domingo, 3 de junho de 2018

É GOLPE! Os Golpes de Vista do Artista Allan de Kard!


 

A moldura de uma obra quase nunca pode ser considerada arte também, por mais caprichosos e criativos que sejam os marceneiros (o suprematista russo Kazimir Malevich explorou essa questão em 1918 com a sua famosa tela Quadrado Negro Sobre Fundo Branco, mas ficou por aí mesmo e não vingou essa abordagem). Talvez possamos encontrar arte verdadeira na moldura de um quadro se ampliarmos esta para o entorno, a entourage onde a tela foi pintada ou se encontra exposta. Recentemente presenciei um caso destes e gostaria de deixá-lo aqui registrado. Todos nós conhecemos o famoso romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, em que um dandy inglês faz um pacto com forças ocultas de maneira que, seu auto retrato pintado a óleo e guardado no sótão de sua casa comece a envelhecer, com as marcas do tempo e da decadência moral reveladas nas linhas do rosto, enquanto o retratado permanece indefinidamente jovem e imaculado, na vida imoral e dissoluta da alta sociedade vitoriana. Recentemente, visitando com um amigo a casa do artista Allan de Kard, em Vitória da Conquista, ele nos levou a um quarto no andar de cima, sempre fechado e com declinada luminosidade, onde se encontra  emoldurados e perfilados uma dúzia de retratos – a maioria dos ali retratados são pessoas do seu círculo de amizades e parentela. As imagens foram originariamente distorcidas e é impossível, para quem leu o romance, não imaginar que aqueles rostos deformados não sejam avatares de vidas pecaminosas ou, no mínimo, tortuosas, distantes da retidão, vividas no dia-a-dia pelos parentes retratados (claro está se tratar de minha exclusiva leitura particular e subjetiva).  Há de conferir visitando a casa do nosso caríssimo conterrâneo e pedindo para acessar o quarto dos quadros malassombrados! Recomendo! Para finalizar este esboço despretensioso, mantendo o mesmo foco no artista citado e na reflexão contextual de suas obras, publico como ilustração as fotos de uma de suas esculturas, um gari feito em metal. Vamos primeiro ao contexto: anos atrás, estudante na UERJ, presenciei uma insólita experiência de um mestrando cuja tese, na cátedra de psicologia, versava sobre anomias e percepção social. Para ilustrar e demonstrar sua suposição de que nossa percepção social é condicionada pelos valores investidos em cada tipo de profissão, este estudante registrava uma brilhante experiência usando como laboratório seus próprios colegas de disciplina. Minutos antes de terminar a aula, ele saía da sala, ia até o banheiro, vestia um uniforme de gari e se dirigia para o pátio da cantina onde ficavam todos os seus amigos matando o tempo do intervalo entre uma e outra aula. Ali ele se imiscuía entre todos, varrendo o piso e pedindo licença para passar a vassoura. Absolutamente ninguém reconhecia a sua voz ou se interessava em olhar para o seu rosto. Eram amigos de intenso convívio, uma ou outra ex-namorada, a própria namorada atual, parceiros de caronas e aventuras extraclasse... De nada servia isto para lhe identificar. O uniforme falava mais alto e interditava o interesse em reconhecer alguém investido de tão simplória e desprezível profissão. Era preciso chamar as pessoas pelo nome para que elas o reconhecesse! Voltando ao escultor, sem nunca ter ouvido esta história minha ou semelhantes, ele criou esta escultura onde um gari é visto na sua integridade se tomado de perfil, mas, à medida que vamos contornando em busca de um foco frontal, vemos ser ele composto de lâminas intermitentes e vazadas onde a sua identidade se esvai, dissolvendo o frontispício no anonimato e na imperceptibilidade. Tanto no primeiro caso dos rostos deformados, como no ilusionismo do segundo, vemos os efeitos de uma distorção originária, um ponto-cego ou um estrabismo como golpes de vista de quem tem uma inconsciente intimidade com a Arte.

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