quinta-feira, 28 de março de 2019

EL MARIACHI


A maior parte de nossos sonhos é momentânea, isto é, dura o tempo em que transcorrem os eventos sonhados, frações de segundos, minutos, meia hora? Entretanto, há raros sonhos em que o tempo dilata-se por longos períodos, meses, anos, vidas talvez, sem que tenhamos que sonhar todas as cenas. É como se adquiríssemos, ao sonhar, um suplemento de memória, uma memória sonhada, se assim podemos dizer. Um exemplo: sonhamos andar de bicicleta com uma amiga. Ela se adianta e desaparece em uma curva da estrada. Quando voltamos a reencontrá-la, quilômetros depois, três anos já se passaram e sentimos que então, pedalando ao seu lado, poderíamos falar de mil coisas que nos aconteceram nesse período – é quando memória e imaginação, em livre acordo, trocam figurinhas inter allia ! Um destes sonhos épicos (batizo-o assim por falta de um nome melhor), eu o tive dias atrás: Com um grupo de imigrantes clandestinos, viajei de avião para a fronteira do México com os Estados Unidos dispostos a cruzá-la e “fazer a América”. Hospedamos-nos em uma rude pousada, em uma empoeirada rua, nos subúrbios de Laredo, onde parecia haver dez perros desgraçados para cada hombrecito. Na varanda da pousada podia-se ver a fronteira de arame farpado e, no horizonte, as cintilações do sol poente que se confundiam com as centelhas promissoras de uma Califórnia dourada! Meus companheiros de travessia estavam ansiosos e pareciam sonhar –dentro do sonho – com a vida melhor que encontrariam do outro lado da “linha”. Havia nesta varanda uma velha cadeira de balanço onde me sentei a olhar as primeiras estrelas no céu do deserto. Parecia um trono mágico, pois tão logo me sentei, um ano já havia se passado! Todos os meus companheiros já haviam cruzado a fronteira. .., mas eu fiquei. Com o pouco dinheiro que possuía, comprei a pousada e vivia ali, hospedando e explorando os miseráveis brazucas que, como eu, sonhavam com uma vida melhor para seus filhos. Quanto mais eu me balançava, mais o tempo se adiantava e surgiam recuerdos da minha vida naquele chaparral: aprendi a tocar viola com um mariachi bêbado, casei-me com uma índia tartamuda de olhos tristes, engordei e criei longos bigodes que passava as tardes cofiando na varanda. Toda vez que entregava um grupo de meus patrícios a um coyote que os guiaria até o paraíso, eu os abraçava, transferindo para eles um pouco dos meus sonhos de juventude, e voltava para contar o dinheiro em minha cadeira de lona com estampas toltecas (ou maias, não sei diferenciá-las). Dia veio em que não havia mais nenhuma estrela no céu e mais nenhum sonho em meu coração. Comecei a despachar os imigrantes quase desejando que os coyotes os matassem para roubá-los, ou que morressem de fome e frio nas madrugadas. Passei a invejar os sonhos, agora que não era mais capaz de tê-los, e, por não ter mais com o que sonhar, acordei. Mais covarde do que era antes de dormir, mas feliz por sentir que estar acordado sempre é melhor do que sonhar!

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