segunda-feira, 27 de junho de 2016

A VAMPIRA NA CÁPSULA




Fora nos idos da década de setenta, sentado e hipnotizado em frente à uma TV preto-e-branco, que vi um filme inesquecível e que me esforço em descrevê-lo com minúcias e fidelidade, na esperança de descobrir um dia o nome do diretor, dos atores, ou pelo menos o nome do filme.
A história transcorre na chuvosa Inglaterra, em uma estação balneária onde, todos os verões, um jovem advogado londrino vai passar um mês de férias, na casa que herdara de seus pais, aparentemente já falecidos. 

Já no primeiro ano de férias na praia, percebemos a presença de um lindo anjo de maiô que lhe sorri ao passar e, para sempre, lhe rouba o coração com a luz do seu sorriso e as promessas de felicidade contidas em um rosto de profunda beleza! Vou chamá-lo de Oscar, mas não me recordo do seu nome verdadeiro. 

Aparentemente por força do destino, mas que bem poderia ser uma mão invisível a escrever o roteiro, o filme gravita em torno dos passeios e circunstâncias do jovem advogado, sempre a cruzar com a linda e elusiva banhista. Termina as férias e se passa um ano. Oscar retorna ao balneário e, como se mera repetição das cenas anteriores, vemos a sua musa passear de biquíni, tomar sorvete com amigos e amigas fortuitas, sorrindo e com o mesmíssimo rosto do ano anterior. Oscar dá claros sinais de estar apaixonado e organiza suas férias – agora não mais um descanso, mas uma tortura de amor – em torno da sua encantadora miragem. Passa horas na praia vendo-a dormitar ao sol lascivo que lhe doura as pernas brancas e longilíneas, segue-a pelo mercado de peixes e pelas ruas cruas do cais do porto, mas não consegue, ou não deseja, lhe dirigir a palavra. E assim, termina estas segundas férias. Em um piscar de olhos, já estamos no terceiro, no quinto, no sétimo ano. 

Sempre o mesmo vigoroso verão de estourada luminosidade, no céu e no indefectível sorriso da sua musa que chamarei de Alceste, mas que poderia também ter outro nome qualquer. 

Começa então, insidiosamente, a surgir o inquietante enigma em um filme que parecia ser apenas uma trivial e vaga “novelle vague”: enquanto percebemos os efeitos deletérios do tempo no semblante e cabelos do protagonista, não apenas nele, mas em todas as personagens que, eventualmente, retornam em cada período de férias – garçons, balconistas, o motorista do táxi que a leva e traz das praias de ventos uivantes -, todos eles começam a envelhecer, menos a esfuziante pin-up, cada dia mais bela, cada dia mais radiante. 

Nas imagens do filme, podemos ser levados a acreditar ser ela um anjo caído do céu para encher de beleza tão desolado lugar onde as gaivotas pontuam o céu de vírgulas inquietantes, mas, no diário onde Oscar registra seus sentimentos, somos apresentados a uma hipótese mais gótica e desagradável: Alceste bem poderia ser uma vampira! Uma estranha e nada convencional vampira que não temia a luz do sol nem, aparentemente se alimentasse de sangue, mas que possuía o segredo da eternidade, da fonte da juventude e, como ele estava apaixonado e sentindo exaurir seu coração por ela arrebatado, era-lhe fácil delirar e supor que ela vivesse sempre jovem por conta de algum fluido misterioso na composição desse amor, por ela misteriosamente sugado. 

Contado assim, esta insólita teoria é explicitamente patológica, mas, no enredo do filme, a juventude de Alceste e o rápido esvaecimento de Oscar, decrépito como o retrato escondido de Dorian Gray, somados ao estilo literário do seu diário lido em off quando ele escrevia, tudo nos levava a acreditar nessa versão. O próprio filme descamba para isso, mudando o horário dos passeios para fins de tarde crepusculares e noites ruidosas nos bares e restaurantes do balneário. 

Oscar é convidado para participar de um grupo de jogadores de carta, em uma espécie de cassino nos fundos de um bar onde é apresentado à Alceste, chegando a jogar muitas noites tendo ela como parceira, quase sempre perdendo um bom dinheiro sem conseguir concentrar-se no jogo. Entre cortinas de fumaça e voluptuosos drinks, Alceste enche a sala com sua risada cristalina, sua voz de contralto solfejando as canções de uma jukebox administrada por um sonolento idoso em fardas de militar aposentado. 

Uma noite, sem conseguir um táxi, ele se oferece para acompanhar Alceste até a sua casa, do outro lado do canal cortada por pequenas pontes de pedra. Caminham quase em silêncio e poder-se-ia até ouvir como batidas do coração de Oscar as passadas ritmadas dos sapatos sobre o piso de limosas pedras. Não me recordo das palavras exatas entre eles trocadas, mas Oscar não ousa comentar sua aparência hipostasiada ao longo de quase uma década em que ele frequenta o lugar. Ela também mantem certa e peculiar formalidade, falando dos pais falecidos, dos planos em conhecer Londres um dia e da sua atarefada atividade de tradutora de livros técnicos para uma editora alemã, que lhe fazia passar o ano inteiro trancada na pequena biblioteca de sua casa, exceto no verão, onde, conforme ele mesmo testemunhava, ela vivia radiante haurindo do sol setentrional a energia que iria utilizar nas outras prolongadas e brumosas estações onde o tempo mudava e o local se assemelhava a uma dessas charnecas inglesas atulhadas de úmidos fantasmas! Chegam, enfim, à casa de Alceste e um vigoroso luar deixa ver um antigo casarão em uma esquina, escondido por ciprestes gripados e choupos ondulantes ao sabor da brisa vindo do mar. Se despedem no portão sem que ela o convide. Finda-se também mais um verão. 

Em Londres, de volta ao trabalho, Oscar é tomado por sonhos recorrentes e saudades que lhe fazem suspirar e envelhecer mais rápido que o esperado. Contrata um detetive para investigar a vida de Alceste, mas esse retorna dizendo que ela não sai de casa de modo nenhum – e isso alguns moradores vieram a confirmar – nas outras estações. Parecia uma dessas orquídeas tropicais, exuberantes durante um curto período do ano, mas fenecidas e dormentes até um novo despertar. Oscar agradeceu o floreio poético, mas suas elucubrações eram de outra ordem. 

Homem assaz religioso, o interior do seu apartamento tinha ares de uma sacristia e sua imaginação parecia excitada por arquétipos de eras remotas, sonhando – e o filme ilustrava estes sonhos com aquelas molduras em flow com bordas embaçadas - com castelos de pedra sobre penhascos, uivos em campinas enluaradas e pássaros agourentos pousando nos telhados de uma casa muito parecida com a casa de Alceste. Após se confessar com um padre e consultar um médico dos nervos, Oscar resolve tirar licença do seu emprego e viajar um mês mais cedo ao encontro da sua obsessão espectral! 

Vinte anos se passaram desde que ele a viu pela primeira vez e seus suspiros de amor parecem a cada vez mais serem efeitos de uma possessão sobrenatural do que o romântico e platônico amor das primeiras cenas. Vemos várias vezes o protagonista folheando o livro O Retrato de Dorian Gray em uma erudita e sugestiva alusão ao que se passa no seu cérebro em conflito com os eflúvios do seu coração apaixonado. 

Ainda é primavera quando ele chega ao balneário, mas não encontramos mais o esplendor solar dos primeiros verões. Agora é uma tímida primavera que o recebe na estação e as cenas dele retomando seus passeios rotineiros pelo lugar são marcados por doloridos crepúsculos e arrebóis (na bela língua inglesa, dawning e twilights). Alceste ainda não saiu de casa, permanecendo trancada, segundo informa uma vetusta e encarquilhada governanta que o atende no portão, sem lhe convidar a entrar. As pessoas do local, quando interrogadas sobre a estranha moradora, a quem, presumivelmente deveriam muito bem conhecer - e se espantarem também com sua aparência imutável – preferiam não comentar o assunto, mudando de humores e se tornando circunspectos perante a menor alusão a sua musa venerada. Tal mutismo só faz aumentar seus terrores de estar dominado por uma encarnação do mal e fazê-lo vivenciar o amor como uma maldição devorando sua alma. Sofremos com ele até que chega o verão e Alceste aparece outra vez e com ela dissipam-se todas as impressões macabras do senhor Oscar – ele agora em nada encarna o jovem terno e tímido de outrora, penso até que mudaram o ator ou fizeram-lhe uma tremenda maquiagem. 

Alceste parece até mais jovem ainda, roubando flores de um jardim, olhando embevecida para o mar, perdida no horizonte a cismar, coisa que bem poderíamos atribuir ao confinamento a que ela se submetia durante nove meses dentro da sua casa feita um casulo; poderíamos muito bem aceitar e compreender seu entusiasmo com as mesmas coisas, pessoas e lugares, com a mesma entourage, como um alívio que desoprime nossas vidas quando nos libertamos de uma vida sedentária; poderíamos até mesmo aceitar a hipótese plausível de uma doença estranha que lhe adormecesse os nervos e a alma na ausência do sol estival ( parece que era sobre medicina os livros que ela traduzia, segundo uma cena onde Oscar andou pesquisando na Biblioteca de Londres, mas essa cena me escapou da lembrança e posso estar apenas imaginando sobre minhas vagas lembranças do filme que vi em uma tarde memorável da minha infância). 

Mas da trilha sonora me recordo muito bem, e como era bela, como induzia os sentimentos sublimes e ingênuos do amor no debut de nossas vidas! Velhas canções que hoje não conseguimos ouvir na internet sem sermos tomados por uma estranha saudade de coisas que não vivemos, mas que, no filme, essa ausência era preenchida justamente pelo amor sentido por Oscar e pela visão adorável de Alceste que nos arrasta também para o delírio e a ilusão de estarmos diante de um ser sobrenatural, vampiro ou anjo, ao ver seu rosto mágico de cabelos ondulantes ao vento, sua gargalhada contagiante, seus trejeitos sensuais dentro de vestidos e maiôs de estólida elegância! 

Para encerrar essa história que viveu todos esses anos em minha alma como se fosse também uma recordação de outro mundo, em nada envelhecendo ou se transformando, Oscar decide resolver esse mistério. Apesar do arrebatamento renovado a cada ano, sobrepõe em seu coração a pátina do sobrenatural que lhe faz evitar a companhia de Alceste, preferindo contemplá-la de longe, como um inatingível astro a brilhar no firmamento monótono da sua vida. 

Convidado por ela para um longo passeio em uma excursão em uma ilha próxima, junto com um grupo de turistas alemães que fretaram um iate, ele declina para ter a tão esperada oportunidade. No domingo do passeio, ele pula o muro do velho casarão onde Alceste mora, sabendo que neste dia também era a folga da velha e taciturna empregada. Rapidamente vence uma janela semiaberta e vasculha a casa com uma lanterna desnecessária. A casa é bem iluminada por gelosias e claraboias. Há muitas fotos sobre a lareira e peças de compósita antiguidade revelando um gosto vitoriano e um belíssimo papel de parede simulando as telas de Alphonse Muchat, mas Oscar procura por algo inusitado, uma passagem secreta, um alçapão ou escadaria disfarçada. Desce então até o porão e sente um calafrio com o vislumbre de algo que parece confirmar suas suspeitas. No canto esquerdo de uma parede escurecida por séculos de fuligem ele deslumbrou uma estranha porta de aço, em formato de escotilha, com imensa fechadura circular que ele girou com o coração quase a saltar do peito. 

Percebeu que a porta era apenas o prolongamento de uma única peça de aço, uma grande cápsula com monitores e lâmpadas espalhadas ao redor. No centro apertado, onde mal cabia um corpo, havia uma espécie de maca com cintos e couro e um gabinete lateral com uma série de comandos, alavancas e botões que o fez tremer de curiosidade. Aproximou-se do local e, acostumado com a rusticidade do frio aço que formava todo o interior da cápsula oblonga e escura, tocou inadvertidamente em um botão sobre o gabinete. Foi o bastante para que uma miríade de lâmpadas se acendesse, números disparassem em um monitor e um zumbido rascante preenchesse todo o claustrofóbico espaço. Oscar foi atirado ao chão. Tentou sair, mas a porta travou-se automaticamente. Mal teve tempo de segurar no pedestal da maca quando foi atirado contra a parede que girava em uma velocidade esfuziante. Sentiu que iria desmaiar, mas logo a geringonça começou a desacelerar e seu corpo, prensado contra a parede de aço, finalmente escorregou e ele caiu sobre o piso! Estava atordoado, com dores por todo o corpo e seu impecável casaco de tweed, todo borrado de vômitos. Lentamente recobrou a percepção de onde estava e imediatamente buscou a porta que, destravada, facilmente cedera ao empuxo aplicado e correu lateralmente. 

Uma lufada de ar quente o recepcionou e Oscar teve que esfregar os olhos várias vezes sem acreditar na brusca e inexplicável mudança de cenário. A sua frente descortinava-se uma perspectiva preenchida de ruínas. O porão da casa de Alceste estava derrubado e se via os fundamentos e vigas do que outrora fora a casa agora sob um céu rubro, de uma cintilante radiação. Olhou para trás e, onde estava a parede com a porta de aço, viu toda a peça de metal, uma imensa cápsula enterrada onde outrora fora um bucólico bairro de uma vila do litoral. A poucos metros, sobre um velho sofá e envolto em rotos cobertores, um esqueleto parecia lhe fitar e sorrir por entre longos e ralos fios de cabelos brancos. Oscar subiu sobre os escombros e olhou para todos os lados. Era apenas ruínas e mais ruínas que lhe fizeram, após desconsiderar a impressão de pesadelo ou alucinação, supor que uma grande explosão houvesse varrido tudo, mas, pelo tipo de ruínas, torres imensas partidas ao meio, passarelas reluzentes e bruscamente interrompidas, envoltas em vegetação copiosa e tropical, máquinas abandonadas e enferrujadas parecidas com automóveis voadores.... 

Aquilo era ruínas, mas ruínas de um futuro muito distante e improvável! Sentado sobre um degrau que levava a lugar nenhum, Oscar aos poucos começou a deslumbrar uma hipótese medonha: aquela cápsula onde esteve trancado e desmaiado por alguns segundos, seria, na verdade, uma máquina do tempo, feita por alienígenas ou por algum cientista louco, ou pelo próprio governo de Sua Majestade...! Alceste utilizava a máquina que, girando à velocidade da luz ou quase, conseguia criar uma dilatação temporal em relação ao mundo exterior à máquina. 

Alguns segundos ali dentro, girando à velocidade da luz, correspondia a muitos anos do lado de fora. Alceste devia programar a máquina para que ela, em poucas frações de segundo, a mantivesse suspensa do tempo banal e lhe devolvesse sempre com a mesma idade, a cada verão. Por isso que ela não envelhecia jamais! Por isso sua vivacidade em rever tudo o que, para os outros moradores, causava desinteresse e cansaço. 

Quem saberia desde quando ela usava aquela engenhoca e quem a teria construído? Quantos anos de fato ela deveria ter? Oscar deve ter tomado um susto dilacerante ao considerar a hipótese daquele cadáver ao lado da porta ser o corpo de Alceste, impotente e esperando - por toda a vida que lhe restara, e o quanto ninguém saberia dizer - que a porta se abrisse e ele enfim desocupasse o seu leito de eternidade! 

Que belo e triste romance o desse anjo loiro, Alceste, expulsa do paraíso sempiterno e condenada, como todos nós, a envelhecer no mundo dos mortais, com a torturante esperança do usurpador retornar um dia e devolver a ela sua cápsula, seu antídoto contra o tempo que tudo devora e destrói! O que teria acontecido com o mundo para estar todo destruído daquela maneira? O que podemos supor é que o processo é irreversível: por mais que a máquina girasse na velocidade da luz e congelasse o tempo do lado de dentro da cápsula, nada poderia voltar ao passado que foi e será sempre inalcançável por essa, ou por qualquer outra via experimental. Como iria ele sobreviver? Iria explorar o mundo ao redor ou procuraria entender como a máquina funcionava para repetir o método da sua amada, conservando-se vivo e sempre com a mesma idade e explorando em doses homeopáticas os breves períodos de futuro por ele programado? 

Provavelmente essa era mensagem do filme: ele havia sido contagiado pelo beijo da curiosidade, seduzido pelo sobrenatural e se tornado, como a sua encantadora vampira, um ser que vencera a morte e agora condenado a vagar no tempo sem ser por ele afetado! 

Mas, para a minha frustação que já dura décadas, a estação transmissora do sinal de TV naquela época era muito instável e o sinal “saiu do ar” justamente nos momentos finais. Fiquei desolado e vivo a pesquisar indícios desse filme para ver se consigo um dia identificá-lo! Se alguém tiver alguma pista, por favor, entre em contado e, se possível, evitem spoiler! NÃO ME CONTEM O FINAL!
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