quarta-feira, 25 de julho de 2018

O TEMPO NÃO PARA!


Meados da década de sessenta do século passado. No auge do sucesso, após a palma de ouro em Cannes com seu filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, meu primo pobre, Glauber Rocha, filmava um documentário na ensolarada Salvador e se dirigiu ao Museu de Arte Moderna, no Corredor da Vitória, para uma cena no interior do majestoso prédio, outrora um convento carmelita. Ao chegar ao portão de entrada, com câmera, tripé e equipamentos, fora peremptoriamente barrado pelo segurança que lhe cobrou autorização para entrar com aquela parafernália. Irado por temperamento e inflado pelo sucesso inopinado, Glauber Rocha se sentiu profundamente ofendido e vociferou com o segurança:
_ QUEM VOCÊ PENSA QUE É? COM QUEM VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FALANDO? VOCÊ NÃO ENTENDE NADA DE ARTE! VOCÊ NÃO ENTENDE NADA DE KANDINSKY! VOU LIGAR PARA ACM AGORA MESMO!
ACM, Antônio Carlos Magalhães, era então o prefeito de Salvador. Dito e feito. De um telefone público na frente do museu, Glauber Rocha ligou para a secretária do prefeito e exigiu falar com ACM. Foi atendido e recebeu deste a promessa de ver incontinenti uma solução para o imbróglio. Glauber ficou então rodando a porta do Museu, vociferando coisas impronunciáveis enquanto esperava que o Prefeito ligasse para o secretário de segurança, que este ligasse para o diretor do museu e que este, enfim, fosse lá à porta autorizar o fleumático vigilante, que permanecia impassível na portaria, feito o anjo guardião do paraíso, das parábolas kafkianas. Passaram-se duas longas horas até que um esbaforido funcionário público, descendo os encerados degraus da escadaria de jacarandá, cheio de desculpas, salamaleques e ora-pro-nobis, autorizasse a entrada do jovem cineasta e sua equipe, inclusive ajudando-lhes a carregar o equipamento em uma atitude mista de bajulação e solicitude. Ao perceber os olhares furiosos de Glauber Rocha para o vigilante, o funcionário apanhou um tripé e deu a este, para que carregasse também um pouco da carga e ajudasse a desfazer alguma mágoa residual. Assim o fez o vigilante, sem resmungar não ser esta a sua função. Cigarros apagados, suores estancados, parecia também que o contratempo havia sido ultrapassado, mas algo devastador havia se abatido sobre a equipe do cineasta, composta pelo jovem locutor Ary Barata, o fotógrafo Vitor Diniz e um adolescente de nariz empinado e gestos afetados que depois se tornaria no cineasta regional Edgar Navarro, quem nos contou essa cena em uma fria madrugada no Rio de Janeiro, devorando os sublimes sanduíches de peito de peru com abacaxi no Bar Cervantes, esquina da Prado Júnior com Nossa Senhora de Copacabana. O fato é que o Glauber Rocha pretendia filmar no pátio do Museu e, por conta da demora, a tarde já descambava, projetando de sombras o cenário e toda a luz local vindo apenas de um inflamado e impotente crepúsculo, refletindo suas sanguíneas tinturas celestiais no olho injetado, de fúria e outras cositas mais, do jovem e premiado cineasta baiano. Era impossível filmar com aquela penumbra e tiveram que se dar por vencidos. Agendaram outra data, não sem antes o vigilante ouvir as mais sinistras imprecações e vitupérios por ter sido a causa daquela tarde perdida. Embora realmente não entendendo nada de arte, como fora acusado, o vigilante não era nenhum parvo. Pelo contrário, muito espirituoso e leitor da Bíblia, ao se lembrar do telefonema de Glauber para o prefeito ACM, respondeu às indelicadezas proferidas com um bíblico e jocoso conselho:
_ Liga pra Deus, Seu Glauber! Faça como Josué que pediu a Deus para parar o sol, durante uma batalha. Deus parou o sol por um dia inteiro! O que é uma ou duas horinhas pra quem é eterno?
Criado em um ambiente profundamente religioso e evangélico, Glauber sentiu o golpe e não teve resposta no momento. Seus resmungos não foram registrados por ninguém da equipe! Hoje, ao relembrar esse episodio que não presenciei, fico impressionado com a figura impávida e sentenciosa deste obscuro vigilante, uma autêntica personagem saída das narrativas de Kafka para se encarnar nos corredores burocráticos de uma Bahia que não existe mais!
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1 comentários :

Blog do Cassi disse...

Quando vier a inserir este episódio em outra narrativa mais substancial, hei de reforçar a personalidade deste vigilante como um anti-Josué, acelerando a passagem o tempo ao invés de retardá-lo!
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