Quando Nicanor Ferraz nasceu, no seio de uma
famigerada família patriarcal, todos os seus tios vieram ao batizado e quase
sufocaram a criança com a fumaça encorpada dos generosos charutos que o pai
encomendara na capital só para celebrar seu novo herdeiro. Ineludível foram os
vaticínios e as falocráticas profecias. Um a um, aproximavam-se do berço e
diziam seus perversos oráculos:
_ Isso vai ser um descabaçador triste ! –
Disse Tio Dodô.
_ Pais de Família, tremei! – Sussurrou Tio
Vavá.
_ O maior lascador do Sudoeste! –Profetizou o
velho Edgar.
Mal terminava o cortejo de bençãos cenobitas
quando apareceu o Tio Salústio, homem recatado e que destoava dos irmãos pela
moral puritana e idealismo religioso. Vendo e ouvindo os perversos irmãos
profetizarem um destino de Luxúria e perversão para o sobrinho recém-nascido -
e pensando no projeta Jeremias que dizia estar o destino inscrito nos órgãos -,
Salústio apanhou Nicanor nos braços e disse para toda a família ouvir :
_ Com vinte e cinco anos, todo o facho de
seus quartos vai se apagar. Ele vai ser um capado. Vai ser padre, bispo,
cardeal... E tamanha vai ser sua santidade, sua pureza, que só Deus sabe onde
ele pode chegar!
As mulheres da família se comoveram com
sentença tão espiritual e se animaram a enfrentar a matilha de velhos perversos
– seus maridos -, apanhando das mãos de Salústio o galeguinho dos olhos azuis e
enfeitando-o com panos e mimos em uma festiva e tabibitati algazarra.
Não esperavam, no entanto, a vinda do último
tio, Djalma, que longe morava e apareceu quase no fim do batizado. Tomando
ciência do ocorrido, da intervenção moralista do irmão xereta de padre, Djalma,
dono de quatro lupanares na região do garimpo, comentou com os irmãos já
bêbados no alpendre da sala:
_ A praga do Salústio é muito forte! Não
posso anular. Mas lhe garanto uma coisa, caro José, seu filho não vai ser
brocha a vida inteira, não! Isso lhe garanto. Aos quarenta anos, vai lhe
aparecer uma rapariga das Europa de lascar o cabo da manivela e vai fazer seu
filho ser macho de novo que isso de filho padre é coisa de homem corno. Onde já
se viu? Criar filho que não lhe dê neto!
E para confirmar sua fama de bruxo e
pai-da-mata, Djalma realizou seu velho truque de magia elementar que comoveu e
curou a cachaça de todos que a presenciaram. Tirou uma suvela do arforje e fez
um corte raso na coxa esquerda, com uma pena de ganso improvisada recolheu seu
crisolado e hemético sangue e com ele escreveu sobre a superfície de um espelho
a promessa a pouco enunciada: « quando completar quarenta anos... ». Enquanto
escrevia no vidro polido, todos olhavam boquiabertos para a lua gigante e
gelatinosa subindo a Serra do Sincorá. Na superfície da lua, em letras
manuscritas e vermelhas, as palavras escritas por Djalma surgiam gigantescas e
espalhavam suas rubras e pestilentas sombras sobre as nuvens e o pasto. As
galinhas piaram agourentas no poleiro, os cães uivaram furibundos e um mocho
piou histérico sobre o telhado. Duas mulheres desmaiaram na cozinha enquanto
Djalma, possesso, entoava em língua Romani suas cantilenas de satânico
pai-da-mata.
Dito e feito! Que os cordéis e folhetins
possam falar com mais propriedade da vida picaresca do Nicanor Ferraz. Seu
aprendizado nos bordéis do tio Djalma, suas fugas espetaculares de alcovas
adúlteras, suas virgens arrebatadas e suas idosas ressuscitadas pelo seu mastro
arretado... Falta-me tal vigor com a caneta e as palavras; faltava a ele o elán
literário de um Casanova... Salto assim para o profético dia do seu vigésimo
quinto aniversário. Seu pai, temendo a profecia do filho ficar impotente,
enviou-lhe para a capital, Salvador, quando a data fatídica coincidia com o
carnaval e onde, acreditava ele, seria impossível alguém pensar em outra coisa
além de bunda, peito, pau-no-cu, buceta e caralho.... Não adiantou. No segundo
dia, debilitado pela esbórnia e por um resfriado, Nicanor Ferraz foi a uma
fármacia tomar um injeção de Benzetacil, uma sulfa poderosa que era, então, a
panacéia para todos os males. O farmacêutico bêbado, aplicou-lhe nas nádegas um
poderoso anestésico que veio a mortificar completamente suas protuberantes
partes. Saindo da fármacia e assediado pelas piriguetes do largo conhecido como
« Relógio de São Pedro », Nicanor Ferraz teve então, pela vez primeira, a
experiência do fracasso. Ele era sócio fundador de um bloco de carnaval, o
Jacu, e usava uma mortalha com o logo do bloco por ele inventado. Na sua terra
havia um tipo de urubu, chamado urubu-rei que possuía a cabeça branca, era
enorme e tinha por peculiaridade, quando começa a devorar uma carniça, começar
pelo ânus e por ali ir puxando as vísceras, devorando-as e recusando a carne
propriamente dita para outros animais de menor realeza. Estampava a sua
mortalha uma grande imagem de um urubu-rei, similar à águia romana, e,
contornando-a, a frase latina IN CULUS PRINCIPIT : ‘pelo cu começamos’. Sua
tática costumava ser infalível : Ficava imóvel, fazendo « terra » nas meninas e
esperando que elas o disputassem. De fato, no carnaval, todas queriam ser a
mais atrevida. A primeira a se aproximar, requebrando na sua frente ao som do
trio elétrico, ele abraçava-lhe pela cintura tirando-a para dançar; minutos
depois, com sua vóz embargada e dengosa, a mão já dentro do bustiêr,
formulava-lhe no ouvido suas ensaiadas, hipnóticas e mágicas palavras:
_ Você trabalha na casa de quem?
E antes que a garota completasse algo do tipo
« trabalho na casa de dona Guiomar », ele dava-lhe uma « panhada» com os
quadris esfregando sua impudicícia volumosa entre as nádegas da pequena. Desta
vez não funcionou. A garota até que tentou ajudá-lo saracoteando o bumbum semi-coberto
por um shortinho jeans na almofada dormente e macia que tinha se tornado sua
genitália, Mas esta, liquefeita pelo anestésico, havia caído definitivamente em
sono profundo. A vida de Nicanor Ferraz acabou nessa tarde de carnaval. A
história dos votos em seu batizado, contado-lhe em segredo pelas babás e
criados, e há muito considerada uma bizarra crendice de tios parvos, caiu sobre
seu ânimo como uma sentença lapidar. Voltou cabisbaixo para a casa dos pais e
se enfurnou de vez na fazenda, acampando nas matas, caçando e pescando,
deixando a barba crescer para nela esconder suas mágoas e seus traumas.
Sua fama de ermitão e beato o incomadava.
Queria mesmo era lascar a mulherada mas a madeira relutava em empinar. Esgotou
a farmacopéia brasiliensis, comeu centenas de cantáridas cultivadas em vidros
cheios de amendoim e até remédio estrangeiro mandou buscar sem outro resultado
além de o deixar grogue e com as juntas petrificadas. Ficava a cada dia mais
esotérico (coisa de broxa) e amaldiçoava o falecido tio Salústio que vaticinou
sua efêmera virilidade. Cobria o corpo de patuás e tentava aprender os feitiços
do seu tio Djalma, hoje um ancião que trocara sua mistagogia pela venda de
cachaça com infusão, se arrastando de muletas em uma venda na beira da rodagem.
Era ele quem o consolava, dizendo-lhe:
_ Tenha paciência. A mulher que vai lhe curar
há de aparecer no dia dos seus quarenta anos. Ela vai lhe curar. Palavra de
pai-da-mata! – Repetindo essas palavras até no leito de morte, enfático como se
todo o valor da sua posteridade dependesse desse seu vate. Foi célere seu
esquecimento. Antes de apodrecer, ninguém mais se lembrava do velho Djalma,
exceto o esperançoso sobrinho que os meninos perversos de Itambé batizara de
«rôla preguiçosa». Com o fim da censura militar, pipocaram programas e
reportagens sobre a sexualidade humana nas revistas e na televisão. Nicanor
Ferraz começara aos poucos a dar ouvidos à história de que tudo poderia não
passar de um trauma psicológico, que sua imaginação estudiosa, insuflada de
fabulações e superstitio, bem que poderia estar sugando a energia do seu bilau,
pois não conhecia ele muitos solteirões que enlouqueceram por causa de esperma
subindo pra cabeça? Era o seu caso. Seu próprio cérebro inventara um
dispositivo psíquico para desviar sua gala e esculpir com ela seus viscosos
fantasmas, mirações e visagens.
Decidiu então contratar um psicólogo e me
incubiu de vasculhar as páginas amarelas em busca de algum profissional
disposto a viajar da Capital até o interior para tratar do seu caso. Fiz muitas
ligações até encontrar uma que se apresentou como drª Gilma Melasso, psicóloga
formada na itália e curiosa em conhecer o pitoresco interior do Estado.
Acertamos os detalhes e fui apanhá-la na rodoviária no dia e hora combinada.
Passei um bom tempo na estação, observando os
passageiros apanharem as malas no bagageiro e desaparecerm pelo burburinho da
rodoviária. Esperando que estava por uma mulher de trajes modernos e gestos
extrovertidos, demorei em acreditar que aquela senhora de cabelos pretos,
óculos de grau e roupas semelhantes às de uma freira fosse a Drª Gilma Melasso.
Cumprimentamos-nos cerimoniosamente e carreguei a sua mala até o carro.
Esperava conhecê-la melhor no percurso até a Fazenda Santa Rosa onde ela
ficaria hospedada e iria tratar do melindroso caso de impotência sexual, caso
este que, por mais que eu tentasse, não encontrava espaço para abordar, mesmo
insistindo no meu interese literário por uma história tão comum mas de detalhes
tão bizarros. Um único comentário profundamente moralista, que Drª Gilma fez
durante todo o percurso, foi uma pá de cal nas minhas esperanças : estávamos na
primavera de 1986. Uma grande explosão de um vulcão no oceano pacífico havia
espalhado toneladas de cinzas na atmosfera do planeta e, por causa disso, os
poentes e as auroras apresentavam uma coloração vermelha de inusitada
intensidade e cuja extensão cobria quase um terço do céu. Chamei a atenção da
Drª para esse espetáculo. Ela sequer olhou o horizonte, se limitando a comentar
:
_ O Sol se levanta e se deita rubro de
vergonha com o que vocês fazem de noite aqui no interior!
Depois desse ríspido comentário, não disse
mais nada, apenas olhava-a de soslaio. Era mais fácil para ela faxer um tarado
se envergonhar do que fazer meu amigo recuperar a virilidade ; mas eu nada
entendia da psicologia de Melaine Klein que, na entrevista ao telefone, ela me
disse ser a sua especialidade. Ao entrar na fazenda pude observar outro raro
fenômeno, desta vez, muito provavelmente, causado pela minha mente excitada. As
franjas da noite já encorpavam o crepúsculo agonizante sobre a estrada. As
árvores, feito choupos em um pântano mal-assombrado, pareciam curvados, os
galhos caídos e os troncos inclinados. A cerca de arame..., como se uma boiada
houvesse passado por cima delas deixando-as flácidas e perpendiculares ao capim
quebrantado. A porteira da sede, o frondoso gravatá, o telhado da casa, tudo
parecia desmanchar sob o peso da gravidade conspirando uma enfeitiçante
cumplicidade da natureza com o seu proprietário que sofria há anos de frouxidão
nas pudendas partes. Esse detalhe sobrenatural avivou-me a crença de haver algo
fantástico na origem daquele ‘causo’ que justificasse uma novela bem contada.
Deixei a sisuda Gilda Melasso aos cuidados de seu anfitrião paciente e voltei
para a cidade com uma lista de compras pedidas por meu melancolico amigo,
preocupado com finas iguarias que pudessem agradar a sua hóspede oriunda da
sofisticada capital do estado.
No outro dia cedo fiz as compras e pedi que o
dono do armazém se encarregasse de entregá-las. Eu iria adiar minha visita para
deixá-los mais a vontade, mas um episódio inesperado precipitou meu estouvado
retorno a fazenda de Nicanor Ferraz. Ao vasculhar meu carro em busca de
não-sei-o-quê, deparei-me com uma frasqueira que Drª Gilda havia esquecido no
carro. Levei comigo à sala e, pensando que ali pudesse haver algo de preemente
necessidade, resolvi abrí-la, o que fiz sem muita dificuldade. Surpreendeu-me
sobremaneira seu conteúdo. Um grande frasco de pimenta baiana em pasta, um
estojo cilíndrico de trinta centímetros de comprimento aproximadamente e um
exemplar de « Satiricon » de Petrônio, o clássico latino do erotismo romano no
seu agonizante e lascivo declínio. Passeei os olhos no livro empolgante e quase
de madrugada, embriagado pela leitura voraz, deparei-me com o sentido de tão
insólito conteúdo da frasqueira : O personagem desse livro, Eumolpo, um
sibarita e libertino comensal das orgias romanas, torna-se subitamente um
impotente e busca desesperado por uma cura. Uma feiticeira africana aplica-lhe
um aberrante e eficaz tratamento. Mergulha um falo de couro por vários dias em
uma infusão de pimentas, em seguida, introduz o oleoso, enorme e ardente falo
no ânus do coitado que dispara urrando de dor pelas ruas de Roma até descobrir,
esbaforido, que uma medonha ereção o havia acompanhado por todo o seu calvário
e que ele estava, por fim, curado. Não precisava ser nenhum paranóico para
entender quais eram os métodos e intenções da Drª Gilda Melasso. ‘Que
vigarista!’ Pensei comigo mesmo. Abri o cilindro que havia na frasqueira e
confirmei minhas suspeitas. Um falo de couro enorme e envelhecido como prova de
que já fora usado muitas vezes. Aquela pilantra vivia então aplicando esse
escabroso golpe nos pobres impotentes da Bahia e, quem sabe, do Brasil inteiro!
Amanhã mesmo ela seria desmascarada! Quase não dormi, furioso, e bem cedo, sem
tomar café, parti para a fazenda a tempo, esperava, de libertar meu amigo da
charlatania encomendada.
Encontrei meu amigo com um radiante sorriso
no rosto, sentado na varanda e com os dedos vasculhando os dentes como se
arrancasse fiapos de uma fruta, uma suculenta manga consumida no café-da-manhã!
Me esforcei para aparentar naturalidade e nem sequer perguntei pela hóspede à
espera de que ele tocasse no assunto. Como ele não falava outra coisa além de
me contar suas repetidas piadas, abordei o tema, direto, como era do meu
estilo:
_ E então? Tá mais animado? – E usei o braço
em riste em um gesto inequívoco e obsceno que não deixava dúvidas a que eu
estava me referindo. Nicanor Ferraz gargalhou :
_ Aquele problema não existe mais! – e
completou, quase inaudível pois não tirava os dedos dos dentes – Aproveite e
faça companhia a Drª Gilda que ainda não tomou o seu desejum!
Naquele exato instante, Drª Gilda Melasso
apareceu na varanda, usando um robe de Chambre que reconheci como sendo da
falecida mãe de Nicanor Ferraz, uma idosa que, sofrendo de Alzheimer, costumava
vagar pela cidade sob o sol do meio dia usando jóias e roupas íntimas entre as
carroças dos feirantes. Gilda beijou Nicanor Ferraz e me cumprimentou
sorridente. Fiquei pasmo com a transformação da sisuda moralista do último
encontro. Tomamos café e eu não tive coragem de tocar no assunto da frasqueira.
Parece que não haveria mais necessidade de artifícios tão horripilantes. Ela
gargalhava com as histórias do seu novo amante e deu-me dois tapas no ombro que
quase me fizeram cuspir o bolo de puba que eu, atônito, mastigava. Na
despedida, Nicanor Ferraz me chamou em reservado, entregou-me um envelope me
pedindo que o levasse ao fórum da cidade para registrar sua firma no documento
ali contido. Voltei para a cidade. No caminho dei carona para um grupo de cinco
crianças que iam para uma escola rural e que se apertaram todas no banco de trás.
No banco da frente ia a frasqueira e o envelope. Curioso, minutos depois de
sair da fazenda e rodar pela estrada empoeirada, decidi abrir o envelope e ver
o seu conteúdo. Era um certificado, uma espécie de diploma em letras góticas e
douradas onde se lia:
O COLÉGIO PANAMERICANO DOS CHUPARINOS DE
BUCETA CONFERE AO ILUSTRÍSSIMO SENHOR NICANOR FERRAZ, MEDIANTE LUVA DE NCZ$
800.000,00 CRUZADOS NOVOS, O TÍTULO DE SÓCIO EMÉRITO E PATRIMONIAL.
Assinava o diploma a tesoureira, Drª Gilda
Melasso, e o novo sócio, Nicanor Ferraz. Não acreditei nos meus olhos. Minha
mente foi tomada pela imagem do meu amigo embriagado pela sua nova e nada
romântica modalidade sexual. Sentado na varanda, ele perquiria os enormes
dentes tentando retirar algo ali encalacrado. Não era fiapos de manga como
pensei :
_ ERA PENTELHO! CARALHO! ERA PENTELHO!
–Gritei! As crianças no banco de trás se assustaram. Uma sorriu crispado, outra
choramingou. Enrubesci e pedi desculpas. Elas pediram para saltar. Obedeci e as
deixei na estrada já próximas da escola. Apanhei a frasqueira e lancei-a sobre
uma moita de mato-cipó na esperança de que nunca mais fosse encontrada. Aquele
não era decididamente o desfecho que eu esperava para a minha novela fantástica
que havia começado como um arremedo de um conto de fadas. Para completar a
esbórnia que o destino me pregava, um velho caminhão seguia na minha frente e,
entre a nuvem de poeira que ele me lançava, podia-se ler uma frase no
para-choque quase apagado: « Enquanto houver língua e dedo, mulher não me mete medo!»
Nem me recordo mais o que fiz com aquele
diploma de merda. Me sentia um palhaço. Se algo de relevante me ficou disso
tudo, é que eu, ali mesmo, decidi que nunca mais escreveria nada, de tanto que
esse episódio me deixara enojado!
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