e efeito! Não são dados da experiência! São atividades mentais! Voltemos agora a sua afirmação: amanhã eu me lembrarei dessa conversa como um fato passado! Amanhã será, na verdade física, o dia anterior a sua condenação e esta nossa conversa será uma dimensão do tempo se afastando no abismo de um futuro profundamente sem registro na memória. Lembrar-se dela lhe fará um visionário paranormal, sem respaldo científico. Seu futuro seguirá desenhado por aquilo que vc chama de memória e vc vivendo a vida eternamente iludido, crendo estar vindo para este momento ora presente, enquanto desliza rumo à infância e ao desaparecimento no útero da sua mãe!

 _ Uma vez fiz regressão, uma técnica semi-hipnótica que nos leva a voltar ao passado de modo vívido e emotivo...

_ Ótimo exemplo! Esta regressão é justamente o alinhamento normal da nossa consciência com o fluxo real do tempo! Vemos verdadeiramente neste momento o nosso futuro que iremos viver um dia, mas o momento em que acordamos desta meditação hipnótica é justamente o momento em que estamos começando a regressão, julgando ser um passado iminente aquilo que está na iminência de acontecer! Esta inversão independe do tamanho do intervalo considerado: segundos, meses décadas, tudo passa invertido pela consciência como pássaros por um espelho! Para clarear um pouco mais: não temos memória, exceto alguns raros lampejos, temos sim, uma nunca antes definida faculdade de premonição que nos faz ver todo o nosso futuro. Isso que chamamos de memória é o futuro para o qual nos dirigimos. E assim como eventualmente temos pressentimentos e visões do que pensamos ser o nosso futuro desconhecido (na verdade trata-se do que passou e para qual não temos faculdade nenhuma para registrar), tal percepção nada mais é do que trapos de míseras e verdadeiras memórias. Raramente me ocorre rememorar o ancião que fui, a viuvez que suportei, ou o fim dessa conversa que hora vou lentamente engolindo as palavras! Em compensação vejo todo o meu futuro nas cenas que deslumbro nisso que equivocadamente chamamos de memória!

 _Seria como um disco fonográfico tocado ao contrário a verdadeira realidade!?

 _ Sim. A Consciência humana seria a agulha que percorre os sulcos do vinil dando um sentido ao fluxo de sons. Relembrando apenas que o som horrível dessa vida que levamos se deve apenas ao fato de estar a agulha justamente tocando ao contrário! Mas precisaríamos de outro capítulo já ditado por mim e apagado no “futuro” sombrio para explicar porque é assim. Tente acreditar no que digo. Mas saiba que não é possível entender isso sem um tremendo esforço de conjuração da consciência, sem um exercício de contra-intuição exasperante!...

  P.S. A continuação dessa tese e desta história - que consta da continuação que estou escrevendo para a obra do Samuel Butler, de nome Erewhon, e que batizarei de Erewhon revisitada - já lhes fora revelada e perdida para sempre no abismo desta dimensão que vocês chamam de futuro e de onde ainda esperam ler. Jamais lerão, exceto se, em um lapso profundo de vidência paranormal, consigam vislumbrar o que já existiu, tipo a terceira guerra mundial, o apagar do sol ou as viagens espaciais para além do sistema solar, coisas já transcorridas que jamais se repetirão, exceto na nossa imaginação a cada dia mais pobre destas viagens futuristas que vamos perdendo ao mergulhar nas águas do passado, literalmente, ao fluir de costas rumo ao passado a todo instante mais real e presente.











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