segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A FÊNIX PRATEADA DE KARLA ESPANHOLA


“Podem enforcar o galo, ainda assim a alvorada virá!” Carl Yung


O pirracento sol do verão, faiscando pela janela, impedia Karla Espanhola de fechar as contas no caderno de espiral, mas ela já sabia que nesse mês não daria nem para pagar as contas e teria que fechar de novo sua boutique ou então...
Nessa mesma noite ela optou pela segunda alternativa. Vestiu seu short e bustier de couro vermelho, um longo vestido por cima, subiu na garupa de uma moto-taxi e saltou no posto de gasolina Dois Irmãos, na rodovia que ligava sua cidade, Seabra, à Lençóis, no Noroeste da Bahia. Não demorou muito e conseguiu carona com um caminhoneiro de olhos injetados pela jornada extenuante e dentes desaparecidos que davam ao seu sorriso um aspecto de teclado de piano.
_ Mas tem certeza, dona moça, que vai saltar aqui mesmo, nessa escuridão medonha? – perguntou-lhe o motorista solitário, vendo suas esperanças diluídas feito as baforadas que ela lançava contra o vidro do carro – Hora dessas! Sem vivalma na rodagem!!!
KArla Espanhola saltou resoluta e insistiu para que ele ficasse com a nota de dez reais, a única que havia recebido (o dia inteiro sentada na boutique) de uma manicure que lhe havia abatido um fiado. Procurou a estradinha vicinal de um antigo e abandonado matadouro de gado, dali subindo uma picada levando ao alto de uma colina. A lua cheia, quando não se furtava atrás de uma nuvem escura, iluminava seus passos. Pensou em tirar os sapatos de salto, mas o medo de cobra e de outros bichos refreava-lhe a coragem. Os dilemas por quais passava iam estampados em sua face maquiada. Pensava no filho pequeno, no marido sempre na lan-house acessando sites de sacanagem, no sermão do padre Antonásio... Em tudo ela pensava para não pensar no lugar em que estava indo e na coisa escabrosa a que ia ao encontro. Lembrava-se como de um pesadelo da última vez que ali estivera, incrédula, levada por sua colega, Marinalva, que um dia surgira em Seabra bombando de tanto ouro, aletrias e penduricalhos. Só por acompanhá-la, ela lhe emprestara cinco mil reais para abrir a boutique, mas nunca mais teve notícias de Marinalva....
Seu coração saltava no peito quando chegou no descampado, no alto da colina, de onde podia-se ver uma distante sede de fazenda abandonada. Procurou o monte de pequenas pedras dispostas em círculo não demorando em encontrá-lo tão simétrico e exótico era seu formato. No cento do círculo, sob uma lajota de cristal lascado, encontrou a fenda. Hesitou até enfiar ali a mão e encontrar a manivela. Respirou fundo e a girou. O círculo de pedras se acendeu com jatos de luz vaporosos enquanto um zumbido oscilante chuviscava em seu ouvido feito o dial de um rádio. Karla procurou imitar sua amiga em tudo. Tirou o vestido e sentou, de shortinho vermelho – agora lilás na reverberação neon das pedras cintilantes – e acendeu um cigarro. Não demorou muito e surgiu no céu, como se cruzasse os eóns entre nuvens radioativas de mil megatons, um disco-voador batendo lata e adejando em busca de um ângulo de aterrissagem. Parou a poucos metros de Katia paralisada. Um orifício na lateral do disco, em formato de ânus, abriu-se como uma rosa psicodélica por onde escorria um colóide etéreo, ectoplasmático, que se materializou em uma forma humanóide, quase a tocar o braço rupiado de Karla Espanhola.
Com voz de mistagogo e sotaque texano, o allien invocou:
_ Mei-rin-nei-va! Onde está Meirineiva?
Karla lutou consigo mesmo e conseguiu falar quase desmaiando.
_Não pode vir! Me mandou no lugar dela! – Falava sentindo que o bicho na sua frente lia todos seus pensamentos antes mesmo dela falar!
_ Venha comigo! – O allien envolveu a cintura de Karla com um gelatinoso tentáculo e conduziu ao interior da nave a moça desmaiada.

Projeções holográficas no interior da nave simulavam palácios e perspectivas “do parnaso”: cascatas em penhascos vaporizadas antes de tocar o solo, pássaros canoros e assados pousando no prato e nuvens vermelhas chovendo vinho na taça do allien que tentava de tudo para seduzir a pin-up atabalhoada. Acostumada a passar as tardes vendo desenhos animados com seu filho pequeno e tomada pelo profundo senso prático que a trouxera ali, Karla não se deixou impressionar. Tirou a roupa e, dobrando seu asco, pronunciou as palavras que sua amiga havia lhe ensinado:
_Zi enjhi didiar in valle de barcon, du enjhi vella marmej? – significando uma sórdida e galáctica proposta de prevaricação sexual.
O allien sorriu com um tremelique nas antenas, ergueu entre as pernas seu órgão sexual em forma de minarete tricúspide, e pulou sobre a vítima lasciva e resignada.

Deitado sobre almofadas de penas de sauros jupterianos, Zalmox – o nome com que o allien se identificara – fumava um dos cigarros de Karla e parecia embriagado de prazer. Karla vestia a roupa, tentando limpar seu corpo do gel gósmico cor de abacate que impregnava seus poros. Não via a hora de receber um pacote de ouro e brilhantes, voltar para casa e tomar um banho de banheira prolongado. Zalmox parecia perceber sua ansiedade e tentou entabular uma história com uma voz agora menos vibrátil e quase humana:
_ Não sei se você sabe, mas no espaço, quando viajamos na velocidade da luz, o tempo praticamente deixa de passar... Vocês chamam isso de “Teoria da Relatividade”.
_ Uhum! – Karla não ousava contrariá-lo.
_Já vim doze vezes em seu pequeno planeta. Centenas de séculos se passaram entre uma e outra visita. Mas para mim, não duravam mais do que o tempo de crescer meus cabelos.... Na primeira vez que estive aqui, sua raça não havia sequer se espalhado pelo planeta. Vocês não passavam de algumas centenas e vagavam fugindo de um paraíso destruído. Como lembrança desse paraíso, vocês carregavam uma ave que lhes fora presenteada por uma divindade, uma ave chamada Fênix que os livrava da fome, quer saber como?
_ Uhum! – Karla parou de olhar o relógio que ali dentro não funcionava.
_ Essa ave mágica tinha o poder de renascer das cinzas quando queimada em seu ninho de mirra e outras ervas aromáticas. Seus antepassados, quando assolados pela fome, matavam e comiam a fênix, deixando a cabeça intacta que era lançada sobre um ninho em chamas. Rapidamente, outra fênix novinha surgia das cinzas e o ritual se repetia até todos estarem saciados. Quando vi aquilo fiquei maravilhado, mas logo percebi que em breve a população iria crescer a tal ponto que não seria possível alimentar a todos mesmo queimando a fênix vinte quatro horas por dia e a renascendo. Haveria bocas demais e a espera por seu naco de carne poderia durar mais do que o suportável. Senti pena de sua raça e lhes propus uma troca. Apanhei na minha nave uma ave que trazia comigo como lembrança do meu planeta, um animal de estimação, esse bicho tão estranho que vocês chamam de galinha. Sugeri uma troca. Ela não renasce das cinzas, não é mágica, mas se reproduz em repetidas ninhadas podendo ser criadas em cativeiro, multiplicar-se indefinidamente a alimentar gerações de terráqueos! Foi uma troca justa, mas hoje sinto certo remorso: Alguns homens passaram a criar galinhas não apenas para comer, mas para trocar por outras mercadorias e usar os ovos como moeda entre as tribos. Surgiu daí o capitalismo e esse mundo horroroso do dinheiro e do consumismo que, vejo em você o exemplo, corrompe e humilha tantas pessoas no planeta. Tudo por causa de uma galinha – Zalmox adotava um tom cada vez mais melodramático -. Quero lhe dar um presente, a você e a seus descendentes.
Zalmox retirou-se ao interior da nave e voltou logo em seguida com uma ave prateada nos braços, exceto a cor metálica, em tudo semelhante a um frango garnizé.
_ Este será seu pagamento pela noite maravilhosa que me proporcionaste! Leve-o e guarde em segredo. Sempre que tiver fome, asse essa ave tendo o cuidado de separar a cabeça que deve ser lançada em uma fogueira em forma de ninho e logo outra surgirá das cinzas. Se quiser, repita mil vezes esse procedimento e terás um lucrativo frigorífico que lhe darás uma renda por toda a vida, para você, seus filhos e netos!!!
Karla Espanhola hesitou a princípio. Esperava ouro e jóias, mas começou a calcular quantos galetos poderia produzir por dia, semana e mês. Teria dinheiro pelo resto da vida em uma ocupação lucrativa e honesta! Aceitou o presente e saiu da nave espacial com sua Fênix em baixo do braço. O dia raiava no horizonte quando a nave, pipocando e soltando uma fumaça verde, desapareceu nas rachas do hiper-espaço. Com as luzes do dia, alguns lampejos de raciocínio fendiam as névoas daquele sonho fantasmático. Se o intervalo entre suas viagens ao planeta Terra duravam milhares de séculos, como afirmara, porque ele saltou procurando por Marinalva, sabendo que dela nem pó mais restaria? Karla pensava na beira da estrada esperando carona e com a fênix embaixo dos braços. Ao ver o sol nascer vigoroso, a fênix não resistiu e cantou como um galo novo no quintal. Karla estranhou a semelhança do canto e olhando-o demoradamente à luz do dia viu no peito da ave resíduos da tinta prateada com que fora pintada. Seu mundo veio abaixo quando esfregou o galo e viu as penas voltarem a sua cor original, deixando, no seu vestido, grandes manchas de colorjet. Uma van de passageiros passou ao seu lado e parou a poucos metros. Karla se aproximou. Só pensava em voltar para casa. Apertou-se no fundo da Van entre passageiros sonolentos. Não tinha o dinheiro da passagem, mas iria oferecer ao motorista o galo prateado. Daria um bom caldo!!!

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