sábado, 5 de fevereiro de 2022

A LEBRE DA DISCÓRDIA!



Naquela manhã dourada, iluminada pelo Sol nascente e pela luz diáfana do paraíso a poucas milhas dali, Caim dirigiu-se para a sua lavoura e o seu bom humor, que já não era tão vigoroso, se acrisolou de vez quando viu o estrago que uma lebre havia feito na sua horta. Para sua sorte, ou azar, percebeu no alto de um entulho, o corpo alvo e peludo da lebre a roer o que restara de uma gorda cenoura. Caim, impulsivo como um trovão tão logo caia o raio, apanhou seu cajado e partiu em disparada em direção à lebre que não esperou ele se aproximar, embrenhando-se pela campina em saltos que percutiam feito um tambor sobre o macio capim. Caim olhou o prado florido que contornava o muro proibido e percebeu que tinha chances de apanhá-la. Finalmente ficaria livre dessa praga que vinha devorando sistematicamente suas hortaliças, como um castigo extra no pacote de condenações recebidas pelos seus pais, Adão e Eva. Partiu celerado com o cajado abrindo as touceiras de capim e pulando quase em sincronia com o animal assustado. Quanto mais corria, mais animado ficava, pois vivia curvado sobre as leiras e canteiros, cavoucando a terra, suplicando ao inclemente céu que lhe desse o orvalho divino pois que naquela época, sabemos pela Bíblia, ainda não havia chuvas no mundo, não antes que Noé, seu distante descendente, fosse ridicularizado pelos homens ao avisar que iria cair água dos céus. Correr livre, ou quase, a perseguir uma lebre serelepe, era mesmo muito divertido. Caim até deu uns gritinhos ensaiados, huák,huak, huák, que tantas vezes ele havia visto e censurado nos lábios do seu preguiçoso e perdido irmão, Abel. Nas duas ou três vezes que esteve perto de capturá-la, sentiu que até mesmo evitava dar o golpe certeiro, se contentando em bater com o cajado no dorso do animal, como se fosse ela uma bola e a caçada uma divertida partida de futebol, se de futebol ele entendesse! Logo percebeu que o animal possuía um dom que ele não compartilhava, um fôlego inesgotável, e Caim viu a lebre se perder na distância do prado florido. Ofegante, decidiu  parar de se divertir e dar o golpe mortal, acabar de vez com aquela abominação. Suas pernas, entretanto, finas e atrofiadas, não suportaram o desafio e começavam a fraquejar. A lebre também não era nenhum animal fabuloso e, mesmo sendo apenas a trecentésima descendente da primeira lebre criada, ainda não corrompida pelo desgaste das infindas gerações, também começou a dar sinais de cansaço. Viu uma moita perto de um carvalho e ali se entocou esperando escapar do perseguidor. Desafortunadamente, para ela, justamente ali, descansando à sombra da faina copiosa, jazia Abel a sonhar com caçadas e tiros certeiros nos prados limítrofes do Éden. Mal ele abriu os olhos, como se desperto pelo fremir do animal, viu suas duas orelhas longas pra fora do arbusto a sintonizar os ruídos ao redor. Sem titubear, Abel segurou o animal pelas orelhas, puxou-lhe para o alto e se exultou com o divino presente que seu Avô Elohim, louvado seja, lhe ofertou naquela linda manhã! Correu para casa, pensando já nas ervas em que cozinharia a lebre de olhos rosáceos quando passou pelo ofegante e mau-humorado Caim. Este, quando viu o resultado da sua insana correria nas mãos do irmão oportunista e folgadão, perdeu a paciência e partiu para cima de Abel disposto a tomar o que era seu....

O resto da história já nos é assaz conhecida!


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