domingo, 31 de janeiro de 2021

FURDUNÇO NA JAQUEIRA!

Ilustração de Saomão Zalcbergas





Foi durante o batizado de uma prima, no final da festa, que meu tio Crispim Corcoran decidiu nos contar aquele que era, na sua opinião, o mais violento episódio da sua longa e nada pacífica vida. 
Em meados da década de setenta, após longos anos em São Paulo e quase sem dar notícias, meu tio retornou para as bandas do sudoeste e abriu uma funerária na obscura cidade de Caculé. Ali passava as tardes remoendo pensamentos e olhando as moscas copularem até à morte nas tampas enceradas dos caixões. À noite, nas horas preferidas da leva-almas, quando um cliente poderia aparecer e salvar o mês, meu tio colocava uma lanterna na porta semi-aberta e sentava no banco da praça ao lado, enrolado em sua capa preta e cochilando sob o fogo furioso das estrelas do sertão. Uma destas noites ele acordou com o suor corrosivo de um homem sentado ao seu lado no banco. Crispim não se moveu, guardando a sua arma preferida, a surpresa. O velho, assim lhe pareceu no reflexo que ele deixava na lataria de um aerowilliams, estendeu-lhe discretamente uma velha fotografia e comentou quase assobiando:
_ Vinte mil cruzeiros! Mas o corpo num deve de aparecer!
Crispim não se ofendeu em ser confundido com um pistoleiro de aluguel, achou mesmo pitoresco. Justamente naquela época, Crispim passava por uma crise espiritual profunda e ressentia dos incontáveis erros do seu passado. Sentiu nessa hora – cito suas palavras – como se um espírito possuísse sua mente quando lhe respondeu:
_ Pago os mesmo vinte se você perdoar esse homem!
Julião, era esse o nome do sujeito, mastigou uma lasca de fumo, coçou o joelho, arrancou um cabelo de quase cinco centímetros de dentro da orelha e respondeu olhando pro fio branco e sujo à luz do luar: 
_Vou pensar. No sábado lhe respondo – E sumiu na sombra de uma nuvem preta que escureceu o céu.
Crispim Corcoran costumava dormir o resto da madrugada dentro de um caixão de cerejeira reservado pelo prefeito, mas nesta madrugada ele não pregou os olhos e, dentro do caixão, pensava na promessa estúpida que fizera. Crispim era uma espécie de autômato moral e, uma vez dada a palavra, não tinha como voltar atrás. Na outra noite, no mesmo banco da praça, na mesma fatídica hora, alguém se sentou ao seu lado e lhe estendeu outra foto. Crispim olhou a fotografia 3x4. Era o velho da noite anterior, agora alvo da encomenda feita por aquele que ele havia planejado matar. O visitante sussurrou entre os dentes:
_ Pago vinte pelo couro dele. E tu podes ainda ganhar no enterro!

Outra vez a voz sublime se apossou de Crispim:

_ Pago os mesmo vinte se você perdoar esse homem!

Desta vez o contratante – de nome Jovelino- não pensou duas vezes e prometeu vim buscar o dinheiro no sábado. 

“Pronto! Todo o dinheiro que juntei foi pro espaço!” Pensou Corcoran ao ver o homem deslizar pelo muro e sumir na ladeira do cemitério. Não pode, entretanto, disfarçar um certo alívio, pois Crispim não atinava que os perversos andavam espalhando ser ele um pistoleiro aposentado e disposto a voltar à lida se não aparecessem presuntos para a sua funerária; na sua interpretação, havia algo de sobrenatural naquela história toda. Isso se devia ao fato de que todo o seu dinheiro amealhado em São Paulo fosse-lhe causa de grandes remorsos, por que razões, entretanto, ele jamais nos contaria. Os dois contratantes que o procurara – soubemos depois – era dois primos carnais, Julião e Jovelino, que disputavam há cinco anos uma herança com três outros primos já misteriosamente falecidos. No sábado, quando a azáfama da feira estava só começando, Crispim Corcoran viu saindo de um bar os dois primos abraçados e vindo em sua direção. Pareciam dois irmãos, uma junta de bois com mais de oito anos de canga. 
_ Bom dia, seu Crispim! – Disse Julião, o mais solerte.- Vim buscar meus vinte mil cruzeiros! Isso é, se a palavra do senhor ainda tiver de pé!
E, para provar que havia perdoado o primo Jovelino, sapecou-lhe um beijo nos cabelos encardidos do velhaco que trasantontem encomendara sua alma.
_ A minha também! – Completou o outro sicofanta - De hoje em diante esse primo véi vai morar lá em casa e vou dar minha lourdinha pra casar com ele, quando ela fizer dezoito... O dinheiro vai ser prá festa, seu Crispim e o senhor vai ser o padrinho!!!
Crispim parecia não acreditar no que estava vendo: duas jararacas enroladas feito um caduceu de mercúrio. Cada uma pingando seu veneno na taça. Mas justamente para dois vigaristas é que meu tio não faltaria com a palavra. Poderia escorregar no assoalho de um fidalgo, mas nunca na lama de um chiqueiro.
_ Padrinho melhor sua filha há de encontrar! Não preciso de agrado pra cumprir minha palavra. Conhece o poço da totonha, lá pras bandas de Calibrado?

_ E muito!

_ Estejam lá, amanhã, depois da missa. Estarei lhes esperando embaixo da jaqueira com o dinheiro prometido!

_Que lonjura! – Comentou Jovelino!

_Deixe o homem, primo! Ele deve de ter seus motivos. Tá cumprindo a palavra. Tem coisa no mundo mais bonita? – E voltando-se álacre para Corcoran – Estaremos lá, cavalheiro!



Crispim passou o resto da tarde polindo os caixões com óleo Peroba. Seu espírito estava em paz. O Senhor havia lhe enviado alguém para livrar-lhe da tentação de por a mão naquele dinheiro amaldiçoado. No domingo acordou cedo, pôs uma pá nos ombros e seguiu caminhando até o local combinado à seis léguas de distância. Chegou cedo, comeu um pão com lingüiça e começou a cavar. Não demorou e ouviu os assobios de dois vultos á distância. Vinham correndo como se na flor da idade. Chegaram esbaforidos e olharam incrédulos para o buraco quase a engolir meu tio Corcoran. Ouviram quando a pá encontrou a maleta metálica, estilo executivo, coberta por crostas de barro úmido. Crispim saltou do buraco sem apertar a mão estendida dos velhos de boca aberta e olhos esbugalhados.

_Aí dentro há exatamente quarenta mil cruzeiros. Joguei a chave fora pra não ficar pensando em vir aqui toda hora buscar um pouco de dinheiro. Podem levar que qualquer maçarico derrete a fechadura.

_ Não poderia dar um tiro nela?_ Julião limpava a maleta com a camisa úmida de suor como u´a mãe que resgata um filho de uma enxurrada.

_ A bala pode se extraviar e destruir parte do dinheiro. Se quiserem ficar no prejuízo... e depois, apesar de me confundirem com um pistoleiro, não carrego arma comigo.

_ Vamos embora, primo! Lá em casa abro isso! 

Jovelino arranca a maleta das mãos do companheiro e volta correndo pelo caminho que vieram. Julião dispara atrás. Corcoran senta numa pedra, lutando contra um arrependimento encruado a vazar nas válvulas onde antes o remorso latejava. Desviou o olhar seguindo a sombra de uma nuvem a correr sobre o chaparral e que lhe parecia a imagem perfeita das riquezas efêmeras desse mundo. Quando voltou os olhos para a estrada, viu a silhueta dos dois velhos engalfinhados em uma sangrenta discussão como duas gatas sobre um rato morto. Os palavrões e vitupérios rasgavam o ar seco, se esbatiam nas serras do Calibrado e ecoavam pelo vale como uma batalha de gigantes. Brigavam pelo dinheiro, certamente. Crispim viu o momento exato em que Julião tirou um vinte e dois da cintura e queimou Jovelino com dois tufos no meio das fuças. Corcoran, que tinha disparado atrás para apartar, estacou atrás da jaqueira. No chão, meio cego, Jovelino conseguiu sacar e sapecou um besouro sem asa nos buxos do primo. Caíram um em cima do outro como se encenassem um auto perverso para deuses malvados. Meu tio os encontrou ainda vivos, sem forças nos dedos para apertar os gatilhos. Os ferimentos eram feios, mortais como todo tiro a queima roupa que vaza de fora a fora! Crispim vomitou ao ver as tripas de julião pulsarem enquanto ele pedia água. Uma forte compaixão pelos velhos miseráveis lhe assaltou a alma. De certo modo, ele era responsável. O sangue a escorrer do rosto de Jovelino simbolicamente lavava a maleta metálica a brilhar no sol. Encostou o ouvido para lhe ouvir os sussurros e ouviu Jovelino sussurrar: Não me deixe aqui, tem bicho que não espera... come a gente ainda vivo!”

Corcoran apanhou as armas e olhou pensativo para o tambor. Sabia que não daria tempo achar socorro naquele ermo chaparral e logo em um domingo, quando caçador nem vaqueiro saía de casa! Os gemidos dos velhacos pareciam agora ofensas imperceptíveis como passageiros que fossem para o mesmo lugar disputando espaço. Corcoran colocou um balaço na cabeça de Jovelino com a arma de Julião; outra bala nos miolos de Julião, com a arma de Jovelino,. Antes de apanhar a maleta de volta, Meu tio olhou os cadáveres, limpou as coronhas, colocou as armas nas respectivas mãos de seus donos e comentou: “Cada um me devia vinte mil cruzeiros pela encomenda cumprida. Estamos quites.”

No dia seguinte apareceram os parentes dos velhotes encomendando os caixões e confirmando o boato de que meu tio, na ausência de clientes, dava um jeitinho de providenciar os presuntos, se desconsiderarmos, é claro, a nobreza moral dos sentimentos que apertaram o gatilho. Os velhacos haviam levado com eles toda a culpa e maldição que pairava sobre aquele dinheiro. Quanto aos dois tiros de piedade... Penso que até eu mesmo os poderia suportar. O peso que retiraram das costas do meu tio fora tão grande que ele se tornou um homem leve e gaiato como ficamos ao se retirar uma pesada bota que usamos o dia todo. Parece até mesmo ter lhe dado asas, pois não é que, feito aquele anjinho alado do amor, o cupido, meu tio não veio a gastar toda a dinheirama lavada no poço da Totonha com as putas no cassino clandestino de Jequié?








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