domingo, 3 de novembro de 2019

A CHAMA ETERNA!


     


    A História começa em uma era indefinida, remota e ancestral. O cenário é tempestuoso, pulsional e selvagem. Um pastor em busca de uma ovelha desgarrada encontra uma pequena caverna no flanco de uma montanha e resolve explorá-la. É surpreendido com gigantescos salões contíguos, cavernas atrás de outras cavernas, amplamente iluminadas pela luz bruxuleante de incontáveis velas acesas e espalhadas pelo piso, entranhas e anfractuosidades do lugar. O pastor segura um amuleto no pescoço, faz uma desconhecida oração a deuses também ignotos e segue vasculhando o local, atônito e, momentaneamente, esquecido da ovelha perdida. Vaga pelos espaços rasos entre as velas e é tomado por estranhos sentimentos que parecem guiá-lo enquanto sua sombra alongada desliza sobre o tapete de chamas como se feita de substância não-inflamável ou se sobrenatural fosse aquela luz que das velas emanava. Parecia sonhar, um sonho com franjas de pesadelo quando encontrou uma pequena vela sobre um estalactite feita de parafina escorrida e calcário polido. Ajoelhou-se perto dela e viu que ela estava quase se extinguindo, o fim do pavio já antevisto na poça de inefável cera consumida e ainda quente. Algo na sutil fumaça exalada, nas volutas desenhadas no ar opressivo e quase irrespirável, arrebatou sua alma: cenas recentes da sua vida iam se desenrolando à medida que a vela queimava! A única refeição feita de um pedaço de carne assada, envolta em folhas, sob uma árvore de troncos retorcidos, a ida por uma trilha de gerânios ao ribeiro de água murmurante, a aflição ao dar por falta da ovelha no cercado... O seu dia ia se desenrolando ali, na fumaça, feito um filme mágico, desses filmes que projetamos mentalmente quando sonhamos estar no cinema e vemos na tela fragmentos de imagens em um rebut de absurdos e íntimos significados! Não demorou muito para que o pastor, maravilhado e preservado em inocência pelo mundo primevo em que vivia, vinhesse a intuir aquela vela queimando como um fetiche da sua vida substancializada, ou algo parecido, pois que há muito tempo que o mundo se dessacralisou e ninguém mais possui a intimidade com o sobrenatural, exceto em seus sucedâneos literários como o que esta peça se esforça pra ser. Mas o nosso pastor era acostumado com todo tipo de ritual e encantamentos da vida pré-histórica, o suficiente para tocar os rudes dedos sobre a vela ardente e, imediatamente, sentir todo o seu corpo estremecer. Se alguma coisa, algum conhecimento esotérico ou o puro instinto orientou doravante seu impulsivo gesto, não sabemos, mas os movimentos catatônicos e hieráticos pareciam brotar de uma espécie de transe. O garoto arrancou a vela do pequeno barranco onde estava. Seu corpo inteiro tremia como se transpassado por uma dor lancinante e espiritual. Tomando o máximo de cuidado para não apagar a chama, cujo tremeluzir parecia fazer seu corpo ondular no mesmo movimento, como se estivéssemos em um drive-in em que a tela sofresse o assalto de uma ventania inopinada, ele arrancou com as unhas o fundo da vela até permitir que um considerável pedaço final do pavio ficasse exposto. Com precisão cirúrgica, se orientando talvez pelas cenas que outras velas desenhavam em suas espirais de fumaça diáfanas e fantasmagóricas, o jovem de dedos taumaturgos escolheu uma grande vela há poucos metros de onde estava, de cera viçosa e brilhante, de chama equilibrada e encorpada por cuja fuligem expelida podia-se ver o fausto de uma vida senhoril e pujante, um caçador celebrado e triunfal. O pastor fez um laço com a ponta do pavio da vela da sua vida, passou-a rapidamente sobre o pavio da outra que queimava e apertou o laço unindo-as em um abraço coevo e possesso. Em seguida colou o fundo da sua sobre a outra e pressionou até formar uma única vela enxertada, duas vidas que se emendam! Na fumaça da vela vigorosa e agora extinta, pode ver a cena de um desmaio, uma sincope inesperada do seu proprietário em algum lugar do vasto e desconhecido mundo. Em seguida, como se blindado por um suplemento generoso de vida e alma, o jovem pastor de nome Mercuzzo sentou-se ao lado da sua industriosa magia e esperou imóvel que sua vida se consumisse e o fogo migrasse para a vistosa vela do desconhecido caçador. Uma eternidade se passou naquela hora e meia que lhe restava de vida e, com o tremeluzir da chama que se apagava, ele começou a desfalecer sobre o piso frio da caverna, revendo cenas de sua vida que a fumaça espessa da chama moribunda ia encenando simultaneamente aos enfadonhos momentos da hora extrema. Viu a si mesmo adentrando a caverna e manuseando a vela da sua vida na outra escolhida. Depois não viu mais nada caindo em sono profundo como se um vaso se rompesse em seu cérebro inundando-o de sangue e embotando sua consciência. A chama chegou mesmo quase a se apagar, mas logo, como é do seu feitio, aderiu-se com volúpia ao novo pavio emendado e começou a lamber o sebo místico da outra vela ainda quente sobre a qual ela havia sido operada.
Há oitocentos quilômetros dali, em uma rude e ampla palafita sobre um lago nebuloso, o líder de uma legião de caçadores mongóis dormia ao lado de duas belas mulheres, uma delas acorrentada, como se prisioneira de guerra ou sequestrada no caminho. Na verdade, após um sonho macambúzio e cheio de presságios, o guerreiro magiar morreu dormindo, sem um suspiro de dor ou confissão a ninguém, no exato instante em que a sua vela, na caverna misteriosa, após sofrer a emenda de outra sobre ela, se apagara. Quando acordou, não era mais ele e sim o jovem pastor Mercuzzo, que ficou quase vinte minutos com os olhos arregalados para o quarto cheio de armas e apetrechos empilhados, pessoas espalhadas a roncar e uma irônica vela de sebo a arder sobre um castiçal feito de chifres de bisão. Sua primeira reação foi fechar a boca e não falar nada, simulando estar doente quando as mulheres acordaram ao seu lado e o encontrou sentado no leito, olhando maravilhado para seu novo corpo e para tudo ao redor. Sua prudência e estupor fora logo interpretados como sinais de uma epidemia que então grassava solta nas estepes onde aquele povo errava há muitas luas. O curandeiro fora chamado e logo todo um aparato de cuidados e reverências dispensado ao novo hospedeiro do corpo do grande guerreiro morto. Mercuzzo, agora chamado por todos de Betralf, o Urso, cuidou de aprender os rudimentos da língua magiar onde viera reencarnar. Parte da sua mente estava mesmo confusa e atordoada, mas os instintos de sobrevivência assumiram o comando da situação. Duas crianças do grupo de caçadores passavam o dia inteiro ao lado dele, no leito e, com elas, ele aprendeu rapidamente a língua nativa. Soube quem era, seus pais e seu povo. Agia como alguém que perdera a memória e lentamente ia recuperando. Na primeira oportunidade em que sua liderança fora desafiada por outro caçador impetuoso, Betralf pode reconhecer também sua força descomunal, ao quebrar o pescoço do desafiante em um duelo cercado de gritos, odres de vinho cru e torcidas frenéticas que o carregaram pelos ombros até um trono improvisado sobre uma das carroças, confirmando a sua liderança de sempre e comemorando a sua cura definitiva. Betralf, contudo, nem por um segundo esquecera quem fora um dia, um selvagem pastor em um vale de montanhas geladas nem do seu povo amado, chamado por ele de Frígios. Decidiu que iria caçar nas terras desse povo e convenceu seu bando a irem com ele nessa nova aventura. Alguns desistiram e tomaram o rumo das terras do Oeste, de onde vieram. Temiam o inverno nas terras altas onde seu líder esperava encontrar esse povo. Duas dezenas de caçadores restaram com ele e se deixaram levar pelas visões descritas por Betralf de vales perfumados e prados sem fim na primavera, do povo acolhedor e das lareiras acesas por toda a longa noite invernal, das bebidas e comidas de sabor embriagador. O que todos tomavam como visões do líder, transformado após a doença em um xamã espiritual, nada mais era do que a saudade e a memória do antigo pastor Mercuzzo vivendo a vida plena no seu novo corpo. Mas havia algo mais do que a saudade do seu povo e do seu lugar: Betralf queria encontrar a caverna outra vez, adentrar seus encantados átrios iluminados de velas inumeráveis, confirmar seu antigo corpo lá deitado e, avidamente consumido por  esse desejo, saber quanto tempo de vida ainda teria nessa sua nova existência, repetir sua cirurgia taumatúrgica passando a chama para outra vela e, maravilha de todas as maravilhas, tornar-se um imortal! Basta-nos por hora dizer que durou mais de duas décadas essa sua busca pela terra dos Frígios, vagando sem mapas por lugares nunca antes percorridos e em busca de um povo reservado, circunscrito a uma região remota nos confins das terras nórdicas. Metade dos seus acompanhantes veio a desistir, alguns morreram no caminho, mas sua perseverança foi recompensada e, em uma fria manhã de outono, seguindo informações de um velho mercador de peles, chegou ao vale onde viveu sua infância e juventude, agora irreconhecível no corpo de um largo e majestoso caçador do Oriente. Não quis guerrear com seus envelhecidos parentes e amigos. Reconheceu muitos deles, inclusive sua mãe reclusa em um leito de doente e foi a única vez que revelou o seu segredo, contando para ela, no leito de morte, quem era ele, o que tinham vivido juntos, todas as lembranças de cenas inesquecíveis e prometeu ir à caverna mágica encontrar a vela da sua mãe e mudar para outra pessoa mais nova. Sua mãe ficou estarrecida e temeu estar ficando louca diante daquela aparição que, instintivamente, sabia ser seu filho. Julgou estar sendo assolada por algum demônio e implorou perdão, para ela e para seu filho desaparecido. Quando, enfim, pareceu haver algum sentido na narrativa maravilhosa pelo visitante contado, na exuberância de memórias, ela se entregou em prantos ao ombro do filho milagrosamente redivivo, mas recusou peremptoriamente participar dessa feitiçaria por ele descrita, alegando a obviedade do assassinato, do roubo de outra vida, coisa para o qual ela jamais ousaria fazer ou mesmo aprovar que seu filho pudesse ter feito. Morreu duas semanas depois, amargurada e olhando com estranhamento para Betralf, implorando para que tudo aquilo não passasse de um pesadelo e de um castigo dos deuses. Após este episódio, Betralf ficou mais temeroso em compartilhar seu segredo monstruoso e desesperadamente ávido por encontrar a caverna das almas incandescentes como a batizou na sua nova língua: "urspruurargast ewas lantir"! Saía todos os dias sozinho, para supostamente caçar, e vasculhava todos os meandros dos lugares por onde passou naquele dia nebuloso de inverno até que sua perseverança veio a ser recompensada. Encontrou a passagem estreita entre dois rochedos cobertos de tufos espinhosos, sob uma ravina tortuosa. Ao adentrar, recordou as emoções da primeira visita como um intrépido e responsável pastor de ovelhas e agora repetia com um temor inaudito, sentindo a presença de forças e deuses que antes sequer poderia suspeitar. Descalçou as botas de couro de alce e deixou no solo suas armas. Orou para tudo que sabia e aprendera nas duas vidas pregressas e encontrou sem dificuldades o caminho trilhado no passado. As lágrimas vieram aos olhos quando viu o cadáver do pastor que fora um dia, deitado como naquela noite mágica de tempestade. Precisou ver isso, para além da caverna fantasmagoricamente iluminada, do seu povo e sua mãe reencontrada, para se convencer de não estar vivendo um sonho ou possessão de espíritos, como viveu todos esses anos, dilacerado por estas duvidas. Ali estava, insepulto e praticamente preservado pelo palor sobrenatural daquele altar inexplicável, o corpo que ele foi um dia. Tocou os braços, o rosto imberbe e que ainda guardava os traços hirtos do assombro vivido nos seus últimos momentos. Olhou para a sua vela acesa perto do cadáver. A chama ardia com equilíbrio e vigor. Ainda havia um bom pedaço para arder, uma vida longa e bem escolhida. Um alívio e um frêmito de poder incontrolável percorreu todo o seu corpo. Finalmente, havia acessado a câmara da imortalidade! Iria soterrar mais pedras e espinhos na entrada da caverna, explorá-la ao máximo, aprender seus segredos e suas leis. Se preciso, encontraria outros discípulos dispostos a viver eternamente, como ele, ao preço de outras vidas sacrificadas. Nem era mesmo sacrifício, pois a cirurgia das velas simplesmente acumulava memórias e vidas sem anular nenhuma. Nada na vida dele, Betralf, veio a ser anulado ao se fundir com a do pastor Mercuzzo, apenas as fumaças das vidas dissipadas misteriosamente seguiam unidas pelo fio de uma memória transcendental, um eu composto de metempsicoses vivendo indefinidamente e acumulando conhecimento. A Imortalidade estava em suas mãos e ele teria uma vida quase infinita – até que pudesse contar o número de velas e saber se elas não brotavam em quantidade sem fim, como suspeitava – para adquirir o conhecimento universal e se tornar um deus! Ébrio e tremendo dos pés à cabeça, recolheu seus pertences, improvisou um tumulo para seu antigo corpo e saiu do templo para realizar seus planos. Sabia, pelo tamanho do toco que lá dentro ardia, que estava ainda pleno de vida, e vida em abundância!
FIM DA PRIMEIRA PARTE
(
Escrito na noite de Halloween, 2019, Vitória da Conquista-Ba)

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