Certamente, escondido e não-catalogado em alguma empoeirada e borgeana biblioteca, há de existir um pequeno compêndio escrito por um destes arautos do tempo, mistos de historiadores e fabulistas, tratando sobre a origem e o significado de um dos mais emblemáticos apetrechos do homem maduro: a bengala! Penso em Marc Bloch e seus reis taumaturgos, em Georges Dumezil e seus inventários dos palácios hindus, no próprio Borges supracitado, curioso e sem fôlego para minuciosas genealogias, em Mircea Eliade às voltas com um incêndio na Biblioteca de Chicago onde quase fora consumido pelas chamas junto aos seus pergaminhos mágicos... Um eventual fichamento meu sobre este livro imaginário começaria assim: _ Na mesma proporção com que aumenta a vida média do homem moderno, os estudos científicos se multiplicam sobre os problemas típicos do envelhecimento, um deles, a sarcopenia, a perda gradual de musculatura ou "massa magra". Tal declínio compromete gravemente a mais conspícua função cerebral do homo sapiens: o equilíbrio! Assim como foi o ato de ficar em pé, sobre duas pernas, que inaugurou a espécie, perder este equilíbrio torna-se a mais trágica condição anatômica do ser humano. De que nos serviria todas as outras e nobres funções, como digerir, enxergar, falar e sentir, se, prostrados no solo, fôssemos presas fáceis para nossos predadores na origem dos tempos em que fomos modulados? Para evitar o declínio do equilíbrio causado pela perda de massa muscular nas pernas e quadris, nosso cérebro passa a sequestrar neurônios e redes neurais de outros córtices para garantir sua postura cardinalícia. A consequência funesta desse desvio é o surgimento e o agravamento de doenças cerebrais degenerativas, tais como Parkinson, Alzheimer, demência, afasia, surdez, perda de olfato, visão lateral e paladar, ainda que de outras etiologias e apenas como causa ancilar. Alguém ainda se lembra da antológica cena do filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço, do Stanley Kubrick, quando um macaco joga para o alto um osso e inaugura o phyllum tecnológico que levaria o homem às estrelas? Assim que aquele osso caiu, um outro erectus mais envelhecido o apanhou e começou a usá-lo como um arremedo de bengala! Um outro phyllum vicinal teve início e tornou-se o sucedâneo de todas as tecnologias inventadas: muletas, báculos, cajados, cetros... No meio da vida em diante, era sempre para o osso primitivo que os homens se voltavam, depois de construírem zigurats e armadilhas, navios e oficinas... O apoio desta terceira perna - já protagonista de lendas antiquíssimas como no enigma da Esfinge de Tebas - vai permitir ao homem um reforço no seu equilíbrio, mas também outro efeito mais sutil, diagnosticado só agora, aqui debaixo desse pé de bananeira onde escrevo: o bastão engana o cérebro e lhe faz devolver os neurônios sequestrados para a coordenação motora! Envia-lhe uma mensagem de que está tudo bem e, com isso, as outras funções cerebrais retornam ao usufruto de tão precioso substrato. É muito provável que os homens antigos, antes desta moda ridícula de homens atléticos vendendo saúde por todos os poros se instalar na sociedade ocidental, nossos bisavós já tivessem esse pressentimento de que uma bengala era muito mais oportuna e eficaz do que ridículas piruetas em academias de pilates! Era comum a homens com menos de cinquenta anos o uso de uma elegante bengala em cedro ou peroba esculpida, dando-lhes uma compreensível sensação de juventude e majestade! Gosto de imaginar que a queda dos impérios e monarquias começou quando os monarcas começaram a abrir mão dos seus cetros reais e a dançarem o Charleston - o que culminou nesse ridículo Rei Charles que um dia, na juventude, teve sua bunda apalpada por uma cantora da banda Space Girls (fico imaginando quantas navalhadas uma cortesã inglesa levaria se fizesse isso com um plantageneta tipo Ricardo III!) -, ou as teocracias, quando seus sacerdotes, de origem campestre, deixaram esquecidos ao lado do trono o velho garrote com os quais garroteava homens e ovelhas no pasto, ou mesmo quando os profetas, que se achavam eternos por terem um cérebro sempiternamente rejuvenescido - por obras milagrosas de Deus ou de um bem esculpido pedaço de pau - trocaram seus báculos por um prato de lentilhas ou de mingau!
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