quinta-feira, 17 de maio de 2018

O DIA EM QUE EU QUASE MATEI UM VEADO!




Quase todo mundo viveu, em sua juventude, um período de felicidade e júbilo profundos do qual se esforça em nunca se lembrar, por conta das saudades e do temor que momentos tão intensos assim jamais voltem a se repetir. 
Como alguém que volta à antiga casa dos seus pais, fechada por anos e teme entrar pela porta da frente, preferindo ir pelos fundos, pular a janela da cozinha, apanhar algo na gaveta que fosse o motivo da visita, e sair sem encarar as lembranças dormentes no andar de cima, assim também podemos encarar essas fases da vida por um viés menor, um evento cômico ou comezinho, sem encarar o fantasma da felicidade perdida. É o que faço agora. O lugar desta minha lua-de-mel com a vida foi em um balneário do Rio de Janeiro, chamado Pedra de Guaratiba, próximo da Restinga da Marambaia e a época, meados dos anos noventa do século passado. O que era pra ser uma simples visita a uma amiga que morava lá e a seu restaurante de atrativos frutos do mar, tornou-se um lugar encantado quando conheci uma amiga desta amiga que morava por lá e nos apaixonamos perdidamente. Omitirei seu nome (pois que ela lê meus textos que publico no Facebook e talvez não queira ser reconhecida como protagonista de um texto tão debochado, mesmo sabendo a razão da minha desonestidade sentimental) e a chamarei de Olívia. Ela era casada, em crise com seu marido crapuloso e que a chantageava de mil maneiras imagináveis. Mesmo assim, como sinal de superioridade do nosso amor e de nossa altivez, não nos entregamos completamente a este amor, pois acreditávamos na moral e nos laços sagrados do casamento, mesmo sendo o dela uma farsa por conta do marido cafajeste. Iríamos esperar tudo se resolver, e esperávamos como dois adolescentes, namorando na praia, passeando de bicicleta, tomando sorvete, vendo filmes em fitas de videocassete e ardendo de desejos. Como ela se aliviava destes desejos, não faço ideia, mas eu – e aqui confesso ser algo parecido com o marido cafajeste de Olívia – saciava meu ardor, nunca o meu amor, diga-se em minha defesa, nas carnes da minha amiga dona do restaurante em cuja casa eu me hospedava, mulher solteira, independente e de quem sempre escondi meu amor por Olívia, amor que, por sinal, ela nunca me cobrava. Pode parecer muito estranha essa divisão que vivi, amando platonicamente uma garota e copulando quase sadicamente com outra, ao mesmo tempo, mas quem me julgar um cartesiano, feito de corpo e alma profundamente separados, estará mais próximo da verdade do que aquele que me tomar por um cafajeste, mas ambos concordarão que, fosse qual fosse a explicação, eu estava vivendo na plenitude afetiva, ao consumar essa condição. Lembro-me das noites em que eu voltava da casa de Olívia – seu marido vivia viajando com as suas alunas na faculdade que ele as seduzia – e voltava para os braços da minha amante, andando pelos becos e ruelas da colônia de pescadores, entre o mar e as casas de veraneio, vendo a lua imponente sobre as ondas e barcos de toda cor recolhidos nas amarras. Parecia flutuar em um quadro de Guignard, em marinhas vivas de Pancetti (nessa época eu frequentava também o atelier da pintora Mirtila, cujo sobrenome esqueci, e cuja casa servia de alcova para meu romance com Olívia {suas aulas de pintura que ela ministrava-me ajudaram a fixar na mesma tela da memória a luminosidade do verão com as tonalidades ardentes do amor}). Muitas vezes me banhei nas águas escuras do lugar para refrescar os dois tipos de calores que consumiam o meu corpo e a minha alma. A dona do Restaurante Criterium - aos poucos eu vou revelando pistas para meus biógrafos imaginários -, possuía um criado homossexual, um servo que cuidava de seu toucador e seus bibelôs e que se antipatizou comigo assim que me viu de calção pela casa, dando palpite em tudo e dando tapas na bunda da minha amante! Eu mandava-lhe comprar cigarros para mim e, quando ele voltava muito tempo atrasado, eu fazia minha amante castigá-lo, privando-o de frequentar a cozinha do restaurante, pois o sonho dele era ser um grande cozinheiro e já ensaiava suas receitas mirabolantes quando lhe era permitido. Seu nome era Almir e sua histeria era algo tão repugnante que me recuso descrevê-la aqui. Certa noite, ao lado de Olívia na casa de Mirtila, assisti ao filme de Jean Luc Godard, “Salve-se Quem Puder, A Vida!” e, enquanto ela se dobrava de rir com uma cena onde um homem persegue Godard pelas ruas de Paris gritando: _ SEU GODARD! SEU GODARD! EU QUERO LHE DAR A BUNDA, SEU GODARD!, Eu ficava imaginando o constrangimento que eu teria se um dia esse Almir viesse a fazer uma cena semelhante comigo. E ele quase o fez. Uma noite, o restaurante lotado, eu fui para a cozinha ajudar nos preparativos. O Almir também. Por um motivo fútil que agora não me recordo mais, eu o repreendi severamente, acho que fora por algum excesso dele nos temperos exóticos que ele importava da Índia. Eu estava com uma faca na mão, uma peixeira. O Almir se apavorou e saiu correndo pelas mesas lotadas do Restaurante a gritar ensandecido:
_ O HOMEM RETOU! O HOMEM RETOU! O HOMEM RETOU!
Com muita dificuldade, a dona do restaurante e uma sócia conseguiram acalmá-lo e o levaram para casa onde ele ficou emburrado, proibido de voltar. Eu esperei o ambiente voltar ao azáfama natural, terminei de compor os pratos e, assim que o movimento dos fregueses diminuiu, eu apanhei a mesma faca e fui para casa tomar uma providência quanto ao chuparino Almir. Entrei no seu quarto chutando a porta. Ele via TV e ficou lívido ao ver-me de faca na mão. Apanhei-o pelo pescoço e o espremi contra a parede. Fixei a ponta da peixeira na sua jugular e lhe disse:
_ Escute bem, seu palhaço! Nunca mais saia gritando em público que eu me retei perto de você, pois, lá na Bahia de onde venho, e em muitos lugares também, se retar significa ter ereção! Vai ficar parecendo para algum malicioso que ouvir isso que eu estou sentindo atração por você. Para evitar que isso aconteça de novo, estou pensando seriamente em lhe sangrar e jogar suas tripas no mar essa noite!
Apertei com força a ponta da faca em sua jugular. Ele tremeu de pavor e tentou uma reação qualquer que lhe desse tempo de se safar. Sabia que desespero nestas horas só piora a situação. Com sua voz falsete de lambisgoia dourada de Shangri-lá, ele comentou com surpreendente e fingida resignação:
_ Então eu vou morrer? Vou mesmo encontrar-me com a Divindade?
_ Vai sim! Comece a orar!
Ele então mudou subitamente o tom de voz, encheu os pulmões de ar e com um timbre profundamente natural e viril, que nunca antes havia revelado possuir, deu-me um forte tapa no ombro afastando a faca, dizendo-me:
_ VOCÊ VAI MATAR NINGUÉM, SEU CASSIANO! VOCÊ É UM CARA FANTÁSTICO, SEU PORRA! UM CARA QUE TODO MUNDO ADMIRA!
VOCÊ LÁ PRECISA DISSO, UM CARA QUE TODA A SOCIEDADE CONSIDERA UM GÊNIO? VAMOS ALI TOMAR UM UÍSQUE DA PATROA, PORRA!
E saiu do quarto resoluto, sem rebolar, dando-me tempo e oportunidade em abaixar a faca e me dobrar no riso com tamanha revelação. Até hoje não sei dizer se ele era um veado fingindo ser homem para não morrer nas mãos de um homofóbico, ou se era um homem que por alguma razão estapafúrdia se passava por um gay histérico. De qualquer modo, tão perfeita fora a sua transmutação que eu atribuo a ela, e não ao fato de estar apaixonado na época por uma linda mulher, o fato de não ter sangrado aquela sinistra aberração! Permita-me assim, usar o adágio shakespeariano, Tudo Começa Bem Quando Bem Acaba, a guisa de conclusão, pois que toda história de amor, mesmo quando dissimulada, possui no Cisne de Avon a sua secreta inspiração.


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