domingo, 15 de maio de 2016

O ANJO BORRALHEIRO E O GALO PRETO DE TRANCHINXIN!



Delmiro Peixoto das Dores, vulgo Tranchinxin, gozava de grande prestígio na periferia de Itambé-Ba, nos idos dos anos setenta, como curandeiro e ervateiro, mas este prestígio era sustentado pelo encanto de um enorme galo preto que ele criava no quintal de sua casa, encanto esse que, apesar de não ser de ordem medicinal, emulava sua magia para as garrafadas e orações que ele salmodiava por qualquer moeda que tilintasse no bolso dos doentes. 

O encanto do galo preto era o seguinte: Sempre que havia um furto ou um crime na cidade, e houvesse um suspeito, o expedito delegado Crispim Corcoran o levava até a casa do ervateiro para uma insólita acareação com o galo preto. Tranchinxin soltava o galo dentro de um quarto nos fundos da casa, sem janelas e apenas com a luz vaga e irradiada pelas frestas do telhado. Em seguida o Delegado soltava lá dentro o suspeito. O curandeiro pedia que este alisasse bastante o galo. Com as duas mãos. O galo era manso, garantia ele, e a ave, uma vez alisada, iria informar ao delegado se o suspeito era ou não culpado do crime. Após vinte a trinta minutos lá dentro, o suspeito saía do quarto, conversava um pouco com o curandeiro que, imediatamente, dava o veredicto. 

O Delegado Crispim só torturava o cabra para arrancar a confissão caso este fosse condenado pelo galo, caso contrário, soltava o coitado ali mesmo, absolutamente seguro da sua inocência! Pesava na balança da sua justiça o fato dele já haver torturado dezenas de acusados nessa sorumbática ordália e todos terem confessados, indicando o lugar onde o cadáver ou a muamba estava escondida! Os vizinhos faziam fila para ver o místico galo em seus raros banhos de sol e não poucos pediam para serem fotografados ao lado do garboso galináceo, com a crista escura e imensa caída sobre o bico, como um playboy africano cujas mechas alisadas no ferro quente pendessem sobre as ventas triunfais de "boipisô". Meu tio mesmo, Paulo Roberto, possuía um monóculo - pequena caixa de acrílico com uma lente em uma ponta e um micro-filme revelado dentro - onde podíamos vê-lo segurando o animal que lhe tomava todo o tronco, contrastando com sua roupa branca de farmacêutico.
 
Um dia, vindo não se sabe de onde, fugido de uma dessas cidades pequenas ao redor, surgiu na porta de Tranchinxin um menino alvo e de olhos esverdeados, usando um short de jogador de futebol, provavelmente roubado de alguma displicente lavadeira na beira do rio e um sorriso de anjo no rosto. Mal o curandeiro abriu a porta para atender, o menino foi logo lhe dizendo:
 
_ Seu Delmiro! Soube que o senhor é um homem cheio de artes e magia! Me ensina a voar! Não tenho dinheiro, mas trabalho pro senhor e faço o que o senhor quiser se o senhor me ensinar a voar! Voar feito um passarinho por esse mundão de Deus!

E dizendo assim, elevava os magros e encardidos braços para o céu como se a súplica fosse direcionada a seres mais etéreos e não a um pobre charlatão do interior. Delmiro olhou o menino de cima a baixo. Estava muito necessitado de um ajudante nos afazeres atribulados da sua profissão. Não hesitou em por o menino pra dentro e fechar o portão para evitar os curiosos.

_ Vou lhe ensinar a voar! Voar feito uma pomba branca por esse mundão sem fim, mas antes, você vai ter que trabalhar dois anos pra mim!

O garoto, cujo nome disse ser Wanderley, mas que logo o povo de Itambé o abreviou para Wandeco, caiu de joelhos em sincero agradecimento. No outro dia já estava trabalhando feito uma mula: lavava a casa e as roupas, cuidava das beberagens, varria o quintal, alimentava o galo preto, com quem logo criou uma profunda simpatia. Nas poucas horas vagas que lhe sobrava, subia ao telhado, deitava-se sobre as tábuas que cobriam o tanque d'água e ficava deslumbrado a fitar o céu, vendo quem sabe, quais estradas secretas e invisíveis cruzavam a imensidão azul, quais os portões se abriam para os castelos de nuvens, a se perder, voando com certeza, por entre montanhas de nuvens brancas encavaladas sobre montanhas de terra escura nos horizontes da pequena cidade de Itambé. Suas brincadeiras com as outras crianças na rua tinham sempre algo a ver com voar, empinar pipas, fazer aviões de papel e, quando algum solitário e longínquo avião cruzava os céus, ele era o primeiro a sentir, correndo para o algum lugar elevado onde pudesse focar o pequeno pássaro preto a cruzar o infinito. 

Enquanto isso, o tempo passava e os negócios de Tranchinchin prosperavam, com as garrafas cada vez mais limpas, os rótulos milimetricamente colados, as ervas todas bem tratadas e enfiadas nos vasilhames como se fossem caravelas de brinquedo ou arranjos florais. O velho ervateiro esperava que o seu pupilo desistisse daquela ideia bizarra de voar feito um pássaro e se contentasse com coisas mais prosaicas e concretas, uma bicicleta, um cavalo, uma boa espingarda de ar comprimido - o sonho de todo garoto da época - ou mesmo que amadurecesse a tempo de entender que não havia nada de mágico nesse mundo, se tornasse um homem triste e sem sonhos nenhum e que começasse a trabalhar para ganhar dinheiro, pois isso sim, era melhor do que voar, nadar, saltar ou o que quer que fosse possível a quem vivesse por tão pouco tempo aqui nessa terra ingrata; Mas Wandeco não permitia sequer tocar no assunto. A força do seu olhar quando abordado sobre essa promessa era tão grande, havia tanta esperança e fantasia e alucinação na maneira reverente como ele idolatrava o homem que lhe havia prometido tal façanha, que Tranchinchin findava por se sentir elevado e sublime - coisas quase incompatíveis a quem é lavado e escovado na vigarice - e se sentisse como um excelso Dédalo macumbeiro arrastado pelo adejar farfalhante das asas invisíveis de um Ícaro sertanejo.
 
O dia enfim chegou. Antes da aurora de dedos róseos puxar fora a cortina da noite, na data em que se completava dois anos de profunda servidão do jovem aprendiz, lá estava Wandeco, com seu velho calção puído, sentado em um tamborete na porta do quarto do seu patrão. Mesmo sem abri-la, Tranchixin sentiu a presença do garoto do outro lado. Havia mesmo, se esta fosse uma história de terror e não um relato jornalístico de um fato real, um entourage cada dia maior de mistérios em torno dessa criatura que um dia, do nada, à soleira do seu casebre veio a sentar praça. Sonhos frequentes voando, coisas que soi ser raras, agora eram semanais; saramandaias de asas no telhado durante as noites insones e intermináveis, livusias no quintal que faziam o galo preto piar como se em triste siriema do mato cipó transformado, arrepios... O fato era que Tranchinxin estava mais consumindo do que vendendo o láudano opiáceo que costumava misturar às beberagens que fabricava. Só não se encafifava muito quanto ao que realmente deveria fazer, pois, desde o dia em que sua limitada e rasteira imaginação concebera uma saída, ele a aceitou como a única possível para se livrar da promessa impossível. Levantou-se até animado ao descobrir que estava com bastante coragem em pô-la em prática. Passou pelo garoto com um resmungo, tomou um gole de café frio na cozinha, apanhou a faca e saiu para cortar as asas do galo preto. Feito o serviço, voltou de lá com as duas asas do animal que, quando abertas, iam quase que de uma ponta a outra dos braços de um adolescente mirrado como o era Wanderlei. Pediu ao garoto que tirasse a camisa e colou as asas do animal nas suas ossudas costas com várias voltas de fita crepe. Em seguida pediu ao garoto que subisse no topo de um coqueiro, no lado externo do seu quintal, onde não havia mais casas nem ninguém acordado tão cedo para ver a cena. Conferiu satisfeito que o lugar embaixo era cheio de pedras pontiagudas e que o corpo franzino do garoto não resistiria ao choque com elas. Seu coração ficou do tamanho de uma ervilha, mas a determinação vinha da alma, alma completamente às trevas já consagrada. Quando Wanderlei chegou lá no alto ele pediu que o menino repetisse em voz alta as palavras de encantamento:

_ CUMPADI MAIS RUIM!
_ CUMPADI MAIS RUIM! - Respondia o garoto cheio de entusiasmo e fantasia.
_ SE MENJI DIDIAR UN VALI DI BARCON!
_ SE MENJI DIDIAR UN VALI DI BARCON!
_ CARAFAUM, CARAFAUM, UNGLÊ UNGLÊ!
_ CARAFAUM, CARAFAUM, UNGLÊ UNGLÊ! – Gritava o pupilo lá do alto!
_ ENXI VELA MARMEJ!
_ ENXI VELA MARMEJ!
_ Agora pula, meu filho! PULA PRA VOCÊ VOAR FEITO UM CURIANGO! - Tranchixin reuniu forças pra dar essa ordem com motivação e elastério, fechando os olhos para não ver o baque.

O que ele ouviu, porém, longe de um ruído seco sobre as pedras, foi um grito de entusiasmo e euforia! Olhou para o alto e viu Wandeco voando com a graça e o encanto de um anjo egrégio e sarará. Planava, fazia curvas fechadas e mergulhava até perto do chão quando então adejava sorrindo e ébrio de felicidade! Uma visão celestial que parecia arrebatar a alma de quem a visse, levando-a no seu transporte pelos ares, embora não fora enlevo o que a visão do menino sarará com asas pretas provocou em Tranchinxin, mas sim uma indignação e um temor inauditos. Correu aos tropeços até o seu quarto, apanhou em cima do guarda-roupas uma espingarda de caça,roubada não se sabe onde, e carregou-a com uma luzidia rolimã de aço. Voltou para o quintal e procurou pelo querubim que dava voltas elípticas em torno do coqueiro, como se acelerasse para uma volta final onde abriria uma hipérbole o levando a um ponto de fuga quando então desapareceria para sempre. Mirou com irrespirável precisão e sapecou o pipoco seco e sibilante. A rolimã entrou pelos rins do anjo e saiu pelo pescoço em jatos de um sangue vermelho dourado jamais visto outrora por aquelas ou outras bandas e que salpicou de gotas toda a rua, o calçamento de pedra e as paredes da Rua dos Artistas, onde a cena se passou. Ao invés de cair feito um urubu abatido, e contrariando as leis da física, o corpo de wandeco veio descendo suavemente, em círculos elegantes, feito uma pluma de travesseiro, até lentamente tocar o solo quando ainda se ouvia o eco do tiro mortal retumbar nos contrafortes do Morro de Dona Mira. Nessa hora eu estava jogando gude na rua da Igreja Batista com os filhos do Pastor Ismaelson - era costume nosso filar a primeira aula para uma partidinha esperta -, quando ouvimos os gritos de alguém anunciando:

_ Mataram Wanderlei! TRANCHINCHIN MATOU WANDECO!

Corremos todos ao local. Chegamos a tempo de ver o caro do delegado estacionar e Tranchinchin abatido, com a arma ainda quente nas mãos, se entregando com laivos de uma dignidade nunca existente, ao respeitável homem da lei. Ouvimos parte da sua argumentação, pois tínhamos a estatura compatível para passar por baixo das pernas da multidão em volta e ver acena de frente:

_ Coisa medonha - Argumentava o assassino -, uma assombração logo de manhã. Esse moleque nunca foi numa igreja, nunca pronunciou o nome de Nosso Senhor Jesus Cristo... De adonde ele iria voar se não fosse arte do coisa-ruim? Esse moleque tinha parte com o capiroto e vivendo dentro de minha casa! Arrependo-me não! Qualquer um faria o mesmo!

Soubemos muitos anos depois, que, ao ser acusado pelo delegado como responsável pelo bruxedo de fazer o menino voar, pois que ele mesmo, Crispim Corcoran, era testemunha das adivinhações do galo preto dentro do quarto escuro, Tranchinchin confessara:

_ Não sou nem nunca fui bruxo, Dr Crispim. As curas eram das ervas que tinham tal poder e a adivinhação do galo... Bem, eu passava pó de carvão no corpo todo do galo e pedia que o acusado alisasse bastante a ave para que este, supostamente, adivinhasse se ele tinha ou não culpa no cartório. É óbvio que, quando o cabra era mesmo culpado, ele jamais iria alisar o bicho e assim, ao sair, eu apertava a mão dele e olhava para ver o resíduo do carvão que ficou. Quando a mão do cabra estava limpa... É batata! Culpado! Nunca erramos!

Crispin Corcoran não pode deixar de reconhecer a astúcia do ervateiro e guardou em segredo essa história para evitar vingança de outros presos, seus futuros companheiros de cadeia. Na época, ninguém soube de nada e um colega meu, cujo nome omito pois que ele vive e lê meus causos, teve a ideia quase genial sobre o que poderíamos fazer com o galo sem asas que agonizava sangrando no fundo do quintal de Tranchinchin.

_ Se esse galo é encantado, vamos comer a carne dele! Quem sabe nós também não aprenderemos a voar? - Sugeriu o colega iluminado.

Um frêmito de fantasia nos envolveu naquela hora. Apanhamos o animal furtivamente e corremos para a casa de uma famosa cozinheira. Digo que a ideia era quase genial, pois que, de tão escuro que era o animal, a pobre Durvalina, como se chamava a cozinheira, não conseguia adivinhar quando o animal estaria assado e, quando deu por si, o animal já estava todo torrado, feito um pedaço de carvão que desmanchava amargo e farinhento ao por na boca. Outro colega ainda teve a iniciativa de pisar o que restara do galo preto em um pilão, peneirando fragmentos de ossos, e juntando o pó preto em um vidro, conseguindo muito prestígio e alguns trocados ao vender pela cidade a farinha do encantado e milagroso galo preto do bruxo Tranchinchin! A alquimia da ave coberta de pó de carvão para arrancar confissões e que acabou em pó transmutado... Mas aí já tá virando outra e esotérica história...

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