domingo, 6 de maio de 2018

O PALADINO DA MORAL CRISPIM DOUGLAS CORCORAN JR


  Não fosse o medo dos bandidos da cidade conhecerem os seus hábitos, e o Delegado Crispim passaria todo fim de tarde no brega de Meré para uma cerveja bem gelada e para estes afetos ordinários que piscam nos lupanares, e que nos envergonham ao serem louvados. 
Assim, só passava ali de vez em quando e se refestelava por todos os dias ausentes. Ultimamente estava, por demais da conta, preocupado com Jaiminho, o filho de Meré, seu amigo de infância e dono do cabaret Mãe Naná (que o povo chistoso cunhou bem cedo de mãe nazona!). Não se sabe se devido ao convívio com as raparigas que o mimavam como um filho, se do costume de ouvir novelas no rádio... ou dos morféticos astros que giravam doidos no céu de Itambé, certo era que o Jaiminho, com doze anos de idade, falava fino como um castrati, desmunhecava, gritava quando via uma barata no assoalho encerado... Enfim, era um garoto afetado e o pai temia que ele, em breve, se tornasse um pederasta.
Quando, finalmente, Meré confessou o problema para seu amigo Crispim, este não gastou muito tutano para achar uma solução.
- O problema é mesmo muito grave! O que você prefere? Um filho traumatizado ou... um filho “boneca”?
Meré engoliu a cerveja e limpou no guardanapo sujo a espuma do bigode.
_Não tendo opção... Melhor traumatizado! Mas não tenho coragem de bater... Vontade é que não falta!
Ninguém tá falando em bater. Estou pensando em um susto!
_E susto cura frescura? Perguntou o pai, cético como todo dono de puteiro costuma ser.
_Diga ao seu filho que no fim-de-semana vou à Fazenda Paraíso ver uns bois e vou precisar de uma companhia... Se ele quiser vir comigo, tenho um cavalo manso para ele montar!
_Ele adora montar!
_Então está feito! Pode confiar em mim! – E, apanhando o chapéu como se fosse partir, subiu para o quarto da cigana Detinha.
No fim-de-semana combinado, na porta da delegacia, Crispim Corcoran tartamudeava com três indivíduos que, soube-se depois, serem os filhos de Lai que ganhavam a vida como atores de dramas em circos e quermesses por todo o pândego Sudoeste. Crispim parecia ensaiá-los segurando-os nos ombros e sabatinando frases e gestos. Dispensou-os rapidamente quando viu dobrar a esquina o seu amigo Meré de mãos dadas com o filho Jaiminho. Seu velho amigo procurava disfarçar a apreensão mas tão cedo viu o ar bonachão do velho amigo, a alacridade e o espalhafato de seus gestos, e sentiu a velha confiança afastar seus temores, colocando incontinenti o filho no banco da frente da pick-up com o nome desbotado da prefeitura.
_ Pega leve, Crispim! Não sei o que voce vai fazer, mas ele só tem doze incompletos!!!
_ Eu vi esse menino nascer, Meré... Capaz até de eu ser o pai dele e não tu. Sossega o facho!!!!
E logo estavam na barrenta estrada a margear o traiçoeiro rio pardo. Crispim guiava devagar. Na frente seguia uma velha camioneta com os filhos de Lai e era preciso esperar que eles se distanciassem. Entabulou conversas com o menino que não parava de cantar as canções de um grupo chamado Secos e Molhados a tocar no rádio do carro. Sua voz parecia se fundir com a do vocalista histérico da banda em agudos que lembravam uma corista surpreendida por um balde de água fria. Chegaram perto do local combinado. Onisciente, o sol se punha rubro de vergonha com o que Crispin estava a aprontar. Um defeito providencial fez morrer o motor do velho chevrolet. Era preciso abandonar a vicinal e voltar até à “rodage” principal em busca de socorro. Próximo de um pitoresco mata-burro, ouviu-se música ao longe, aliás, gritos, gritos medonhos feitos uma pobre e gentil senhorita sendo perseguida por uma troupe de presidiários. Corcoran e Jaiminho esconderam-se em uma capoeira e, acocorados sobre um murundu, assistiam ao desenrolar da jocosa farsa. Primeiro, surgiu Durvalino, o mais novo dos três irmãos, vestido uma calça saint-tropez, blusa frente única e uma sandália salto plataforma, acessórios que fizeram Corcoran temer quando Detinha soubesse que ele os havia emprestado sem ela saber. Durvalino gritava socorro feito uma arara na mata, tropeçando nas touceiras e pedregulhos da escura estrada. Atrás dele, munidos de chicotes e paus, os dois outros irmãos, Vadinho e Sinval, além de outro que Corcoran não reconhecia, alguém arregimentado na estrada (para fazer o bem, sempre aparece voluntários).
_Fique quieto, não se mexa! – Disse Crispim ao assustado Jaiminho. – Conheço esse rapaz. É o Régis, cabeleireiro de Itapetinga. É homossexual e estão perseguindo ele por alguma coisa que não sabemos.
_ Mas você é o delegado! – Protestou a criança tomado por um divino senso de justiça e, quem sabe, por alguma satânica simpatia. Engolindo em seco (confessou-nos depois ter sido este o momento mais difícil da sua vida, quando teve que fingir ser um covarde para uma criança), Crispim sussurrou:
_ Mais são três, estão armados e eu deixei minha arma no carro!
Durvalino girou teatral e caiu sobre o capim. Cobriu-lhe uma saraivada de pancadas, chutes, socos e imprecações que, por um momento, fez o autor duvidar se eles não estavam de fato aproveitando da situação para descontar alguma mágoa guardada, pois não já havia muitas vezes sido chamado para apartar as brigas dos filhos de Lai quando embriagados?
_ Vamos, fi di rapariga! Quero ver vc falar fino agora!
_Vou lhe quebrar as duas pernas pra vc rebolar em cima de uma cadeira de rodas!
_ Ele gosta de se depilar! Vamos arrancar a pele dessa mariposa!
Usando uma espécie de matraca e bastões usados na encenação do Calvário todos os anos na páscoa, batiam no lombo do singelo moço que gemia e chorava. Jaiminho tinha os olhos tamanhos da lua nascente e, não fosse Crispim vedar-lhe a boca com a mão, teria corrido e gritado. Seu coração parecia marcar o ritmo das pancadas.
Ao perceberem que o cabeleireiro não mais respirava, os covardes fugiram. Crispim saiu da moita e se aproximou do cadáver. Jaiminho tremia e choramingava. Não teve coragem de ver o morto coberto de groselha a escorrer no rosto onde o pó se fundia com a maquiagem. O delegado rolou o morto com a bota e fez questão de mostrar ao menino uma ponta da calcinha ensangüentada que a vítima usava.
_ Veja bem o que acontece com homem que tem medo de barata!
Seis meses depois, Jaiminho parecia outra pessoa. Possuía, deveras, um ar assustadiço, e começava a ver o mundo como – de fato o é – um lugar hostil e perigoso; mas perdera toda a afetação e a histeria da infância leviana. Servia a cerveja do tio (assim Crispim era chamado por ele) com reverência e compenetração. Um dia, sentou-se ao seu lado olhou longamente para o poente e comentou:
_ Sabe, tio? Na semana passada. Voltando da escola, vi no bar de Olavo um homem parecido demais com o cabeleireiro Régis, mas... – mal conseguia a confusão franzir-lhe o cenho tal o frescor da sua pele de criança - ... Ele não tinha morrido naquela surra?
_ Parece que não. Pode ser que tenha somente desmaiado.
_ Mas tava também tão diferente! Vestido feito um vaqueiro, falando grosso e volta e meia beijava a moça do algodão-doce...
_ ....
Crispim manteve-se em silêncio. Queria ver até onde ia o discernimento do menino que a cada dia ficava mais parecido com ele e menos com o perebento Meré. Sabia que uma criança não é um vaso que se enche e sim uma chama que se acende. Era preciso ver o que iria brotar daquela pequena lamparina. Por fim, junto com o poente que encerrava o dia com euforia e glamour, o garoto concluiu:
_ Acho que aquela surra fez um bem danado a ele!!!
Corcoran, que nesse exato instante, encerrava um discreto gole, refreou a mão e a manteve suspensa, bebendo com gigantesca satisfação todo o conteúdo da caneca. Um largo sorriso cintilou em seus olhos. Sentiu-se um paladino a cultivar uma reserva moral para os caubóis do amanhã!!!

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