Cecília
era uma boa mulher. Não como a santa homônima, mas chegava perto.
Devota, católica praticante e quase uma beata, apesar de ainda nova e acesa para os “chama” do mundo. Gostava de pecar vendo as novelas da TV e de imitar uma onça manhosa nas noites de estripulia com o marido. Fora isso, era um poço de virtudes. Um dia, voltando de uma visita a sua mãe em uma cidade vizinha, salvou a vida de uma cigana epiléptica caída na beira da estrada, e ganhou desta uma linda faisoa de cauda coruscante. Chegou em casa com a ave debaixo do braço e, com um quintal cheio de cachorros do marido, sem saber também que hábitos a ave possuía, seu primeiro pensamento fora matar o animal e preparar um suculento ensopado. A gula era outro de seus pecaditos. Mas antes de fazer isso, pensou que seria melhor consultar o padre Zé Reis, seu guia espiritual. Afinal, estava na quaresma e não custava se prevenir contra as artes do inimigo; vai que aquela cigana estivesse lhe enganando só para lhe enfiar pela goela abaixo um naco de pecado! Assim sendo, subiu a “ladeira de Seu Pequeno” e foi dar na suntuosa residência do padre. Foi prontamente atendida. Explicou sua dúvida, mostrou a ave ao padre e ouviu deste a seguinte explicação:
Devota, católica praticante e quase uma beata, apesar de ainda nova e acesa para os “chama” do mundo. Gostava de pecar vendo as novelas da TV e de imitar uma onça manhosa nas noites de estripulia com o marido. Fora isso, era um poço de virtudes. Um dia, voltando de uma visita a sua mãe em uma cidade vizinha, salvou a vida de uma cigana epiléptica caída na beira da estrada, e ganhou desta uma linda faisoa de cauda coruscante. Chegou em casa com a ave debaixo do braço e, com um quintal cheio de cachorros do marido, sem saber também que hábitos a ave possuía, seu primeiro pensamento fora matar o animal e preparar um suculento ensopado. A gula era outro de seus pecaditos. Mas antes de fazer isso, pensou que seria melhor consultar o padre Zé Reis, seu guia espiritual. Afinal, estava na quaresma e não custava se prevenir contra as artes do inimigo; vai que aquela cigana estivesse lhe enganando só para lhe enfiar pela goela abaixo um naco de pecado! Assim sendo, subiu a “ladeira de Seu Pequeno” e foi dar na suntuosa residência do padre. Foi prontamente atendida. Explicou sua dúvida, mostrou a ave ao padre e ouviu deste a seguinte explicação:
_ Minha senhora! Segundo o Bispo
Romualdo, da Diocese de Vitória da Conquista, a qual somos filiados, o
faisão é um símbolo da luxúria, da concupiscência, dos pecados
sofisticados lá do Oriente. Comer a carne dessa ave é um risco muito
grande para quem busca fugir das tentações.
_ O que eu faço então,
padre? – Perguntou aflita a boa senhora – Meu quintal é cheio de
cachorros perdigueiros que meu marido cria....
_ A senhora pode
deixar ele aqui em nossos jardins É uma ave muito bonita e teremos muito
gosto em criá-la para a senhora. Pode vir aqui quantas vezes quiser
visitá-la. Não lhe custará nada, mas se a senhora quiser trazer um milho
quebrado e der para ela, melhor ainda!
Cecília adorou a idéia e
deixou a ave solta no jardim de crisântemos e açucenas. Agradecida, a
ave abriu seu vistoso leque e o padre disse ter sido um sinal de Nosso
Senhor em agradecimento. Cecília quase chorou. No outro dia, seu
primeiro pensamento foi o de passar pela residência do padre antes de ir
ao trabalho e dar comida a sua ave fabulosa. Moeu duas mãos de milho no
moedor de carne, enchendo um saquinho de pipoca com o milho moído.
Subiu esbaforida e foi entrando sem avisar no labirinto de corredores do
Colégio onde, nos fundos, se localizava a clausura do padre Zé Reis e
seu jardim precioso. Deu de cara com a ave soberba que, mal lhe avistou,
abriu seu caudaloso leque.
Cecília despejou o conteúdo do pacote e
ficou olhando, hipnotizada, o garbo da ave que comia com gestos suaves e
ondulantes. “Tão diferente das galinhas da minha mãe!” Pensou. Desse
dia em diante, essa passou a ser a sua rotina. Alimentava a ave e o
espírito, pois aquele jardim lhe parecia um arremedo do paraíso e a sua
decisão em não comer a carne da faisoa era o símbolo de tudo que ela
havia renunciado para salvar a sua alma. Alma cada dia mais vistosa,
pois é fato que esta se agiganta e expande quando o corpo se contrita,
conforme ouvia nos sermões do seu idolatrado padre. Como recompensa –
assim pensava ela – a ave colocava ovos rajados, com uma leve jaça
ambarina que ela apanhava com entusiasmo nos lugares mais inusitados em
que a ave os punha: sobre a balaustrada do jardim, no cesto do banheiro e
até na cabeça de bronze de uma estátua pagã, semi-escondida sob a tela
de um caramanchão de buganvílias. Cecília apanhava os ovos, após dar uma
batida por todo o local e dependências, guardando-os dentro de uma lata
de biscoitos decorada como um troféu no fundo da sua geladeira.
Um
dia, Cecília viajou para rever sua mãe, como fazia todos os meses e,
justamente nesse dia, logo de manhã, uma pedra perdida de algum
estilingue perverso veio afundar o crânio da vistosa ave. Antes de
morrer, a ave fez um escarcéu medonho, adentrando o recinto episcopal,
derrubando a louça e ornamentos e enchendo de bosta iridescente os panos
cerimoniais até que as mãos competentes - e há muito juramentadas - da
cozinheira desse um fim ao seu estertor e espalhafato. No mesmo
instante, há quilômetros dali, passando bem na curva onde ela havia
salvado a cigana, Cecília sentiu uma dor no peito e ouviu no ar seco da
Kombi cheia de passageiros sonolentos um cacarejo esganiçado. Ao saltar
do veículo, foi direto ao Colégio ver a sua ave. Procurou-a por todas as
partes sem a encontrar. Ao se dirigir, apesar da hora imprópria, aos
aposentos do padre Zé Reis, encontrou este saindo do refeitório,
sorridente e com um palito entre os lábios. Foi o primeiro a falar com
expressão de tragédia no rosto:
_ Minha Senhora! Tentamos tanto lhe
avisar, mas disseram que a senhora tinha viajado! Uma fatalidade!
Mataram, não sabemos quem fez tamanha crueldade, a sua faisoa de
estimação! Com tantos seminaristas para alimentar, a Senhora com certeza
vai entender que agimos certo em cozinhá-la. Acabamos de jantar.
Perdoe-me dizer isso nesta hora, mas é realmente uma ave D E L I C I O S
A!
_ Mas.... PADRE!!! O Senhor não havia me dito que, para o bispo
Romualdo, a carne dessa ave era extremamente perigosa, cheia de
luxúrias e pecado?
_ Olha, minha Senhora! Nestas questões
dietéticas, de alimentos e proibições, saiba que eu e o bispo Romualdo
sempre divergimos muito!
– Uma aura de sinceridade emanava da sua batina
resplandescente. Zé Reis balançava o palito entre os dentes enquanto
falava. Passava a mão sobre a proeminente barriga onde a ave agora jazia
no inferno de seus ácidos estomacais.
Cecília percebeu que a mão do
padre perigosamente descia para além do umbigo e temeu que a
concupiscência da ave já estivesse fazendo efeito no santo vigário.
Tratou de se despedir cabisbaixa, sem sequer tomar a benção e voltou
resignada para casa. Pelo menos tinha os ovos.
Ah! Os ovos! Eu poderia
até dizer o que ela pretendia fazer com eles, mas o bispo Romualdo
sempre me alertou do perigo e do pecado que é escrever sobre ovos!
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