sexta-feira, 1 de maio de 2009

Argumento BOLEROS


  • ·         Argumento do longa-metragem
    BOLEROS

    STORY LINE

    No interior da Bahia, no início dos anos setenta, um gerente de cinema corta as cenas de nudez e sexo que invade os filmes americanos. Pouco tempo depois, ele passa a sofrer de uma rara psicopatologia vascular conhecida como “priapismo”: o intumescimento do pênis com surtos intermitentes de ereção contínua, o que o leva a ser seviciado pelas abastadas mulheres do local. 


    ARGUMENTO

    1ª PARTE - A Comédia


    A história se passa no início dos anos setenta. Na cidade de Itambé-Bahia, a televisão ainda é uma vaga promessa; a vida cultural da cidade gravita em torno do Cine Fox. Este cinema, filial de uma rede de salas espalhadas por toda a região Sudoeste, consegue exibir um filme novo a cada dia e seus funcionários percorrem as ruas da cidade espalhando os coloridos cartazes do filme “da hora”.

    A revolução sexual dos anos sessenta invade as telas e começa a incomodar profundamente os setores mais conservadores da cidade. O Gerente do Cine Fox, Walter Ives , passa as tardes na sala de projeção, cortando as cenas de nudez e de sexo dos filmes vindo da capital, para exibi-los à noite sem se incomodar com os gritos de protesto da platéia. Com os fotogramas cortados, ele montava um filme desconexo de beijos ardentes, estupros e sexo explícito que, destituído de qualquer enredo, cedia seu duvidoso erotismo aos ritos da mais desbragada pornografia.

    De tanto assistir a projeção repetida destes “pics” pornográficos na posição de cócoras - ou por causa das maldições lançadas pela platéia revoltada com os cortes -, Walter Ives  desenvolve uma doença circulatória com fortes traços psíquicos conhecida como priapismo, o intumescimento e rigidez intermitente do pênis, cujas crises duram em média quatro horas.

    Walter Ives  – Louro e de olhos azuis, prematuramente abatido pelo escandaloso mal, esse protagonista sofre um surto que anula sua personalidade e seu carisma, como se todo o seu ser se enrijecesse. Ele devém expressivamente inexpressivo. No filme ele se comporta como a encarnação da própria censura que praticava. A sociedade o esconde como um tabu, ao mesmo tempo em que o elege como o totem de um orgíaco extravasamento da sexualidade reprimida.
    Para buscar a cura e esconder sua etiologia tão vexatória, Walter Ives se afasta da gerência e do convívio social, se recolhendo na casa de sua cunhada, Lubiana Borges. É quando, estando configurada a situação, a ação se desenrola até compor uma nova situação[1]. Às três horas da manhã, no prostíbulo de Linda Len, o delegado Jorge Querido é arrancado dos braços da cafetina para uma reunião urgente com o prefeito, o juiz e o padre. Os primeiros raios do Sol encontraram a rua de Walter Ives isolada por cavaletes e os vizinhos retirados até à vinda do médico -veterinário. A mãe e a cunhada de Walter Ives  tratam de acalmar o pânico suscitado afirmando não se tratar de nada infeccioso, mas relutando em explicar o que se passava pois...
    ...haviam jurado ao paciente não revelar a natureza do mal que tanto o envergonhava. Trancado em seu quarto, Walter Ives  observa os curiosos por uma fresta na janela. Deste ângulo pode ver o alvoroço dos meninos ao descobrirem na sua lata de lixo a coleção de fotogramas que ele levara anos colecionando. Os meninos apontam os fotogramas para o sol, fecham um olho e se deliciam com o desfile de estrelas nuas (...) um cortejo de seios e nádegas que a cidade nunca houvera visto graças à tesoura do zeloso guardião dos bons costumes e da moralidade. U’a multidão na esquina olha os fotogramas e tecem picantes comentários... (Eros Curiates. Romance inédito do mesmo autor, 2004)
    O intempestivo fechamento do cinema provoca, além dos protestos, uma onda de boatos sobre a misteriosa doença do gerente, fala-se em epidemias, possessão, alquimia... Boatos estes, amplificados pela participação de várias personagens secundárias:

    Edgar Dênia - Radialista que opera um sistema de auto-falantes na praça do mercado, no jardim da igreja e que explora o lado bizarro e jocoso da doença nos seus “boletins diários”. Entre seus crédulos ouvintes está:
    Carlos Carnaval - Rude vendedor de leite, de porta-em-porta, no lombo de um velho asno. Ele acredita que o gerente esteja se metamorfoseando em um jumento. Espera a oportunidade para fazer uma oferta à família do doente. Quer se aposentar e viajar com o asno falante em um grande circo da capital!
    Elso Costureiro - Homossexual assumido, colecionador de cartazes de filmes e estilista que se inspira nestes cartazes para costurar as roupas da sociedade itambeense. É desafeto do gerente por se apropriar dos cartazes espalhados, e por se sentir privado das cenas ardentes do cinema que a tesoura do gerente subtrai. Elso proclama com orgulho que tal doença é fruto de uma praga sua lançada contra Walter Ives, e que só ele pode esconjurá-la mediante a devolução de todos os cartazes da sua coleção, pela polícia apreendida.
    Dr. Carneiro - O Veterinário que, na ausência de um médico - fato comum nessa época em pequenas cidades do Nordeste Brasileiro - diagnostica e prescreve o paciente em seu avental manchado por estrume de boi.

    Jorge Querido - Delegado que investiga o ocorrido com seus métodos truculentos e Linda Len - Sua amante, cafetina do bordel “Gimba Jardim” e que tenta resolver o problema do gerente oferecendo seus carinhosos “serviços profissionais”.

    Um Fusca com vidros fumê que circula o dia todo pela cidade, com um toca-fitas "Rodstar", tocando bem alto boleros de Núbia Lafaiete, Waldick Soriano e Agostinho dos Santos. No final, descobre-se ser o carro do Capanga do Deputado Agenor Geraldo, que tem um papel decisivo no desfecho da história.
    A casa de Lubiana Borges, onde, em um quarto dos fundos, Walter Ives se esconde sem falar com ninguém, é um entra-e-sai sem fim de curiosos e de mulheres que disfarçam mal a excitação infernal que o estado do paciente nelas provoca. Uma delas, mais atrevida, estando com Lubiana na cozinha enquanto esta “passa um café”, retira da bolsa uma cédula e pede à amiga para dar uma olhadinha na “aberração”.

    Relutante, com olhos fixos na cédula brilhante, ela conduz a amiga ao quarto dos fundos, apanha uma lanterna, pede para tirar os sapatos e, após certificar que o seu cunhado ronca profundamente, adentra furtivamente no quarto. Coberto por um longo edredom quadriculado, feito uma barraca por um rijo mastro sustentada, Walter Ives  dorme, com a boca aberta que o foco da lanterna revela. Lubiana remove lentamente o edredom. A câmera fixa o rosto afogueado e atônito da intrépida espectadora.

    Uma seqüência de rostos femininos, estarrecidos e lúbricos, confirma que tais “visitinhas” se tornaram um habitual e espúrio comércio. Mudanças visíveis no cenário, nas roupas e nos modos de Lubiana Borges insinuam que a família começou a ter lucros com a falocracia latente do povo daquela cidade.

    Lubiana Borges – Abandonada pelo irmão de Walter Ives, com dois filhos pequenos, sogra e um cunhado doente para cuidar, Lubiana inventa um estratagema sórdido para “ganhar um troco” e, secretamente, se vingar de uma sociedade que sempre lhe cobra a castidade e o pudor que seu temperamento “fogoso” não pode prometer. Seus gestos são afetados e seus “tiques” nervosos denunciam uma alma neurótica. É bibliotecária municipal e lê, escondido, romances de Cassandra Rios e “catecismos” de Carlos Zéfiro.
    O estado de Walter Ives piora a cada dia. Seu sono é entrecortado por pesadelos de grotesca animalidade. O intervalo entre as crises priápicas é cada vez menor e ele passa cada vez mais tempo no quarto, sobre a cama, em catatônico torpor, como se o sangue que intumescia o órgão gigantesco privasse de oxigênio o seu cérebro. A ausência de sol provoca-lhe uma cor esverdeada, cor de casca de árvore. Em uma referência aos anos da censura, todas as cenas de nudez do gerente terão uma providencial bolinha preta cobrindo as pudendas partes. Ele se queixa ao Dr. Carneiro de freqüentes sonhos eróticos sem, contudo, conseguir atingir um orgasmo que o aliviasse momentaneamente.

    ...Em um destes sonhos, Walter Ives é um asno montado por um desconhecido durante uma parada de Sete de Setembro. A dor revoltante em sua genitália inchada é traduzida, no sonho, como a ponta do monstruoso membro do jumento se arrastando nas pedras do calçamento. Ao lado de Walter Ives, um garboso e escovado burro, montado por Dom Pedro I, exibe os dentes sob os apupos da platéia. Walter Ives está profundamente constrangido. O burro ao seu lado aconselha: Relaxa, primo! Faça como eu... sempre em frente... marchando, cagando e sendo aplaudido! (ibid)

    Dr. Carneiro sugere uma urgente transferência do paciente para uma clínica de urologia na capital, mas a família alega não ter dinheiro, apesar da visível ostentação da cunhada perversa.

    Uma noite, após dar uma "espiada" no doente adormecido, Dona Dinorah, esposa do gerente do Banco do Brasil, Retira todas as jóias do corpo, colar, brincos, anéis, pulseiras...coloca quase cem gramas de ouro nas mãos de Lubiana e lhe implora para ficar meia horinha a sós com o Walter Ives. O que se passa lá dentro não é filmado, mas a imagem de Dinorah saindo furtivamente do quarto, com as roupas desfeitas, sugere tudo. Em breve, um esquema sinistro é montado nos fundos da casa.

    A partir de então, começa as longas filas noturnas de mulheres veladas no matagal que ameaça tragar os fundos da casa como se a natureza reivindicasse o sátiro ali reencarnado. Com um providencial estilingue, a cunhada de Walter Ives mantêm apagados certos postes de iluminação, esquematiza os horários e dispersa a fila em moitas e árvores estratégicas, evitando sempre o mútuo reconhecimento de suas visitas e o subseqüente constrangimento. Em noites de lua cheia é possível vê-la conduzindo pelas mãos uma furtiva e mascarada dama pelas portas do fundo, em seu pescoço brilhando a chave de um cofre já repleto de ouro e prata, seus capciosos honorários.
    A orgia poderia se prolongar indefinidamente já que tais visitas ao catatônico enfermo, além de excitá-lo a um paroxismo de ereção e bloqueio, o mantinha também passivo e mudo sob a sanha das feiticeiras; entretanto, uma das eleitas fraquejou e quebrou a lei do silêncio que regia o torpe comércio. Em uma madrugada de abril, a cidade inteira acordou com os gritos histéricos de Dona Solange, uma portuguesa viúva e milionária, dona de um incontável rebanho de reses holandesas: _ AI, QUE ME ACABO! VALEI-ME SANTO IGNÁCIO! ESTÃO A RASGAR-ME AS COSTURAS D’ALMA! A mãe de Walter Ives invadiu o quarto e encontrou a viúva nua saracoteando e refestelando-se sobre o que sobrou do seu filho, a flácida carne branca da viúva ainda a vibrar com um bilionésimo e incontrolável orgasmo (ibid).

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    2ª PARTE - A Tragédia

    Após o escândalo, Lubiana e a familia mudam-se às pressas para a capital, levando consigo o dinheiro amealhado. Walter Ives é deixado aos cuidados de uma velha criada e um advogado é contratado para cuidar do caso. A narrativa ganha então um cunho confessional, pois esse advogado, Cassi Aguiar, ao se apiedar do paciente abandonado, assume os cuidados, levando-o junto com a velha criada para a sua casa e passa a narrar o desenvolvimento e o desfecho da história.

    CASSI AGUIAR - Além da advocacia, seu ganha-pão, esta personagem é um intelectual dividido entre sua profissão conservadora e sua paixão não realizada, a psicologia - na época, a mais liberal das ciências - tendo, inclusive, um certificado na parede de Psicologia Forense, da "Berkeley University", feito por correspondência. É gordo e calvo, de tez morena e olhos vivazes. Seu temperamento fleumático, seus gestos e atitudes denunciam o seu acurado senso moral. 
    Um dia ele é procurado por Suzette Magalhães, uma ex-amante de um deputado da região, suposto pai da filha dela. Ela o contrata para uma ação de paternidade. Esta senhora fora colega de colégio de Walter Ives , por quem este era perdidamente apaixonado. Suzette mostra-lhe um caderno cheio de arrebatadas declarações de amor. Cassi Aguiar começa a comparar fotos e datas sobre sua escrivaninha, sem saber muito aonde quer chegar. Ele acredita que as crises priápicas sejam sintomas de uma erotomania adquirida pela exposição excessiva do gerente às cenas de pornografia. Pelas fotos obtidas no colégio ele vê a profunda semelhança física de Suzette aos doze anos e a sua filha atual, Camila. Uma idéia singular e aparentemente absurda o assalta: Promover o contato visual entre a menina e o "tarado." Poderia ela lhe evocar as lembranças do primeiro amor? Poderia esse profundo sentimento espiritual e assexuado curar a hiância genital em que sua libido havia se aprisionado? Estas reflexões, ele as faz em cartas que escreve (e as lê em voz alta) a um psicólogo em São Paulo, enquanto flash-backs reconstitui a adolescência idílica do Gerente e sua amada, Suzette (a mesma atriz que faz Camila, sua filha, no tempo atual da narrativa), ao som dos boleros que toca no carro que ronda a casa:
    ...Não me interessava tanto a criança ao meu lado e sim o efeito que sua visão causaria no enfermo sob minha custódia. Teria ele vivido seu primeiro amor da forma como eu vivi o meu? Seria possível que a visão de Camila provocasse em Walter Ives uma paramnésia capaz de transportá-lo ao passado, de fazê-lo reviver um modo de desejar ingênito e assexuado? Seria esta sensação suficiente para vazar o erotismo em que seu corpo e sua alma estavam subjugados? Obviamente que promover o encontro de uma criança com um tarado seria, expresso nesses termos, um requinte de perversidade, mas eu estava seguro de ele não ser um maníaco de fato, mesmo tendo o espírito assaltado por lascivos fantasmas. Quanto á obviedade, cuidaria em ser extremamente prudente e dissimulado...(...) eu esperava que Camila pudesse ser observada em toda a sua graciosa naturalidade (...) (ibid).

    Após movida a ação de paternidade, sob o pretexto das ameaças feitas pelo deputado, Cassi Aguiar sugere que sua cliente e filha se mudem para um local mais seguro, no centro da cidade. Esse local vem a ser justamente uma casa de aluguel, vizinha á do advogado, cujo quintal podia ser visto pela janela do quarto onde o doente abandonado estava alocado. O cenário do “psicodrama” estava montado. A estratégia do Psicólogo amador começa a ganhar requintes sofisticados:
    ...A minha trama possuía um segundo fio. Mesmo que uma lembrança esteja profundamente soterrada por décadas de esquecimento acumulado, acredito que as canções que a embalaram, que a trilha sonora destas cenas perdidas pode fazê-la brotar com o mesmo viço e frescor (...) Quantas vezes uma velha balada nos faz reviver as feéricas sensações de um passado que julgávamos sem mais nenhuma cor!
    Para evocar o passado de Walter Ives, Cassi desloca-se até uma cidade vizinha, à sede da Radio Clube Guarani, onde passa uma longa tarde pesquisando as canções mais tocadas no longínquo ano em que Walter Ives compartilhava o banco de escola com Suzette, sua cliente atual e, no passado pesquisado, a colegial por quem o gerente morria de amores. Ali ele grava várias fitas-cassete com músicas de Trini Lopez, Lupicínio Rodrigues, Pat Boone, Chico Alves, grava Ansiedad na voz de Nat King Cole, Nada Além de Mário Lago, Al di la e Dinah Washington cantando Manhattan. Na volta, pede a Suzette que mantenha sua filha em casa o máximo que puder e Camila, um pouco entediada, passa as longas manhãs de sol no quintal, lendo fotonovelas, cuidando do jardim e escrevendo o que parecia ser um secreto diário...(ibid)

    Conspira a favor deles o abandono do enfermo pela família que se limitava a enviar o dinheiro das despesas e protelar o resgate para uma clínica lá na capital. O tagarelar incessante da menina funcionou como uma isca notável e logo Walter Ives  começa a sentar na cama e vasculhar durante longos minutos o quintal da sua nova vizinha, como um menino a observar passarinhos (uma tessitura sonora de canto de pássaros funciona como um sinal de esperança). Em menos de uma semana, ele já passa quase a manhã inteira sentado em uma cadeira de balanço ao lado da janela. Finge ler um jornal e a todo instante olha por entre as talas da persiana o interior da nova casa de Suzette; Pela outra janela, do quarto do Advogado, um fluxo de músicas antigas invade o espaço criando uma ilha de nostalgia e invocando um passado denso de melancólicos fantasmas. Os pensamentos do Advogado se libertam do ato de escrever e pontuam as imagens, sem, entretanto, as descrever:

    ...Quisera muito saber o efeito desta dupla aparição no espírito de Walter Ives: A mãe e a filha...Para qual delas o seu coração se orientaria? Para a esperança de um amor possível e finalmente carnal com o seu primeiro amor ou para o reino ideal da saudade, para o amor imaculado e espiritual que habita necessariamente o intangível passado do qual Camila era a sagrada imagem? Quanto de verdade haveria na lenda de serem os portugueses uma raça melancólica cuja melomania os inclina à saudade e ao fascínio pelo passado? (...) O tipo de emoção que eu esperava engendrar no coração de Walter Ives ao contemplar o clone do seu primeiro amor não era, decididamente, um sentimento infantil. A história registra uma forma de amar intensa, batizada como “amor dos trovadores” ou “Eros Curiates”: Impedidos de possuírem o corpo de suas amadas, geralmente senhoras casadas e virtuosas, tais amantes empunhavam seus alaúdes e cantavam a felicidade que um simples sorriso, um furtivo olhar de suas amadas lhes causava. Um amor imanente, sem nenhuma falta, sem nenhuma necessidade além de cantar a beatitude desse modo de amar! (...) Eu estava certo de que ao amor imanente corresponderia uma distinta disposição do corpo onde a excitação dos órgãos sexuais cedesse lugar a uma vibração, a uma febre, a uma volúpia consumada e dispersa por todas as partes do corpo e da alma, mas o desfecho trágico deste caso abortou o meu aprendizado (ibidem)
    O estilo empolado de seus argumentos, em cartas registrado, ajuda a reconstituir o espírito da época. Ao mesmo tempo em que o psicólogo amador evolui, o advogado se complica. Muitas mulheres da cidade, arrependidas, pressionam a família de Walter Ives pelo dinheiro e jóias perdidas alegando que foram extorquidas. Muitos maridos querem o sumiço do gerente, por ciúme, vingança e queima de arquivo. A cunhada de Walter Ives manda-lhe um cheque para ele protestar. Trata-se de um cheque da esposa do deputado, supostamente pago por esta em troca de uma noitada com o súcubo nos fundos da casa. O deputado, por sua vez, perde o caso de paternidade e é obrigado a pagar pensão à sua filha natural. Agora ambos, Cassi Aguiar e seu cliente/paciente Walter Ives , têm motivo para temer o capanga do deputado que ronda a casa o dia todo com seu fusca em vidros fumê tocando seus tristes boleros.

    No final de uma ensolarada manhã, ao voltar à casa para um rápido almoço, Cassi Aguiar para em frente ao quarto de Walter Ives e troca com ele algumas palavras. Ele está bem animado e, ao mesmo tempo, profundamente sentimental. O velho cobertor quadriculado em volta do corpo indica volumosamente a renitência do seu mal, mas seu rosto parece desanuviado como se um raio de esperança nele brilhasse. Cassi vai ao seu quarto e liga o gravador com as velhas baladas no volume máximo. Acena para Camila que, já vestida com a farda do colégio, estende no varal de sua casa uma úmida toalha. O Advogado elogia suas roseiras e pede que avise a sua mãe sobre as boas notícias prometidas. Tudo indica que o pai de Camila seria obrigado a assumir uma série de novas responsabilidades. Quando volta ao corredor, vê Walter Ives debruçado na janela aparando uma rosa que a doce Camila havia colhido e tentava lhe atirar lá de baixo. É quando se ouve a velha senhora que cuida de Walter Ives gritar na cozinha e passos velozes na sala. Cassi Aguiar volta-se a tempo de ver, ás suas costas, o capanga do deputado com uma escopeta descomunal para ele apontada. Mal tem tempo de se jogar ao chão. Ouve-se um estampido seco e uma nuvem de chumbo passa sobre sua cabeça como um vento quente e sibilante. Walter Ives grita e leva a mão ao peito. Cassi corre até o sótão em busca do seu winchester, mas já se ouve os pneus de um carro em fuga disparada. Ele corre de volta ao quarto do gerente e o encontra morto com uma rosa ensangüentada no peito. Ele hesita e se agacha ao lado do corpo, sem saber se o tiro lhe era destinado como prêmio no processo de paternidade ou se o deputado quisera silenciar o homem que, supostamente, tanto prazer proporcionara à sua esposa. O cobertor ao lado de Walter Ives  não cobre mais nada. Seu pênis (agora em close e sem a tarja preta) está pequeno e encolhido como um amendoim.

    No enterro do gerente, toda a cidade e família comparecem. A cunhada aos prantos, o deputado e esposa, as mulheres da cidade que o seviciaram. A câmera fixa, atrás de um poste, acompanha o cortejo. No poste enquadrado, está colado um cartaz subversivo da época, a célebre foto em preto e branco de Che Guevara, com a legenda: "Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamais"! Na sua última fala em off, enquanto passa o féretro de Walter Ives  rumo ao cemitério, no que parece ser sua última carta sobre o caso ao amigo paulista, Cassi Aguiar indaga em um tom que sugere já estar o caso há muito tempo, no passado, enterrado:

    Teria sido o tiro no peito que pusera fim a sua monstruosa ereção intermitente que já durava quase um ano? Pelo que aprendi no breve curso de medicina legal, a morte produz um enrijecimento súbito e o cadáver preserva até à decomposição a postura que teve ao morrer, mãos crispadas, olhos abertos... Quem faz autópsia ou prepara um funeral sabe a dificuldade que há em cruzar os dedos do cadáver, costurar as pálpebras... Estou quase certo que, minutos antes de morrer, ao receber uma rosa lançada por Camila, Walter Ives se lembrou do primeiro amor e senti-lo outra vez, em sua sensação original, devolveu-lhe a saúde, se é verdade que o erotismo é a doença específica do homem moderno. Se a sua cura fora definitiva ou se duraria apenas o tempo de um sentimento redivivo, nunca saberemos. Quanto a mim, não iria ficar ali para saber se o tiro me era destinado ou se fora um serviço de um exímio e impecável profissional. Providenciei o enterro, passei o caso já quase resolvido de Suzette para outro advogado e me mudei para a capital do estado onde hoje trabalho e procuro nunca me envolver com a vida de meus clientes, fato que me proporciona a fama que trago de ser um rábula desalmado (ibid).
    FIM
    [1] Segundo o esquema SAS’ (situação – ação – situação linha). Cf. “A Imagem-Movimento”, p. 8-9, Deleuze, Gilles. Ed. Brasiliense, 1996 – São Paulo.

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