segunda-feira, 14 de maio de 2018

RERUM NATURA








Rodrigo citava-me nas cartas uma passagem do “Fausto” de Goethe onde um homúnculo diz ao alquimista que o criou: 
vem, abraça-me em teu seio, mas devagar pois a redoma pode se quebrar; o que é artificial exige espaços fechados enquanto ao natural mal lhe basta o universo.” Isto me fez lembrar com saudades o nosso curso de metafísica onde, de todas as cavilações sobre a natureza, a mais curiosa fora-nos transmitida por um triste teólogo, nosso colega de quarto em uma longa noite no seminário. Depois de voltar de férias no campo em casa dos pais, o jovem predicador tinha o espírito assaz agitado para conciliar o sono com as horas canônicas que badalavam no frio pátio e, compartilhando no beliche o nosso único cigarro, sua voz murmurava: 
- Era uma casa velha, Rodrigo, erguida pelos meus bisavós e quase tão arruinada quanto os ossos deles lá no túmulo. Eu dormia na grande sala cujas janelas abertas ampliavam a solidão sepulcral. A noite era fantástica com luar vigoroso, aves noturnas e ventos uivantes que sugeriam um grande romance. Eu sonhava escrever um livro e protelava o sono à espera de uma inspiração. Uma tempestade com nuvens negras orladas de ouro, após inofensivos relâmpagos, fugia no horizonte entre as montanhas, resolvida em vapores e murmurando o seu desgosto. Concentrei toda a minha atenção no bosque que circundava a casa e no fundo escuro da minha consciência, no bosque da minha alma, um pensamento luminoso fora se destacando. Intuí a premente vitalidade dos galhos e das ervas sob o solo, o desabrochar imperioso das flores, a lenta e voluptuosa conquista da natureza sobre os despojos da obra humana. Minha casa era a imagem adequada dessa fúria dissimulada. As raízes de um velho abacateiro fendia o piso da varanda, trepadeiras cobriam parte do telhado e os criados se queixavam de tantas folhas e gravetos ao varrer os cômodos da casa. - “A violência caminha com pés de pomba”, dizia F. Nietzsche. - Senti a natureza como uma ameaça, uma pressão vital, uma força única disseminada nas infinitas modalidades de um bosque noturno. Acredito ter intuído a “Natura Naturante”, o “Elan Vital”, as forças cósmicas e tudo o que podemos atribuir à vida enquanto potência expansiva. Paralela à esta sensação, uma outra, interna, apresentava-se como a força que une todas as nossas partículas e agenciando outras mais para formar o indivíduo que somos. Esta força que deseja, absorve e se expande em graus crescentes de consistência Espinosa a chamava de “Conatus” e aflorou magnificamente em minha consciência em simultaneidade com a intuição do bosque vivo. Senti esta força no estômago e assim como temi que o bosque invadisse a casa dos meus avós, temi também que esta força implodisse a organização do meu corpo reduzindo-me a um cadáver compósito com flores exóticas brotando nos despojos. Meu corpo e a natureza compunham uma desconhecida unidade que assustava-me. Corri à geladeira e ocupei o meu estômago com bolos e limonada conjurando a temida autofagia e acredito que na composição destes fenômenos citados eu tenha confusamente experenciado e conhecido a minha alma embora um céptico possa julgá-las como meras alucinações de um histérico esfomeado... 
Rodrigo não disse nada em resposta mas anotava, como de costume, tudo o que o nosso colega narrava. Depois, vendo a inutilidade deste apontamento para os seus sermões dominicais, lançou-os fora pela janela junto à outros papéis amassados. Eu, que sofro de uma crônica falta de assunto, corri até a lata de lixo como um cão faminto e dissimulo com eles o ócio das minhas tardes.  
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...No sítio onde moro e onde registro esses inúteis apontamentos há um pequeno ribeiro cujo leito sobre pedras entoa um murmúrio delirante e fora sentado sobre uma delas que me lembrei de um fabuloso livro de Jack Kerouac intitulado “O Viajante Solitário”. Neste livro de cunho biográfico narra o autor a sua passagem por um sítio de um amigo na Califórnia onde ele costumava ouvir os sons de uma fonte registrando a ininteligível poesia, a glossolalia que emanava do choque da água entre as pedras. Quis eu fazer o mesmo e concentrei minha atenção no eflúvio de notas disparatadas que a água destilava. A diferença entre a voz humana articulada e o som das corredeiras é tão acentuada que jamais esperaríamos um verso ou sequer uma palavra das forças livres da natureza. Usar de analogias para adivinhar o que a fonte estaria dizendo tornaria-me um trânsfuga do pensamento e da poesia. Procurei então esvaziar a minha mente de todo e qualquer pensamento à maneira de um monge Zen. Aos poucos o vazio fora se apoderando de mim e o meu espírito se confundia com o fluxo da água corrente. Súbito, sem nenhum esforço aparente, um verso inteiro ressoou dentro de mim como uma voz alienígena, como se houvesse um “daimon” feito de pedra e água escondido sob a cascata: 
...“Lave a minha alma, doce água,/ 
Leve para longe o lodo vil,/
Livre quero estar de toda mágoa,/
Limpo como um lírio sobre o rio...” 
Abri os olhos assustado. Não havia ninguém perto de mim. Sobre o espelho de água pendia-se um lírio virginal. Seria a voz do inconsciente ou alguma faculdade desconhecida se expressando? Não acredito. Inconsciente é invenção de psicanalistas; faculdade, de filósofos kantianos. Dois conceitos impotentes em explicar tão bela mistagogia. Voltei para casa certo de ter ouvido algum espírito sagrado, quem sabe... a voz do Espírito Santo!

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