Toda pequena cidade do interior é composta por
dois tipos de moradores: os nativos, filhos de pais, avós e bisavós locais
(quanto mais antepassados, mais importantes se julgam) e os forasteiros que,
mesmo morando décadas na cidade, ainda carregam o estigma de terem nascidos em
outras terras e serem potenciais traidores (nem me perguntem traidores de
quê!). Gerson Eleutério era um destes forasteiros e muito folclórico foi o
relato da sua chegada ao município de Itambé-Ba, que narro conforme ouvi da
prostituta Leonora no seu leito de morte. Ela, também forasteira, conhecia o
Gérson da vizinha cidade de Vitória da Conquista, onde foram colegas de
infância e depois namoradinhos, mas cedo separados pela vida que tão pouco caso
faz dos amores colegiais. Foi em uma ensolarada manhã de sábado, comprando
frutas para os coquetéis que mais tarde serviria chumbadas de álcool no seu
cabaré O Anel de Tuxa, que ela avistou o velho amigo sentado em um banco da
praça, cercado por uma multidão vibrante a ouvir e interpelar o forasteiro. Ele
usava uma folha de grosso papelão e sobre ela espalhava cartas retiradas de um
gorduroso baralho de tarot, adivinhando o futuro dos curiosos que o remunerava
com uma pilha de moedas, displicentemente exibidas dentro do seu chapéu sobre o
banco, ao lado do seu corpo suado e bem mais gordo do que no tempo em que
namorava a hoje cafetina Leonora! Um senhor encurvado, comerciante de bois, de
nome Jovelino Catingueiro, havia lhe solicitado augúrios relativos a uma longa viagem
que ele pretendia fazer até à cidade de Paragominas, comprar uma fabulosa boiada,
tendo já antecipado duas cédulas vistosas como pagamento ao cartomante.
Justamente nesta hora, Leonora o chamou pelo nome. Surpreso e feliz por ver ali
a sua ex-namorada, Gerson Eleutério a abraçou e resolveu conversar com ela,
mantendo em suspenso a demanda do cliente, talvez querendo com isso mostrar
controle da situação, ou então realmente tomado pela emoção.
_ Meu querido! Como foi que você veio parar
aqui nestas bandas? Tá de passagem?
_ Você não imagina os percalços que me
trouxeram a este lugar! – Tão logo ele entabulou a conversa e todos ao redor
ficaram em silêncio a lhe ouvir curiosos. – Eu estava indo para Porto Seguro,
onde tenho uns parentes e com quem eu iria viver um tempo. Acredite que, mal
havia descido a Serra do Marçal, o ônibus fundiu o motor nesse calorão e
tivemos que esperar um carro sobressalente, ou apanhar outro, aqui na próxima
cidade, Itambé, onde agora estou. Muito impaciente, fui até uma casa próxima
onde um vaqueiro me ofereceu uma montaria, com recomendação de entregar a um
parente seu perto da rodoviária onde eu poderia apanhar minha condução. Não
hesitei e vim montado. Galopava no encostamento da rodovia e já avistava as
chaminés das olarias e os verdes prados desta cidade quando, por um novo azar,
o cavalo pisou em uma barroca ao lado do asfalto e quebrou a perna. Já
escurecia e eu não sabia o que fazer. Resolvi deixar o animal amarrado ali
perto, ir caminhando até o ponto de ônibus e avisar ao parente do dono para
apanhar no local o pobre do animal estropiado. Assim o fiz. Era boca da noite quando me
aproximei da primeira rua da cidade. Justamente nessa hora, nesse dia cujo azar
parecia não ter fim jamais, um sujeito de arma na mão surgiu do nada e me
roubou tudo. Levou minhas duas malas e todo o meu dinheiro. Deixando-me só com
a roupa do corpo e com o meu baralho que, graças a Deus, sou capaz de usar para
conseguir ganhar o sustento e poder seguir viagem! Sou muito orgulhoso para
pedir! Você me conhece e pode me abonar para todo esse povo bondoso desta
simpática cidade!
Gerson estava emocionado. O público também. Só
o velho boiadeiro, que já havia lhe pago a consulta sobre a viagem por fazer,
estava desconfiado e o interrompeu quase gritando:
_ Alto lá, meu compadre! _ Cuspiu uma grossa
talagada de saliva e fumo enquanto buscava as palavras – Se o Senhor, antes de
viajar para Porto Seguro, não foi capaz de prever esses desastres todos, de
adivinhar o azar que lhe acompanha, como quer adivinhar o que acontecerá comigo
até a cidade de Paragominas? Se seu próprio destino lhe é oculto, porque o meu
lhe seria revelado? Acho bom o senhor devolver meu dinheiro que sou um homem
muito ocupado!
E dizendo assim, enfiou a mão dentro do chapéu
de Gérson Eleutério em busca de suas duas cédulas que havia pago. Foi o sinal
para que todos ao redor, a quem fora prometido casamentos, filhos lindos,
viagens e felicidades embriagantes (com um ou outro sustinho pra criar
impacto), sentindo-se enganados, avançassem sobre o dinheiro amealhado por toda
a manhã, quase rasgando o feltro já gasto do seu dibico (nome antigo com que
eram chamados os bonés e Leonora, quando narrava, usava muitos nomes já em
desuso), não deixando sequer uma moeda para o Gérson pagar um café a sua antiga
namorada. Teve até muita sorte em não cair no descrédito completo e ter sido
linchado pelos clientes, coisa que certamente teria acontecido se o dinheiro já
houvesse sido gasto. Certo é que o forasteiro Gérson Eleutério logo arranjou
outra atividade, foi ser garçom e camareiro no puteiro da sua antiga namorada,
de onde saiu para ser coveiro e viver muitas e muitas patranhas naquela
singular cidade, afinal, como já dizia o sábio Aristóteles, a vida é mesmo uma
caixinha de surpresas, embora eu não faça ideia de quem houvesse falado de
Aristóteles para uma prostituta no fundo do mercado municipal nem que a ele
fosse atribuído uma sentença tão vulgar. Ouvi como seu confessor, além desse relato, todos os
pecados que ela cometeu desse dia em diante com o seu reencontrado amor, mas
que meus votos de sacerdote me proíbem revelar, e dei a extrema-unção à pobre
alma por quem pretendo orar tão logo termine esta página do meu diário!
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