segunda-feira, 9 de agosto de 2010

HISTÓRIA DA SEXUALIDADE ou A Mala Adormecida no Bosque

 


Quando Nicanor Ferraz nasceu, no seio de uma famigerada família patriarcal, todos os seus tios vieram ao batizado e quase sufocaram a criança com a fumaça encorpada dos generosos charutos que o pai encomendara na capital só para celebrar seu novo herdeiro. Ineludível foram os vaticínios e as falocráticas profecias. Um a um, aproximavam-se do berço e diziam seus perversos oráculos:
_ Isso vai ser um descabaçador triste ! – Disse Tio Dodô.
_ Pais de Família, tremei! – Sussurrou Tio Vavá.
_ O maior lascador do Sudoeste! –Profetizou o velho Edgar.
Mal terminava o cortejo de bençãos cenobitas quando apareceu o Tio Salústio, homem recatado e que destoava dos irmãos pela moral puritana e idealismo religioso. Vendo e ouvindo os perversos irmãos profetizarem um destino de Luxúria e perversão para o sobrinho recém-nascido - e pensando no projeta Jeremias que dizia estar o destino inscrito nos órgãos -, Salústio apanhou Nicanor nos braços e disse para toda a família ouvir :
_ Com vinte e cinco anos, todo o facho de seus quartos vai se apagar. Ele vai ser um capado. Vai ser padre, bispo, cardeal... E tamanha vai ser sua santidade, sua pureza, que só Deus sabe onde ele pode chegar!
As mulheres da família se comoveram com sentença tão espiritual e se animaram a enfrentar a matilha de velhos perversos – seus maridos -, apanhando das mãos de Salústio o galeguinho dos olhos azuis e enfeitando-o com panos e mimos em uma festiva e tabibitati algazarra.
Não esperavam, no entanto, a vinda do último tio, Djalma, que longe morava e apareceu quase no fim do batizado. Tomando ciência do ocorrido, da intervenção moralista do irmão xereta de padre, Djalma, dono de quatro lupanares na região do garimpo, comentou com os irmãos já bêbados no alpendre da sala:
_ A praga do Salústio é muito forte! Não posso anular. Mas lhe garanto uma coisa, caro José, seu filho não vai ser brocha a vida inteira, não! Isso lhe garanto. Aos quarenta anos, vai lhe aparecer uma rapariga das Europa de lascar o cabo da manivela e vai fazer seu filho ser macho de novo que isso de filho padre é coisa de homem corno. Onde já se viu? Criar filho que não lhe dê neto!
E para confirmar sua fama de bruxo e pai-da-mata, Djalma realizou seu velho truque de magia elementar que comoveu e curou a cachaça de todos que a presenciaram. Tirou uma suvela do arforje e fez um corte raso na coxa esquerda, com uma pena de ganso improvisada recolheu seu crisolado e hemético sangue e com ele escreveu sobre a superfície de um espelho a promessa a pouco enunciada: « quando completar quarenta anos... ». Enquanto escrevia no vidro polido, todos olhavam boquiabertos para a lua gigante e gelatinosa subindo a Serra do Sincorá. Na superfície da lua, em letras manuscritas e vermelhas, as palavras escritas por Djalma surgiam gigantescas e espalhavam suas rubras e pestilentas sombras sobre as nuvens e o pasto. As galinhas piaram agourentas no poleiro, os cães uivaram furibundos e um mocho piou histérico sobre o telhado. Duas mulheres desmaiaram na cozinha enquanto Djalma, possesso, entoava em língua Romani suas cantilenas de satânico pai-da-mata.
Dito e feito! Que os cordéis e folhetins possam falar com mais propriedade da vida picaresca do Nicanor Ferraz. Seu aprendizado nos bordéis do tio Djalma, suas fugas espetaculares de alcovas adúlteras, suas virgens arrebatadas e suas idosas ressuscitadas pelo seu mastro arretado... Falta-me tal vigor com a caneta e as palavras; faltava a ele o elán literário de um Casanova... Salto assim para o profético dia do seu vigésimo quinto aniversário. Seu pai, temendo a profecia do filho ficar impotente, enviou-lhe para a capital, Salvador, quando a data fatídica coincidia com o carnaval e onde, acreditava ele, seria impossível alguém pensar em outra coisa além de bunda, peito, pau-no-cu, buceta e caralho.... Não adiantou. No segundo dia, debilitado pela esbórnia e por um resfriado, Nicanor Ferraz foi a uma fármacia tomar um injeção de Benzetacil, uma sulfa poderosa que era, então, a panacéia para todos os males. O farmacêutico bêbado, aplicou-lhe nas nádegas um poderoso anestésico que veio a mortificar completamente suas protuberantes partes. Saindo da fármacia e assediado pelas piriguetes do largo conhecido como « Relógio de São Pedro », Nicanor Ferraz teve então, pela vez primeira, a experiência do fracasso. Ele era sócio fundador de um bloco de carnaval, o Jacu, e usava uma mortalha com o logo do bloco por ele inventado. Na sua terra havia um tipo de urubu, chamado urubu-rei que possuía a cabeça branca, era enorme e tinha por peculiaridade, quando começa a devorar uma carniça, começar pelo ânus e por ali ir puxando as vísceras, devorando-as e recusando a carne propriamente dita para outros animais de menor realeza. Estampava a sua mortalha uma grande imagem de um urubu-rei, similar à águia romana, e, contornando-a, a frase latina IN CULUS PRINCIPIT : ‘pelo cu começamos’. Sua tática costumava ser infalível : Ficava imóvel, fazendo « terra » nas meninas e esperando que elas o disputassem. De fato, no carnaval, todas queriam ser a mais atrevida. A primeira a se aproximar, requebrando na sua frente ao som do trio elétrico, ele abraçava-lhe pela cintura tirando-a para dançar; minutos depois, com sua vóz embargada e dengosa, a mão já dentro do bustiêr, formulava-lhe no ouvido suas ensaiadas, hipnóticas e mágicas palavras:
_ Você trabalha na casa de quem?
E antes que a garota completasse algo do tipo « trabalho na casa de dona Guiomar », ele dava-lhe uma « panhada» com os quadris esfregando sua impudicícia volumosa entre as nádegas da pequena. Desta vez não funcionou. A garota até que tentou ajudá-lo saracoteando o bumbum semi-coberto por um shortinho jeans na almofada dormente e macia que tinha se tornado sua genitália, Mas esta, liquefeita pelo anestésico, havia caído definitivamente em sono profundo. A vida de Nicanor Ferraz acabou nessa tarde de carnaval. A história dos votos em seu batizado, contado-lhe em segredo pelas babás e criados, e há muito considerada uma bizarra crendice de tios parvos, caiu sobre seu ânimo como uma sentença lapidar. Voltou cabisbaixo para a casa dos pais e se enfurnou de vez na fazenda, acampando nas matas, caçando e pescando, deixando a barba crescer para nela esconder suas mágoas e seus traumas.
Sua fama de ermitão e beato o incomadava. Queria mesmo era lascar a mulherada mas a madeira relutava em empinar. Esgotou a farmacopéia brasiliensis, comeu centenas de cantáridas cultivadas em vidros cheios de amendoim e até remédio estrangeiro mandou buscar sem outro resultado além de o deixar grogue e com as juntas petrificadas. Ficava a cada dia mais esotérico (coisa de broxa) e amaldiçoava o falecido tio Salústio que vaticinou sua efêmera virilidade. Cobria o corpo de patuás e tentava aprender os feitiços do seu tio Djalma, hoje um ancião que trocara sua mistagogia pela venda de cachaça com infusão, se arrastando de muletas em uma venda na beira da rodagem. Era ele quem o consolava, dizendo-lhe:
_ Tenha paciência. A mulher que vai lhe curar há de aparecer no dia dos seus quarenta anos. Ela vai lhe curar. Palavra de pai-da-mata! – Repetindo essas palavras até no leito de morte, enfático como se todo o valor da sua posteridade dependesse desse seu vate. Foi célere seu esquecimento. Antes de apodrecer, ninguém mais se lembrava do velho Djalma, exceto o esperançoso sobrinho que os meninos perversos de Itambé batizara de «rôla preguiçosa». Com o fim da censura militar, pipocaram programas e reportagens sobre a sexualidade humana nas revistas e na televisão. Nicanor Ferraz começara aos poucos a dar ouvidos à história de que tudo poderia não passar de um trauma psicológico, que sua imaginação estudiosa, insuflada de fabulações e superstitio, bem que poderia estar sugando a energia do seu bilau, pois não conhecia ele muitos solteirões que enlouqueceram por causa de esperma subindo pra cabeça? Era o seu caso. Seu próprio cérebro inventara um dispositivo psíquico para desviar sua gala e esculpir com ela seus viscosos fantasmas, mirações e visagens.
Decidiu então contratar um psicólogo e me incubiu de vasculhar as páginas amarelas em busca de algum profissional disposto a viajar da Capital até o interior para tratar do seu caso. Fiz muitas ligações até encontrar uma que se apresentou como drª Gilma Melasso, psicóloga formada na itália e curiosa em conhecer o pitoresco interior do Estado. Acertamos os detalhes e fui apanhá-la na rodoviária no dia e hora combinada.
Passei um bom tempo na estação, observando os passageiros apanharem as malas no bagageiro e desaparecerm pelo burburinho da rodoviária. Esperando que estava por uma mulher de trajes modernos e gestos extrovertidos, demorei em acreditar que aquela senhora de cabelos pretos, óculos de grau e roupas semelhantes às de uma freira fosse a Drª Gilma Melasso. Cumprimentamos-nos cerimoniosamente e carreguei a sua mala até o carro. Esperava conhecê-la melhor no percurso até a Fazenda Santa Rosa onde ela ficaria hospedada e iria tratar do melindroso caso de impotência sexual, caso este que, por mais que eu tentasse, não encontrava espaço para abordar, mesmo insistindo no meu interese literário por uma história tão comum mas de detalhes tão bizarros. Um único comentário profundamente moralista, que Drª Gilma fez durante todo o percurso, foi uma pá de cal nas minhas esperanças : estávamos na primavera de 1986. Uma grande explosão de um vulcão no oceano pacífico havia espalhado toneladas de cinzas na atmosfera do planeta e, por causa disso, os poentes e as auroras apresentavam uma coloração vermelha de inusitada intensidade e cuja extensão cobria quase um terço do céu. Chamei a atenção da Drª para esse espetáculo. Ela sequer olhou o horizonte, se limitando a comentar :
_ O Sol se levanta e se deita rubro de vergonha com o que vocês fazem de noite aqui no interior!
Depois desse ríspido comentário, não disse mais nada, apenas olhava-a de soslaio. Era mais fácil para ela faxer um tarado se envergonhar do que fazer meu amigo recuperar a virilidade ; mas eu nada entendia da psicologia de Melaine Klein que, na entrevista ao telefone, ela me disse ser a sua especialidade. Ao entrar na fazenda pude observar outro raro fenômeno, desta vez, muito provavelmente, causado pela minha mente excitada. As franjas da noite já encorpavam o crepúsculo agonizante sobre a estrada. As árvores, feito choupos em um pântano mal-assombrado, pareciam curvados, os galhos caídos e os troncos inclinados. A cerca de arame..., como se uma boiada houvesse passado por cima delas deixando-as flácidas e perpendiculares ao capim quebrantado. A porteira da sede, o frondoso gravatá, o telhado da casa, tudo parecia desmanchar sob o peso da gravidade conspirando uma enfeitiçante cumplicidade da natureza com o seu proprietário que sofria há anos de frouxidão nas pudendas partes. Esse detalhe sobrenatural avivou-me a crença de haver algo fantástico na origem daquele ‘causo’ que justificasse uma novela bem contada. Deixei a sisuda Gilda Melasso aos cuidados de seu anfitrião paciente e voltei para a cidade com uma lista de compras pedidas por meu melancolico amigo, preocupado com finas iguarias que pudessem agradar a sua hóspede oriunda da sofisticada capital do estado.
No outro dia cedo fiz as compras e pedi que o dono do armazém se encarregasse de entregá-las. Eu iria adiar minha visita para deixá-los mais a vontade, mas um episódio inesperado precipitou meu estouvado retorno a fazenda de Nicanor Ferraz. Ao vasculhar meu carro em busca de não-sei-o-quê, deparei-me com uma frasqueira que Drª Gilda havia esquecido no carro. Levei comigo à sala e, pensando que ali pudesse haver algo de preemente necessidade, resolvi abrí-la, o que fiz sem muita dificuldade. Surpreendeu-me sobremaneira seu conteúdo. Um grande frasco de pimenta baiana em pasta, um estojo cilíndrico de trinta centímetros de comprimento aproximadamente e um exemplar de « Satiricon » de Petrônio, o clássico latino do erotismo romano no seu agonizante e lascivo declínio. Passeei os olhos no livro empolgante e quase de madrugada, embriagado pela leitura voraz, deparei-me com o sentido de tão insólito conteúdo da frasqueira : O personagem desse livro, Eumolpo, um sibarita e libertino comensal das orgias romanas, torna-se subitamente um impotente e busca desesperado por uma cura. Uma feiticeira africana aplica-lhe um aberrante e eficaz tratamento. Mergulha um falo de couro por vários dias em uma infusão de pimentas, em seguida, introduz o oleoso, enorme e ardente falo no ânus do coitado que dispara urrando de dor pelas ruas de Roma até descobrir, esbaforido, que uma medonha ereção o havia acompanhado por todo o seu calvário e que ele estava, por fim, curado. Não precisava ser nenhum paranóico para entender quais eram os métodos e intenções da Drª Gilda Melasso. ‘Que vigarista!’ Pensei comigo mesmo. Abri o cilindro que havia na frasqueira e confirmei minhas suspeitas. Um falo de couro enorme e envelhecido como prova de que já fora usado muitas vezes. Aquela pilantra vivia então aplicando esse escabroso golpe nos pobres impotentes da Bahia e, quem sabe, do Brasil inteiro! Amanhã mesmo ela seria desmascarada! Quase não dormi, furioso, e bem cedo, sem tomar café, parti para a fazenda a tempo, esperava, de libertar meu amigo da charlatania encomendada.
Encontrei meu amigo com um radiante sorriso no rosto, sentado na varanda e com os dedos vasculhando os dentes como se arrancasse fiapos de uma fruta, uma suculenta manga consumida no café-da-manhã! Me esforcei para aparentar naturalidade e nem sequer perguntei pela hóspede à espera de que ele tocasse no assunto. Como ele não falava outra coisa além de me contar suas repetidas piadas, abordei o tema, direto, como era do meu estilo:
_ E então? Tá mais animado? – E usei o braço em riste em um gesto inequívoco e obsceno que não deixava dúvidas a que eu estava me referindo. Nicanor Ferraz gargalhou :
_ Aquele problema não existe mais! – e completou, quase inaudível pois não tirava os dedos dos dentes – Aproveite e faça companhia a Drª Gilda que ainda não tomou o seu desejum!
Naquele exato instante, Drª Gilda Melasso apareceu na varanda, usando um robe de Chambre que reconheci como sendo da falecida mãe de Nicanor Ferraz, uma idosa que, sofrendo de Alzheimer, costumava vagar pela cidade sob o sol do meio dia usando jóias e roupas íntimas entre as carroças dos feirantes. Gilda beijou Nicanor Ferraz e me cumprimentou sorridente. Fiquei pasmo com a transformação da sisuda moralista do último encontro. Tomamos café e eu não tive coragem de tocar no assunto da frasqueira. Parece que não haveria mais necessidade de artifícios tão horripilantes. Ela gargalhava com as histórias do seu novo amante e deu-me dois tapas no ombro que quase me fizeram cuspir o bolo de puba que eu, atônito, mastigava. Na despedida, Nicanor Ferraz me chamou em reservado, entregou-me um envelope me pedindo que o levasse ao fórum da cidade para registrar sua firma no documento ali contido. Voltei para a cidade. No caminho dei carona para um grupo de cinco crianças que iam para uma escola rural e que se apertaram todas no banco de trás. No banco da frente ia a frasqueira e o envelope. Curioso, minutos depois de sair da fazenda e rodar pela estrada empoeirada, decidi abrir o envelope e ver o seu conteúdo. Era um certificado, uma espécie de diploma em letras góticas e douradas onde se lia:
O COLÉGIO PANAMERICANO DOS CHUPARINOS DE BUCETA CONFERE AO ILUSTRÍSSIMO SENHOR NICANOR FERRAZ, MEDIANTE LUVA DE NCZ$ 800.000,00 CRUZADOS NOVOS, O TÍTULO DE SÓCIO EMÉRITO E PATRIMONIAL.
Assinava o diploma a tesoureira, Drª Gilda Melasso, e o novo sócio, Nicanor Ferraz. Não acreditei nos meus olhos. Minha mente foi tomada pela imagem do meu amigo embriagado pela sua nova e nada romântica modalidade sexual. Sentado na varanda, ele perquiria os enormes dentes tentando retirar algo ali encalacrado. Não era fiapos de manga como pensei :
_ ERA PENTELHO! CARALHO! ERA PENTELHO! –Gritei! As crianças no banco de trás se assustaram. Uma sorriu crispado, outra choramingou. Enrubesci e pedi desculpas. Elas pediram para saltar. Obedeci e as deixei na estrada já próximas da escola. Apanhei a frasqueira e lancei-a sobre uma moita de mato-cipó na esperança de que nunca mais fosse encontrada. Aquele não era decididamente o desfecho que eu esperava para a minha novela fantástica que havia começado como um arremedo de um conto de fadas. Para completar a esbórnia que o destino me pregava, um velho caminhão seguia na minha frente e, entre a nuvem de poeira que ele me lançava, podia-se ler uma frase no para-choque quase apagado: « Enquanto houver língua e dedo, mulher não me mete medo!»
Nem me recordo mais o que fiz com aquele diploma de merda. Me sentia um palhaço. Se algo de relevante me ficou disso tudo, é que eu, ali mesmo, decidi que nunca mais escreveria nada, de tanto que esse episódio me deixara enojado!



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