domingo, 9 de junho de 2019

FOME ZERO (Argumento para uma História em Quadrinhos)





      
Era uma ensolarada tarde de verão quando Raflita saiu para ir lanchar na casa de sua melhor amiga, Bia, que morava à duas quadras de distância. O que ela pensava no caminho? Nas flores roxas do ipê-roxo? No vestido que usaria domingo no cinema, ou no gosto estranho do nariz daquela bruxa que ela sonhou mordendo e arrancando um tampo? Não! Ninguém sabe o que pensa uma garota de onze anos... Só sabemos que algo muito estranho lhe acontecera quando, minutos depois, chegou na casa da amiga impaciente a lhe esperar no portão: Seu apetite havia desaparecido num piscar de olhos! Lembrava bem ter sido ela quem ligara para Bia e fizera a sugestão de um lanche “de arromba”, pois assim era a sua fome e não havia nada gostoso para se comer em casa; mas agora, com o lanche pronto sobre a mesa, milk-shake, crepe suzete e brigadeiro, o apetite D-E-S-A-P-AR-E-C-E-R-A! Foi quando Bia, da mesma idade, mas menos distraída, teve a brilhante idéia:

_ Vamos procurar ele! Se você  perdeu o apetite entre a sua casa e a minha, ele não deve estar longe!

As duas não pensaram muito e refizeram o percurso até a casa de Raflita. Possuíam a solenidade de crianças brincando e um ar maroto de quem procura não-sei-o-quê. Na segunda esquina, encontraram um menino chorando no meio-fio. Bia o interpelou:

_ O que foi que aconteceu?

_ Buáá! Meu sorvete! Roubaram meu sorvete! Buáá!

_Quem roubou o seu sorvete?

_ Não sei! Só vi um vulto passando! Quero minha mamãe!

_Vamos, Raflita, rápido!     

De mãos dadas, sobre sandálias de saltos enormes, as duas correram na direção indicada pelo menino até a porta de uma lanchonete. Ali, uma confusão parecia ter se instalado: cadeiras viradas, prateleiras derrubadas e clientes indignados em volta do balcão. Algo monstruoso havia passado por aquele lugar, devorando os sanduíches, sorvendo os milk-shakes e acabando com as batatas fritas ainda na frigideira... Um cliente de óculos disse ter ver visto o vulto bem de perto. Parecia uma criança gorda, com quase dois metros de altura e o rosto cheio de espinhas. Enquanto descrevia o vulto para um sonolento policial, olhou para Raflita no passeio e disse:

_ Parecia com essa garota, mas enorme, gorducha e meio transparente!

Todos olharam para Raflita, agora vermelha de vergonha, quase confessando ser a culpada por tudo. Bia lhe arrastou pelo braço e tentava consolar a amiga no caminho para casa.

_Não fique assim, minha amiguinha! O apetite sempre volta. É sempre assim. Vamos ficar quietas e ver tv, e não fale nada para ninguém!

Entraram em casa em silêncio, subiram para o quarto de Bia e ligaram a TV. Em todos os canais,  em edição extraordinária, repórteres alertavam sobre o estranho monstro que invadiu a cidade. A cada instante ele ficava maior. Quanto mais comia, mais fome tinha. A tv mostrava as lanchonetes destruídas, os supermercados arrombados, os restaurantes apinhados de clientes na porta reclamando... um garoto, com um celular, chegou a filmar o monstro sobre uma feira-livre, semelhante à um redemoinho, destruindo barracas inteiras de frutas e legumes.

_Ai! Que vergonha! Tudo culpa minha! Vou ser expulsa do colégio, no mínimo! – Raflita estava inconsolável e ficou mais ainda quando viu um retrato-falado do seu apetite, agora em monstro transformado e parecendo com aquela sua tia-avó que a mamãe dizia ser a sua cara, quando menina.

_ Eu não sou desse tamanho todo! – Protestou Raflita com os olhos mareados.

_ O apetite só é pequeno dentro da gente, Rafa! – Bia  ajeitava os óculos e tentava imitar a professora Dagmar. – Ele tem o nosso tamanho. Compare o apetite de um bebê com o de um jogador de futebol e veja a diferença. Só para de crescer quando nós também paramos. Parece que o seu apetite, fora do seu corpo, vai crescer até furar o céu e comer a lua que é feito de queijo, sabia?

_ Buáá!! – Eu quero o meu papai!

_Espere! Pare de chorar! Olhe aquilo na TV.

Na tela cheia de chuviscos, um repórter percorria os corredores de um shopping center, ou o que sobrara dele após a passagem do “Fome Zero”, como tinha sido apelidado o apetite monstro de Raflita. Fome Zero havia mudado muito após abandonar sua dona e começava a deixar de ser humano, se transmutando em apetite de outros seres vivos. Virou apetite de cupim e comeu a madeira das prateleiras, de traça e roeu todas as roupas, de barata e comeu porcarias impronunciáveis. Nesse exato instante, ele era o apetite de um tatu (daqueles necrófilos comedores de cadáveres) e estava indo em direção ao cemitério. Raflita quis vomitar de tanto nojo. Bia a conteve:

_ Não faça isso! Vai que os filhotinhos dele estejam aí dentro de suas vísceras! Não podemos arriscar!

Na Tv apareceu um general ao lado de tanques e aviões. As forças armadas havia sido convocadas para destruir Fome Zero. Aviões bombardeiros voavam razantes e ruas eram evacuadas. Bia entrou em pânico:

_NÂO!!! Se matarem ele, você nunca mais comerá nada! Vai secar tanto que ficará parecida com um cipó!

Raflita pensou que não seria tão triste se parecer com um cipó, mas teve medo de morrer e saiu correndo para contar tudo aos seus pais. Bia a segurou pelo braço:

_ Tive uma idéia! Vamos capturar ele. Diga-me, rápido. Qual é o seu prato favorito?

_ Hum! Deixa ver!!! As rabanadas da Vovó Henriqueta!

_ Ligue para ela e peça um prato de rabanadas bem saborosas.

_Mas não é Natal, ainda!

Coincidência maravilhosa, Vovó Henriqueta havia acabado de fazer rabanadas e estava pensando justamente na sua neta magricela. As duas voaram para a casa da vovó, desta vez de bicicleta e desviando das barreiras do exército. Tentaram explicar o que estava acontecendo mas a vovó não entendeu nada e pensou que elas estavam participando de alguma gincana. Bia colocou um prato de rabanadas sobre a janela da cozinha, ligou um ventilador sobre elas e sussurrou no ouvido da amiguinha:

_Preste bem atenção! Concentre-se nas rabanadas. Quando você sentir uma vontade irresistível de comê-las, é o seu apetite que está voltando. Seja rápida, jogue todas as rabanadas na boca, engula tudo e fique de boca fechada até a hora da novela! Entendeu?

Raflita balançou a cabeça e começou a encarar as rabanadas untadas de mel. Um cheiro de canela e açúcar evolava nos ares e se espalhava no jardim. Junto com as sombras da noite caindo, uma forma discreta flutuava na brisa e se aproximava da janela. Uma coisa escura e viscosa pareceu envolver o prato. Raflita não hesitou e engoliu de uma vez a pilha de saborosas rabanadas.

Nunca mais se ouviu falar na cidade do tal “Fome Zero”. Para sorte de Raflita, pouco antes de chegar ao cemitério para devorar cadáveres, seu apetite se transformara em fome de abelha e resolvera comer todas as flores de uma floricultura vizinha. Assim é que hoje, quando conversa ou cantarola, Raflita espalha no ar uma fragrância de cardos, crisântemos e açucenas e tem ganho disparado todos os concursos de rainha da primavera. 

Apêndice:

Os fins justificam os meios e há males que vem para o Bem! Digo isso por conta de um episódio ocorrido dias atrás, no interior de uma lanchonete. Duas adolescentes, ao meu lado, de tão magras, pareciam disputar um papel no no novo filme de Tarzan: o de cipó! Não precisei ser médico para diagnosticar anorexia quase mórbida. Uma disse que tinha nojo de tudo ali no cardápio, e que iria pedir só uma salada. A outra concordou, desde que a dividissem entre elas pois era muita folha de alface gordurosa para uma só!! Pedi permissão para dar um conselho, e sugeri que elas precisavam muito de calorias!

_ Que horror! Pra quê eu preciso de calorias? ISOLA!

_Querida! - segurei-a pelo braço e falei sério como se um pai delas fosse - Todos nós precisamos de calorias para manter nossos corpos aquecidos. Sem elas, voce será uma linda mulher sem fogo no rabo! Uma amante do cu frio! Seu namorado vai lhe abandonar na primeira noite achando que é um relógio cuco cujo passarinho saiu para marcar as horas em um congelado sótão, no inverno!

Ela ficou boquiaberta! Sem saber o que dizer. Parecia extremamente chocada mas também encantada com uma revelação. Fui ao outro lado da rua, conversei ao telefone e voltei ao local, olhando-as pelo lado de fora, através do vidro. As duas devoraram um sinistro baitabúrger, chafurdado de ketchup e maionese e regados por gordurosos sandees de baunilha! Pelo menos de um mal, estão curadas! Depois daremos um jeito se elas realmente resolverem incendiar o mundo com o fogo do seu bacurau!



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