domingo, 21 de março de 2021

NEGO, MAS NÃO DEVO!



   

No início da década de 90, do século passado, vivi por alguns anos no Bairro do Rio Vermelho, em Salvador e privei-me da amizade com o escritor Jorge Amado - estando ele já idoso e eu ainda em busca de um estilo literário - que findei por desistir de encontrar, e hoje escrevo como um estes secretários de alguma obscura prefeitura municipal. Jorge Amado possuíra um grande amigo de juventude, o médico Auterives Maciel, meu professor e médico da nossa família, na cidade de Itambé-Ba. Separado pelas profissões e vidas consumadas, Jorge gostava de relembrar casos fictícios ou não (que verdadeiro escritor se prenderia a este critério imbecil e dualista quando o assunto é a memória?) do seu colega. Este que transcrevo é um deles. Transcorria o ano de 1943 e o jovem Auterives Maciel cursava a Escola Baiana de Medicina quando ocorreu um devastador incêndio no Mercado Modelo, na Praça Cayru, famoso logradouro turístico de Salvador. Os estudantes correram ao local para auxiliar a equipe de médicos e bombeiros que tentavam salvar os queimados. Auterives fora escalado para trabalhar na triagem dos corpos que chegavam em macas improvisadas e avaliar o estado e destino da vítima. A depender do grau de queimadura, o estudante indicava a enfermaria, a UTI, o necrotério ou apenas um curativo e a pronta liberação para a vítima ir embora. Os enfermeiros ouviam o diagnóstico sagaz e veloz do jovem estudante e o obedecia sem contestar. Somente uma voz dissonante desafinou o lúgubre concerto feito de gemidos, prantos e crepitar de chamas, mas não a voz de qualquer um dos enfermeiros e sim de uma das vítimas. Estressado e dono de um temperamento fleumático que evoluiu com o tempo para uma irritabilidade quase neurastênica, Auterives examinou um jovem rapaz todo chamuscado da cabeça aos pés e prontamente ordenou aos maqueiros:

_ Necrotério! Tá mortinho da Silva!

Sem poder abrir os olhos, cujas pálpebras queimadas haviam colado, formando uma única e inflamada pele, o pobre feirante conseguiu reunir forças e murmurar:

_ Não estou morto, não Doutor! Tô morto não!

Auterives recebeu aquela voz cadavérica como um signo da recalcitrância e perversidade da matéria sempre fugidia e rebelde aos preceitos e prescrições da augusta ciência de Hipócrates. Uma afronta e um escárnio com o exausto voluntário e nesta hora cercado por jornalistas e curiosos a observar seu desempenho clínico.

_ E quem é você para contestar meu diagnóstico? Onde você andou lendo e estudando sobre Medicina? Morto, sim! Mortinho da Silva! Tratem de levá-lo ao necrotério!

E dobrando-se de risos, Jorge Amado se comprazia, certamente em se vingar jocosamente e com décadas de atraso, de alguma peraltice contra ele praticada pelo saudoso amigo. Eu fui movido por outro motivo a registrar isso: o pressentimento de ter identificado nesse obscuro e impertinente feirante queimado, nos trapos inúteis das lembranças vagabundas, o arquétipo dos primeiros negacionistas, afinal, como é possível, minha preta, negar que se está morto quando um médico tão categórico e distinto assim o determina?


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