terça-feira, 25 de outubro de 2022

ZUMBIDOS de AMOR no ACUPE de BROTAS (Argumento Original)



Começo da década de oitenta. O Brasil experimenta uma atenuação da Ditadura, chamada “Abertura”, enquanto no país vizinho, a Argentina, a Ditadura recrudesce.
Milhares de Argentinos migram para o Brasil e Salvador é um dos destinos favoritos. Isidoro Melgar é um deles: professor de física convidado pela UFBa, Vê com apreensão o aumento de hostilidades entre seu país e a Inglaterra no conflito conhecido como Guerra Das Malvinas. Seus irmãos se alistam na marinha e o intimam a fazer o mesmo. Ele hesita entre apoiar os ditadores e defender sua pátria, por saber quem são os tiranos por trás dessa guerra! Ao mesmo tempo, vive uma grande paixão por Israela Midian, uma atriz de teatro que ambiguamente oscila entre ele e Roberto Eco, um rico fazendeiro do interior do estado. A guerra estoura, seus irmãos partem para a batalha e Isidoro Melgar decide se alistar. Em uma festa de despedida, em um grande casarão no bairro Acupe de Brotas, Israela pede que toquem um tango e dança com ele. Isidoro Melgar consegue arrancar dela, ente os suspiros mortiços de um tango, a vaga promessa de que será ele o amante escolhido e parte para a guerra cheio de esperanças.

Vinte e sete anos depois. Israela Midian casou-se com Roberto Eco, abandonou o teatro e vive em uma pequena cidade do interior da Bahia. Isidoro Melgar é hoje um cientista renomado e voltou para Salvador. Comprou o casarão no Acupe, visivelmente estiolado pelos anos, e nele vive em companhia de um casal de serviçais. Especialista em acústica, responsável pelos radares durante a guerra das Malvinas, ele desenvolve pesquisas avançadas e possui o estereótipo do cientista maluco: É meio surdo - seqüelas da guerra no mar - e usa ostensivos aparelhos auditivos. Sua casa é cercada de souvenires de Israela, fotos imensas, uma tela à óleo, cartazes de suas antigas peças, mas proíbe-se tocar nesse assunto.

Um jovem estudante de Física e sonoplasta, Frederico Buarque, é convidado para trabalhar nas pesquisas de Isidoro Melgar e descobrimos, através dele, o teor destas pesquisas. Isidoro Melgar, em renomados artigos publicados na Nature e American scientifique, postula que os sons não se propagam no vácuo e, assim, todos os sons da história, em tese, estariam ainda ressoando pela atmosfera do planeta, em comprimentos de onda subatômicos, quânticos, infinitesimais e na direta proporção da época, do lugar e da intensidade em que foram emitidos. Seu projeto de pesquisa é construir radares cada vez mais sofisticados e softwares rastreadores capaz de gravarem todos os sons da História Universal, ou o máximo deles que for possível.

Essa pesquisa arrebata o jovem Frederico que ouve gravações rudimentares e ruidosas de sons que seriam fatos históricos, experimenta ilhas de edição futuristas, antenas mirabolantes no quintal do casarão e equipamentos de sonoplastia admiráveis. A possibilidade de ouvir o clangor das grandes batalhas, de ouvir Shakespeare recitando seus sonetos de amor, o canto dos castrati na ópera de Veneza e o dos aedos na antiga Grécia ... Um verdadeiro delírio de sons universais toma conta do casarão e entusiasma os pesquisadores nele confinados.

Aos poucos, o arrebatamento e o idealismo de Frederico começa a se chocar com os rumos idiossincráticos que Isidoro Melgar impõe à pesquisa. O jovem sonoplasta, como seria de se esperar, quer ouvir todo o marulho universal e para esse caminho ambicioso tenta conduzir as experiências sonoras. Isidoro Melgar, porém, insiste em determinar coordenadas precisas, definir uma época e local específico para, assim, desenvolver uma alta fidelidade dos sons captados pelas gigantescas antenas, conferindo ao trabalho da sua vida o rigor científico necessário. Fica decidido que o estudo se concentrará nos Sons da Cidade de Salvador, há vinte e sete anos passados. Frederico se submete as diretrizes, embora, de madrugada, o encontremos, no sótão, ouvindo ruídos que ele garante serem os sermões de Antônio Conselheiro em Canudos, dos cavalos de Cortez esmagando os Astecas, os gemidos da Rainha Isabel de Castela seduzida por Colombo e lhe prometendo as caravelas...

Investigando a vida pessoal de seu Professor, Frederico começa a duvidar se por detrás do rigor científico de Isidoro Melgar não estaria algum interesse pessoal; se, confirmando os filósofos da natureza humana, sob a aparente neutralidade do cientista, não haveria desejos e grandes paixões envolvidas. Suas suspeitas aumentam ao tomar conhecimento de que Isidoro quer gravar especificamente a noite onde, durante um baile de despedida ali mesmo no grande salão da casa, dançou um último tango com sua amada, Israela Midian. Paira a suspeita dele querer ouvir outra vez a promessa que ela havia lhe feito naquela noite congelada na sua alma .

Tal suspeita vai se confirmando à medida que os radares se aproximam do objetivo. O cientista Isidoro Melgar vai cedendo lugar ao idoso sentimental preso à um amor do passado. Passa madrugadas bebendo no salão vazio ouvindo o tango “Por uma cabeza”, de Gardel e Le Pera, e alucinando a festa de despedida onde a amada deslizava lânguida em seus braços. Frederico aproveita esses momentos para vasculhar os “rumores da história” e gravar os grandes acontecimentos da humanidade. A possessão de Frederico é visível e seu entusiasmo, sua falta de método e critérios diante das infinitas possibilidades de audição, provoca-lhe uma esquizofrenia, um delírio auditivo e histórico diametralmente antagônico à monomania do velho cientista. Durante o dia, eles perseguem juntos e obstinados uma voz no entourage de uma caótica sinfonia; à noite, são por ela engolidos.

O casal de serviçais também se deixa possuir pela “feitiçaria científica” dos computadores espalhados por toda a casa. Salgado, motorista e caseiro, gosta de ouvir as cenas de sexo, não importa se de Lucrécia Borges ou se da vizinha da esquina; Banúria, sua esposa e cozinheira, suplica para ouvir a voz de seus familiares mortos, nos anos da sua infância, na distante cidade de Itapetinga, sudoeste do Estado#.

Em troca dessas gravações Pornôs, Frederico arranca de Salgado o endereço das cartas que Isidoro Melgar envia regularmente à Israela Midian no interior do Estado. Ela nunca responde, mas os correios acusam o recebimento destas. Frederico lhe escreve pondo-a a par da situação, da importância que suas pesquisas representam para a humanidade, e se ela pode fazer alguma coisa para libertar o professor dessa obsessão, trazendo-o de volta para os sublimes interesses da ciência.

O final começa a se desenhar e tem contornos trágicos. Uma ambigüidade sistemática nos sons percebidos deixa sempre no ar uma dúvida sobre a veracidade deles. Um clima de delírio coletivo, fortalecido pela cenografia pitoresca de um asilo, faz o espectador hesitar entre duas interpretações: ou a experiência sublime de testemunhar os passos da humanidade os tornam seres alucinados, como o “anjo da história” de Paul klee; ou se a histeria do quarteto - sob a batuta carismática do velho apaixonado - é quem interpretaria como testemunhos acústicos (e históricos) uma barafunda de vozes e sons sem vínculos necessários com os supostos fatos (a quantidade de remédios pela casa e o uso ocasional de drogas alucinógenas por Frederico realçam essa opção).

Os boatos se espalham. Curiosos e alguns jornalistas fazem insistentes tentativas de entrevistar o inacessível cientista; dois agentes da Polícia Federal são escalados para proteger o renomado cientista e garantir a privacidade das pesquisas contra a sanha de improváveis espiões (Os dois agentes, Porroló e Montalvan, são obcecados pela CIA, pela extinta Staze alemã, pela Al-Quaida e pela KGB). Para mantê-los afastados, Frederico grava CD’s de Elvis Presley que seriam, supostamente, gravação de shows originais captados pelas poderosas antenas no quintal. Isso os mantém o dia inteiro ouvindo Elvis no som do carro e imitando histrionicamente o desempenho do roqueiro.

Israela Midian faz contato por e-mail com Frederico. Ela conta que há quase trinta anos recebe as cartas de Isidoro Melgar, mas nunca as respondeu em respeito ao seu marido conservador. Não sabe precisar se todas as suas lembranças do flerte que teve com Isidoro são verdadeiras, ou induzidas pela reiteração das cartas, mas se lembra muito bem do baile de despedida e das palavras trocadas enquanto dançavam, pois foi quando ela teve uma forte premonição sobre o futuro de Isidoro, e assustada, o disse na hora, sem pensar muito bem no que lhe falava.

A reserva de Israela quanto o que precisamente foi dito naquela hora aguça a curiosidade de Frederico, que mergulha de corpo e alma na busca do arquivo lapidar, das palavras sibilinas pela atriz de teatro pronunciadas. Ele desenvolve uma plataforma digital e compartilha o processamento da pesquisa com uma rede gigantesca de amigos e aficcionados via Web. Com o auxílio de centenas de PC’s, o rastreamento e a identificação dos gamas sonoros ganham velocidade vertiginosa.

Simultaneamente, a personalidade de Isidoro Melgar se furta aos enquadramentos e apresenta novas nuanças (chega a comentar, embriagado e em frente a uma antiga foto de Israela, que inventou esse amor e essa obsessão para não ser tragado pela loucura de ouvir o grande teatro cósmico da vida sobre a terra; que se sentia como Ulisses se amarrando em um mastro do navio para não sucumbir ao canto das Sereias). Várias vezes, andando embriagado pelo salão cheio de gigantescas caixas de som, ouve-se ele comentar: “mas Ulisses ouviu o canto, e não se apaixonou pelo mastro”! Suas noturnas divagações etílicas são acompanhadas por uma panóplia de gritos, gemidos e imprecações que o programa sintetiza e as caixas reverberam pela sala, como se fosse a trilha sonora do seu inferno particular.

Banúria e Salgado se separam - devido à nova mania de Salgado de ficar a madrugada inteira ouvindo cenas de sexo. Tomada pela nostalgia que as vozes lhe causaram, ela volta para a sua cidade. Salgado furta os caríssimos sintetizadores usados na ilha de som e foge em busca de sua esposa. A pesquisa é interrompida. Frederico parte com os federais para recuperar o material e consegue desviar o percurso até o sítio Primavera, em Itambé-Ba, onde moram Roberto Eco e Israela.

Ainda bela e conservada pela vida no campo, Israela demonstra ser também – substancialmente – uma atriz nata. Seus gestos são distantes e afetados. A presença do seu marido, o fato de Frederico estar acompanhado por dois Policiais, a distância dos fatos transcorridos... Muitas são as razões para a sua dissimulação e reserva. Porém, contrariando o clima tenso e como se quisesse se livrar de um segredo torturante, ela confessa a Frederico ter tido uma premonição muito forte, ter visto Isidoro Melgar morto e não hesitou em lhe falar isso; acredita hoje ter sido esse presságio apenas uma projeção causada pelo temor da guerra para qual ele se alistara. Israela conclui dizendo que estava muito feliz por saber que sua visão fora um engano, que Isidoro estava ainda vivo, e com tais afirmações taxativas, encerra a curta visita.

Salgado é preso na fronteira do Paraguai onde tentava trocar os sintetizadores por uma carga de cigarros. Frederico avisa a Isidoro que o equipamento em breve estará de volta. Isidoro afirma ter trabalhado bastante e ter conseguido um progresso fabuloso. Frederico alerta para o perigo de trabalhar sem os equipamentos adequados - devido a sobrecarga de energia demandada - e volta apreensivo para Salvador (parece ter absorvido um pouco do espírito profético de Israela).

Seus temores se confirmam. Ao subir a Ladeira do Acupe, vê em frente da casa um carro do corpo de bombeiros e uma ambulância. Um início de incêndio é logo debelado. A longa antena em forma de ouvido humano está quebrada e caída sobre o teto do casarão. Frederico Buarque encontra o corpo do profº Isidoro Melgar caído no salão com um paramédico tentando inutilmente reavivar seu coração. Os computadores e ilhas de som fumegam, emitindo um ruído contínuo, os softwares desinstalados, os arquivos irrecuperáveis: Todo o trabalho perdido. Antes de recolherem o corpo, Frederico percebe um pen-drive na mão crispada de Isidoro e o retêm consigo. Após as exéquias, Frederico ouve o arquivo no seu notebook. Sons de carro estacionando, copos brindando, sorrisos, uma lufa-lufa e um grande afã: a festa de despedida de Isidoro Melgar em meados de 1982. Ao fundo se ouve um som mecânico reproduzir uma canção do antológico disco “Realce” de Gilberto Gil. Uma voz feminina, artificialmente destacada da multidão (a mesma voz da atriz Israela), pede que toquem um disco de Tango e ouve-se a rejuvenescida voz de Isidoro – com um sotaque portenho muito acentuado - convidá-la para dançar. O arquivo é filtrado, ouvindo-se apenas o tango de Gardel com o chiado pitoresco do vinil e a voz entrecortada do casal. Isidoro faz um comentário: “Roberto Eco me pediu aulas de espanhol, quer participar de uma exposição agropecuária em Mendonza”. Israela responde: “Que legal! Vejo um próspero futuro para ele!” Um breve intervalo e Isidoro pergunta-lhe com hesitação e embargo: “...E quanto a mim... a nós, que futuro você vê?”

O som que se segue, após um breve silêncio, é perceptivelmente distorcido como se o editor quisesse “secar o átomo”, ouvir com o máximo de acuidade e, nesse afã, corrompendo o timing e a compreensão da voz que diz, com a dubiedade típica da atriz: “AMO-TE! AMO_TE! Frederico aperta o review e volta escutar em outra velocidade. A voz agora parece dizer: “A MORTE! A MORTE! Repete várias vezes sempre alternando AMO-TE... A MORTE... AMO-TE... A MORTE!

Frederico carrega no bagageiro de uma pick-up os equipamentos que conseguiu salvar, os livros e tutoriais da pesquisa, objetos pessoais e um grande quadro a óleo de Israela Midian. Está de mudança para o Vale do Capão, na Chapada Diamantina onde pretende dar continuidade à pesquisa; desta vez, no silêncio e na solidão das montanhas, onde a amplitude dos vales e as escarpas dos grandes platôs formam gigantescas caixas de ressonância para o burburinho e a azáfama da humanidade inquieta e ruidosa. Pode ser também que ele acabe se entregando à curiosidade de ouvir a verdadeira versão das palavras fatídicas: Israela o amava e Isidoro morreu de emoção ao ouvir a declaração pela qual esperou toda a sua vida? Ou a verdade seria a profecia da Morte que, não assimilada, pairou vinte e sete anos, zumbindo na atmosfera, para ser enfim ouvida e realizada? Quão surdo seria Isidoro? Não teria sido a sua morte um mero acidente provocado pela explosão dos equipamentos? Certamente a obsessão do Argentino passa para Frederico como herança maldita, como um beijo de um vampiro. No fundo do carro, entrecortado pelas luzes da estrada, o rosto de Israela no quadro à óleo, feito uma Gioconda, enigmaticamente lhe sorri.

FIM – Vitória da Conquista, 30/11/2009

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