O ALPINISTA
O velho casarão da família Alencar
erguia-se elevado como um castelo em volta do qual se perfilava as ruas e casas
da pequena e ensolarada cidade de Itambé. Outrora efervescente e iluminado
quando o seu construtor nele residia com fausto e celebridade, o casarão vivia semiabandonado
e seu telhado veneziano entoava um carrilhão de estalos fantasmagóricos sempre
que o vento soprava por entre as telhas assustando os bandos de morcegos
atraídos pelos frutos nas velhas árvores do pomar. Provavelmente o cansaço após
a longa viagem por estradas monótonas e desoladas tivesse intensificado a
melancólica impressão do cenário no espírito do jovem Edgar. Mesmo assim foi
com um sorriso emocionado que ele tocou a companhia do antigo lar dos seus
antepassados. Ali havia nascido a sua mãe e nas idílicas lembranças que dela
guardava havia um velho álbum de fotografias com suas salas imponentes e
flamejantes cristais.
Uma menina, com olhos sonolentos e um cobertor sobre
os ombros, abriu-lhe a porta após um longo esforço em arrastar uma viga
comprida e pesada que substituísse a fechadura enferrujada. Era a sua prima
Flávia, certamente. Perguntou-lhe sobre o seu tio J.R. e sobre o telegrama
avisando a sua chegada, mas ela nada respondeu e, recuando com a lanterna erguida
para melhor iluminar a frondosa sala, lhe fez sinal para que entrasse.
Apontou-lhe um longo banco de madeira estofado e subiu correndo os degraus da
escada. Edgar sentou-se com a mala sobre os joelhos e tamborilava com os dedos
exercitando a naturalidade de alguém acostumado à viagens e ambientes
inusitados. Seu olhar passeava com dificuldade na penumbra onde antigos
utensílios descansavam nas prateleiras, nas paredes e nos móveis empoeirados.
Próximo à escada, em um nicho formado pôr duas salientes pilastras, havia uma
espécie de santuário com peles de animais, armas reluzentes e um grande quadro
a óleo onde se via uma figura idosa e severa tendo ao fundo uma bucólica cena
de caçada. "Deve ser o meu avô", pensou Edgar levantando-se para
vê-lo de perto quando ouviu a escada ranger sobre passos arrastados. A maior
parte do casarão era construída em madeira. Seu avô havia feito uma lendária
fortuna como madeireiro e reservou os mais nobres espécimes da então exuberante
mata Atlântica para a construção do Solar que hoje, décadas passadas, rangia
sob os pés de J.R., o filho do coronel Cesário Alencar.
_
Então, você é o meu sobrinho Edgar! – A voz de J.R. se espalhava pela sala
revelando a bela acústica do local. – Você era uma criança nos braços da minha
irmã quando o vi pela última vez!
Enquanto assim falava, a sua filha Flávia assomava
no alto da escada iluminando com a lanterna toda a sala e Edgar pôde ver a
silhueta do seu tio vindo com os braços estendidos em sua direção. Sentiu uma
furtiva lágrima descer quando o abraçou e ouviu o tio evocar as lembranças da
sua mãe falecida há muitos anos. Ele ainda ressentia a morte do seu pai e no
encontro com o tio e a prima reencontrou um pouco da familiaridade perdida.
_Espero
que tenha vindo morar conosco. Esta casa está precisando de mais alguém. Eu
passo o tempo todo trabalhando na empresa de reflorestamento e sinto como uma
grande ironia não poder fazer nada pelas árvores centenárias que o seu avô
derrubou para erguer esse castelo...
_Meu
pai disse que estas árvores ainda estão vivas. Se nós cuidarmos delas os galhos
vão brotar das paredes e as raízes irão crescer embaixo do assoalho. A casa vai
subir e ficar pendurada lá no alto como no sonho que eu tive!
Edgar
surpreendeu-se com o espírito infantil da sua prima que exibia, entretanto um
corpo de uma moça com mais de quinze anos.
_
Não, não vim com a intenção de morar com vocês. Já estou acostumado a viver
sozinho. Como deve saber, ... J.R.,... posso chamá-lo assim?
_
Mas claro! Continue...
_...Tão
logo minha mãe faleceu fui enviado para Louvain, na Bélgica, onde devo ser
ordenado padre no final do próximo ano. A morte trágica do meu pai permitiu-me
estas férias extemporâneas e senti-me na obrigação de vir conhecê-los. No
bilhete que deixou antes de se matar ele pediu que eu viesse aqui e o ajudasse,
embora seja eu talvez quem mais precise de ajuda nesse momento...! Edgar ainda
se emocionava ao lembrar a morte de seu pai e interrompeu seu discurso temendo
ser vencido pela dor e revelar o seu temperamento passional, quando era
justamente a fleuma da sua linhagem a virtude mais legendária e cultivada.
J.R. estava surpreso com este último
desejo do cunhado, com quem não falava desde a morte do coronel Cesário. Quando
a sua irmã faleceu eles se encontraram nos funerais e esboçaram um aperto de
mãos frias como as do cadáver que os unia. A herança do coronel, uma fortuna
considerável, ficou nas mãos exclusivas do pai de Edgar e, como a lâmina de um
machado, separou J.R. do tronco da família Alencar. Um breve silêncio pesaroso seguiu-se
às frases embargadas de Edgar, mas J.R não pode conter a curiosidade.
_
Que tipo de ajuda seu pai desejava para nós? - A pergunta incisiva caiu como um
balde de água fria no ânimo afetado de Edgar.
_
Não faço a menor ideia. Meu pai deixou-me todos os seus bens mas sabia do meu
firme propósito em doar tudo para as obras da igreja. A minha madrasta dizia
que o senhor teve uma vida muito dissoluta e uma alma cheia de pecados. Quem
sabe não esteja precisando de um confessor e de uma orientação espiritual?
Sem deixar de fitá-lo, J.R. disfarçou com
um sorriso maroto o constrangimento ao descobrir no seu sobrinho a mesma
insolência do falecido cunhado embora este fosse atrevido quando uma boa causa
o justificasse, como usurpar sua herança, por exemplo, enquanto Edgar o era
gratuitamente como se nas suas veias corresse o atávico sangue do seu avô, o
prepotente coronel Cesário.
_
Muito obrigado, sobrinho. Esta fase da minha juventude a que sua madrasta se
refere foi uma breve aventura sem muitas consequências. Hoje em dia somos
católicos e frequentamos a igreja todos os domingos, eu e a sua prima. Quanto
ao dinheiro, não tenho do que me queixar. A empresa onde trabalho paga-me o
necessário para uma vida modesta e sem ambições e o prazer que sinto em
reconstruir a floresta que meu pai destruiu justifica todas as minhas privações
e enche de júbilo a minha alma. Nossa vida aqui é um pouco monótona e
solitária, a presença de um sobrinho tão afável e inteligente pode ser o
verdadeiro auxilio desejado por seu pai. Prolongue ao máximo a sua estadia
entre nós, ajude a sua prima nos estudos e imensa será a nossa felicidade. -
Dizendo assim, J.R. conduziu Edgar ao quarto de hóspedes no final de um longo
corredor cheio de vasos com mudas de árvores e sacos de adubo empilhados.
Em poucos dias Edgar acostumou-se ao
ambiente sóbrio e silencioso do casarão semelhante, no silêncio e na copiosa
vegetação, ao colégio interno onde vivera tantos anos. Sentia falta da
monumental biblioteca onde passava longas noites estudando a vida dos mártires
cristãos, seu tema favorito, mas logo descobriu uma rude prateleira com os
livros empoeirados do seu avô e levou para o seu quarto velhos romances de
autores desconhecidos, lendo-os sem o hedonismo comum aos jovens da sua idade e
sim, como um sensor em busca de casos morais onde pudesse aplicar o juízo e os
dogmas da Bíblia sagrada que deambulava em seus braços como um apêndice da sua alma. Uma exceção se
dera quando Edgar encontrou uma curta novela manuscrita em folhas avulsas
dentro de um velho livro e provavelmente escrita por um literato amador tal o
excesso de termos e expressões regionais contrastando com o tema esquisito de
um alpinista no Himalaia. A princípio, interessado em descobrir um amante da
literatura no seio da sua família, Edgar iniciou a leitura do manuscrito com os
olhos severos e críticos de um erudito, mas logo se viu envolvido pelo estilo
fluido e febril da narrativa. Ao cair da noite o seu tio J. R. o encontrou
ainda absorto na leitura e Edgar o cravejou com perguntas sobre a origem
daquelas páginas. J.R. nada sabia a respeito mas pela caligrafia garantiu não
ser o autor nenhum membro da família.
_Tão
logo começou a enriquecer com o comércio de madeira, o seu avô abandonou a vida
rude de um madeireiro solitário e se tornou um filantropo de intensa vida
social. Tenho vagas lembranças de festas suntuosas nesta casa com músicos no
terraço e atrizes mascaradas causando-me pavor e pesadelos. O quadro à óleo do
meu pai na sala de visitas fora pintado por um artista italiano que hospedou-se
aqui por algumas semanas. Talvez um dos muitos comerciantes hospedados por seu
avô fosse um rabiscador de histórias e tenha se inspirado nos bosques fabulosos
que outrora cercavam esse lugar para escrever uma bela fantasia, mas, afinal de
que se trata essa história que tanto lhe impressionou?
Edgar
tergiversou e somente após o jantar, sentados na varanda e envolvidos por uma
gradual e silenciosa escuridão, é que resolveu esboçar um resumo do manuscrito:
_Não
se sabe a época nem a nacionalidade das personagens envolvidas. Os nomes
sugerem se tratar de europeus. Há um alpinista em intensos preparativos visando
conquistar o topo de um montanha no Himalaia. Após se despedir com lágrimas
efusivas do filho recém-nascido e da esposa aflita, ele parte sozinho em busca
da glória em conquistar o pico até então inatingível. Há uma atmosfera épica na
sua luta com a montanha, há o vento gelado soprando todas as noites como um
uivo assassino, a ameaça das avalanches e os limites do corpo sendo
ultrapassados por uma vontade obstinada. Próximo do topo, porém, o nosso herói
é vencido por uma avalanche aterradora que desaba sobre ele com um estrondo
ensurdecedor. O alpinista morre soterrado sob uma insana montanha de gelo e o
seu corpo não será jamais encontrado. Passam-se vinte e cinco anos. O filho do
alpinista tem agora a mesma idade do pai quando este faleceu e , além do
semblante e do nome, havia herdado do pai o mesmo fascínio pelas montanhas
tornando-se também um alpinista. Escalou diversas montanhas no mundo inteiro
mas o seu recalcitrante objetivo era o pico no Himalaia que vencera o seu pai e
que continuava imbatível como um celestial e imaculado véu de neve. Uma noite
ele sonhou com o vulto do seu pai escalando a montanha escura enquanto lá no
alto o pico resplandecia orgulhoso aos últimos raios de sol. Decidiu que a hora
havia chegado e partiu para o grande desafio. A escalada começa com os mesmos
percalços e visões sublimes experimentadas por seu pai. Já próximo do cimo, o
alpinista sofre um acidente e cai em uma discreta fenda entre as pedras ali
ficando gravemente ferido, sem forças para continuar e sem pensar um momento
sequer em recuar para o acampamento montado na base da montanha. O tamanho da
sua obstinação revelou-se maior que o desafio. Ele estava decidido a morrer ali
soterrado a se dar por vencido.
_
Ele não poderia recuar e tentar outro dia?- Perguntou-lhe Flávia.
_
Era um dia muito significativo para ele, era a data do nascimento e da morte do
seu pai; além do mais havia outros alpinistas a caminho e ele temia que outro
vencedor roubasse o mérito da sua façanha. O frio começa a penetrar em seu
corpo; em sua consciência congelada desvanecia a chama da vontade e a sombra da
morte crescia sob o sol que declinava. Ao escavar a neve em busca de pedras
onde haveria ainda um pouco de calor, ele viu um corpo humano em roupas de
alpinista congelado dentro de um imenso bloco de gelo! Era o corpo do seu pai
que ali havia caído há vinte e cinco anos atrás e conservado graças ao gelo
eterno do Himalaia. Uma onda de calor percorreu o corpo trêmulo do jovem
alpinista cujo grito de pavor retumbou amplificado nos palácios de gelo da
imponente cordilheira. Seus músculos retomaram o vigor perdido na queda e ele
volta a escalar o pico com uma agilidade que ele próprio desconhecia. Ao chegar
ao topo nunca antes pisado por um ser humano ele encontra-se exausto e bêbado
de emoção. O vento gelado cristaliza suas lágrimas e ele finca a bandeira com o
brasão da família que estala sob o vento como um frenesi de aplausos. Abaixo
dos seus pés a luz do sol e as trevas travam um duelo alciônico sobre a
curvatura da terra e um êxtase nunca antes experenciado preenche de glória o
menor dos seus passos. Ele não tem tempo para descansar. É preciso descer antes
que escureça e voltar no outro dia para resgatar o corpo do seu pai. No
acampamento ele quase não consegue dormir e quando o sono vencia a excitação
ele sonhava com o seu pai em cumprimentos efusivos pela vitória na montanha. O
sonho era tão vívido que ele acordava e andava sobre a neve esperando
encontrá-lo na retinta escuridão. No dia seguinte e nos próximos ele vasculhou
cada centímetro da fenda sem encontrar nenhum vestígio do corpo de seu pai. Até
as últimas linhas desta sublime história não sabemos se o gelo moveu-se
escondendo o cadáver, se tudo não passou de um caprichoso efeito ótico, comum
em lugares rarefeitos, refletindo em um espelho de gelo a sua própria imagem ou
se o espírito do seu pai lhe apareceu em uma fantasmagórica e providencial alucinação.
_Foi
o fantasma do pai dele que apareceu, tenho certeza!- Flávia comentou com o
olhar perdido na escuridão. J.R. tinha o semblante distraído, talvez não
possuísse a sensibilidade para casos tão ambíguos ou estivesse com sono. Disse
que Edgar poderia ficar com o manuscrito e fazer com ele o que bem entendesse.
Já era tarde e todos decidiram dormir após uma visita habitual à geladeira.
Flávia e Edgar ainda comentavam alguns detalhes da história e tinham a fome que
costuma surgir quando excitamos muito a imaginação; J.R. apenas bebeu um
imaculado copo de leite e subiu taciturno as escadas mergulhadas na escuridão.
A
presença de Edgar no solar do seu avô já durava uma semana. Ele havia reservado
os últimos dias de suas férias para uma viagem com a madrasta mas decidira
ficar em Itambé. Não estava com disposição para passeios turísticos e conhecia
o ostensivo interesse da madrasta pela herança do seu pai. Com liberalidade
destinou-lhe uma razoável soma em dinheiro na forma de um cheque nominal
acompanhada por uma carta afetuosa onde lhe era prometida uma visita de
despedida antes de embarcar de volta para a Europa. Seu propósito agora era
saber um pouco mais a respeito de seu avô cuja única imagem possuída era o
quadro a óleo no início do corredor. Não havia fotos nem registros de nenhuma
espécie salvo os objetos pessoais que pouco dizia a um ansioso investigador. Pelos
espaços vazios no interior da casa deduzia-se que muitos móveis e peças de
valor desapareceram após a morte do coronel Cesário e era com passos desolados
e com uma inquietação crescente que Edgar vagava as longas tardes pelos quartos
soturnos e corredores empoeirados. Era um hábito antigo esse de caminhar pelos
aposentos enquanto meditava em cavilosas questões de teologia intercaladas por
orações que, além de interceder pela salvação da sua alma, iluminava com uma
luz sobrenatural os labirintos do seu intelecto permitindo a Edgar resolver os
mais intrincados problemas teologais. Era assim, ora compenetrado em salmos
fervorosos, ora absorto nas páginas de um santo filósofo, que o noviço era
visto em seu improvisado retiro espiritual e foi assim, no final de uma tarde chuvosa,
com a luz prateada do crepúsculo agonizando nas trevas iminentes, que Edgar
deparou-se com o vulto curvilíneo de um homem cruzando o espaço entre dois
quartos. Edgar aproximou-se imaginando se tratar do seu tio J.R., chamou-o pelo
nome e estendeu o braço para tocar-lhe o ombro. Sua mão parou a meio caminho
quando o vulto virou-se exibindo um rosto esmaecido e com o lado direito em
estado de avançada putrefação. Edgar imaginou estar diante do seu avô redivivo
tão grande era a semelhança do vulto com a imagem do coronel Cesário no quadro
da sala e antes mesmo de ver a chaga viva no lado direito já estava desmaiando
com o baque surdo no assoalho espantando os morcegos aninhados no sótão.
Acordou momentos depois com o deslizar de uma toalha úmida sobre o seu rosto.
Abriu os olhos e viu J.R. sob a luz da lanterna nas mãos de Flávia.
_O
que lhe aconteceu?- J.R. perguntou-lhe enquanto imergia a toalha em uma bacia
com água. Edgar fitava-lhe o rosto, ainda atordoado.
_Como
o senhor se parece com o meu avô pintado naquele quadro! Só agora estou
percebendo isso!- Ainda atordoado Edgar tocou a face direita do seu tio como se
quisesse certificar se a pele estava no lugar.
_Somos
todos muito parecidos; eu, sua mãe, você e Flávia... Até nesse aspecto o meu
pai era um tirano! Impôs sua fisionomia a todos nós! Mas por que isso agora?
Levante-se e vamos jantar. Mandarei Flávia ir buscar o médico da cidade.
Edgar recusou a vinda de um médico
demonstrando estar bem melhor e alegando um mal súbito devido ao excesso de
estudos. Não disse nada sobre a alucinação no entardecer, pois temia o ridículo
mas não conseguia afastar do seu pensamento a visão do seu avô corroído por uma
chaga infernal. Desde os seus primeiros anos, Edgar fora marcado pelo fervor
religioso da sua mãe que lhe abriu as portas da sensibilidade para os milagres,
as visões e o cortejo de entes sobrenaturais que viajam de carona nas
narrativas cristãs. Ao fazer da fé uma profissão, Edgar esperava dar aos seus
pendores místicos a sensatez do sacerdócio e o freio de uma vida comunitária,
mas bastou-lhe aquela aparição para abalar o seu projeto de se tornar um
equilibrado teólogo racional. À noite o noviço orou pela alma do seu avô e
dormiu sem nenhum temor ou contratempo, mas, na noite seguinte, já quase
adormecido sobre os lençóis, ouviu passos e gemidos no corredor. Levantou-se em
sobressalto e envolto no cobertor, com os cabelos desalinhados, foi verificar o
que se passava ( ainda teve senso de humor em pensar na má impressão que
causaria a um fantasma a sua aparência desalinhada ). Ao abrir a porta do
quarto viu uma luz difusa ao longo do assoalho e, na outra extremidade, próximo
às escadas, um frenesi de lucíolas na parede sugerindo algo muito brilhante a
se mover pela sala - e vinha em direção ao corredor! Desta vez o vulto tinha um
brilho irisado e parecia flutuar sobre o piso, mas o rosto era o mesmo da visão
anterior. Edgar apoiou-se no vão da porta segurando o crucifixo entre os dedos
crispados e tentou não perder o pouco da serenidade que lhe restava. A meio-caminho,
o vulto estancou-se e tentou dizer alguma coisa, mas nenhum som conseguia
vencer o silêncio envolvente, exceto um forte zumbido nos tímpanos e o retumbar
do seu coração, impedindo-lhe talvez de ouvir o que o fantasma tinha a dizer.
Ainda balbuciando, o vulto se apagou mergulhando toda a casa em uma profunda
escuridão.
Edgar voltou-se para o seu quarto, deu duas voltas
na fechadura e encolheu-se na cama entoando suas preces em voz alta na
esperança de esparzir a proteção da sua fé até onde sua voz pudesse alcançar.
_
Ouvimos vozes no seu quarto ontem à noite; parecia estar orando em voz alta! -
Comentou o seu tio durante o café da manhã. Edgar estava com o semblante
abatido e resolveu contar ao tio o que estava acontecendo. Habituado às
confissões, não tergiversou e descreveu as duas aparições com o máximo de
detalhes possíveis. J.R e Flávia ouviam em silêncio a narrativa e em momento
nenhum pareciam duvidar da veracidade dos fatos. J.R. concluiu o desjejum,
limpou a boca na toalha da mesa e, sem esperar Edgar concluir o seu, abraçou o
sobrinho levando-o à varanda, seguidos por Flávia carregando um pote de
biscoitos nas mãos.
_
Eu temia que isso acontecesse, meu querido sobrinho, mas não sabia como lhe pôr
a par desta estranha circunstância, afinal, a igreja católica não admite esse
tipo de fenômeno... A verdade, porém, é que o fantasma do meu pai assombra esta
casa há muitos anos e é por isso que não temos aqui nenhum empregado. Eles
começam a trabalhar e fogem assustados dias depois. Tenho quase certeza de ser
este o motivo do seu pai ter desejado tanto a sua presença entre nós, de alguma
maneira ele devia saber do que se passava aqui. Chegou a hora de você saber
toda a verdade sobre seu avô!- J.R. sentou-se na velha cadeira de balanço na
varanda enquanto Edgar ouvia atenciosamente com a Bíblia entre os braços num
gesto inconsciente de proteção.
_Nos
últimos anos de vida, o velho coronel Cesário Alencar tornou-se um homem
profundamente angustiado e melancólico. Havia se cansado dos festins e dos
prazeres que a riqueza tardia lhe proporcionara ou talvez não tivesse mais
saúde para desfrutá-la. No período de poucos meses em que ocorreu essa mudança,
ele cancelou o calendário das festas programadas, dos passeios e isolou-se dos
amigos e velhos sibaritas que gravitavam ao seu redor como um enxame de
abelhas; abandonou também o seu esporte preferido, a caça, doando todos os cães
e se desfazendo de suas armas já obsoletas. Eu e Berenice, a sua mãe, fomos
enviados a um colégio interno e era com um grande pesar que retornávamos de
férias para encontrá-lo taciturno e misantropo como um ermitão. A casa e o
pomar ganharam essa atmosfera desolada como se o misterioso mal que se abatera
sobre o meu pai houvesse se infiltrado no solo e nas paredes. Era comum nesta
época encontrá-lo conversando sozinho em uma incompreensível cantilena de
palavras ásperas e resmungos freqüentes; mas a atitude mais bizarra da sua vida
ele reservou para o final. Você era um recém- nascido e morava com seus pais na
cidade vizinha. Vieram todos, muitos parentes hoje desaparecidos, velhos amigos
e curiosos, uma multidão como há tempos este não via, reunidos pela loucura do
seu avô!
_Ele
enlouqueceu?
_Para
muitos, sim. Como se previsse o colapso cardíaco que o vitimou, ele escreveu um
bilhete ao seu advogado expressando a categórica resolução de ser enterrado ao
lado de toda a sua fortuna. Todas as suas aplicações financeiras deveriam ser
resgatadas e o valor apurado depositado ao lado do seu corpo no caixão!
Concluía o bilhete uma obscura reflexão sobre os malefícios da riqueza
adquirida sem esforço na formação do caráter (uma alusiva mensagem para nós, eu
e Berenice) e um inesperado arrependimento por haver se enriquecido com a
destruição irreversível de uma mata nativa.
_É
por isso que você trabalha hoje em uma empresa de reflorestamento? Acredita ser
a tristeza dos seus últimos anos uma consequência deste arrependimento?
_Não
sei se ele possuía tais sentimentos em relação à natureza. Seria preciso para
tal um coração muito romântico ou uma precoce e espontânea consciência
ecológica, duas hipóteses bastante inverossímeis embora, devo confessar, desde
que comecei a trabalhar com reflorestamento o fantasma do meu pai nunca mais me
apareceu, mas voltemos ao episódio do funeral. O bilhete não era um testamento
registrado e poderia ser impugnado sem dificuldade, mas éramos muito obedientes
e orgulhosos, eu e a sua mãe, para contrariar o último desejo do nosso pai e
não havia espaço em nossos doloridos corações para considerar a possibilidade
dele ter enlouquecido. Um gigantesco caixão de cerejeira foi encomendado e o
seu pai foi autorizado pelo juiz da comarca a movimentar a conta bancária do
coronel na cidade vizinha e trazer o dinheiro a tempo de enterrá-los ( eu e a
sua mãe estávamos bastante abalados para operar movimentos bancários tão
complicados ). Nosso único temor era proteger o túmulo dos aventureiros, pois a
notícia já corria a cidade e muitos dos que vinham dar o último adeus ao meu
pai tinham nos olhos o brilho da cobiça capaz de iluminar a mais profunda das
catacumbas. O sol já declinava nas montanhas quando o seu pai retornou. Saltou
do carro com o semblante torturado, os passos lentos e os ombros encurvados
como se carregasse um grande fardo, mas nenhuma mala ou sacola cheia de notas
reluzentes como esperávamos. Sem dizer uma única palavra, o seu pai venceu a
multidão de curiosos espremidos na antessala e aproximou-se do grande esquife
reluzente onde o seu avô jazia como um náufrago dentro de um espaçoso barco.
Sentado entre nós e o velho juiz de olhos vigilantes, o advogado tentava
controlar a transpiração com um lenço já encharcado de suor e foi o primeiro a
se levantar. O silêncio nos envolveu como se a nossa casa houvesse se
transformado em um vetusto tribunal.
_Conseguiu
sacar todo o dinheiro do coronel?- Perguntou-lhe o advogado.
_Foi
bastante difícil. O gerente insistia não ter todo o valor em caixa; por sorte,
era dia de pagamento na cidade e centenas de salários e aposentadorias
esperavam no cofre pela fila de correntistas que dava voltas no quarteirão. O
gerente entrou em pânico ao ver a ordem do juiz e ao ouvir a ameaça dos
policias que me acompanhavam. Imagino a confusão que foi pedir aos clientes do
banco que esperassem por uma nova remessa de dinheiro...
_E
onde está, afinal, o dinheiro? Dentro do carro?- O advogado estava ansioso como
se temesse uma grande surpresa. O seu pai também estava sob forte tensão e
torcia as abas do chapéu como se fosse mastigá-las.
_Assim
que entrei no carro com todo aquele dinheiro, me senti na pele do meu sogro
enterrado ao lado de uma fortuna que nunca o deixaria repousar em paz. O temor
que eu sentia em ser roubado era o mesmo que sentiríamos pelo seu túmulo
durante o resto de nossas vidas. Não podemos manter um exército de vigilantes
no cemitério durante anos e anos, então...
_Então?!...
_
...Depositei todo o dinheiro em minha conta, no outro banco da cidade!
_Um
grito uníssono de comoção deslizou pela sala. O juiz levantou-se atordoado. Era
um dos amigos mais antigos do seu avô e morava em uma mansão próxima ao
cemitério onde o dinheiro seria enterrado.
_ O desejo do seu sogro era ser enterrado ao
lado da sua fortuna! - Gritou o magistrado com uma incontida violência; seu
rosto lembrou-me uma gravura de Radamanto, o tenebroso juiz dos infernos.
_SIM!-
Seu pai tentava manter a voz firme. - Em momento nenhum, porém, ele exigiu essa
fortuna em cédulas ou moedas. Aqui estão os recibos do banco confirmando o
montante que ele possuía - entregou com gestos enfáticos o maço de recibos nas
inquiridoras mãos do juiz - ... e aqui está um cheque meu, no mesmo valor,
nominal ao saudoso morto. Assim teremos a certeza de que ninguém irá violar o
seu túmulo e sua fortuna dormirá ao seu lado pela eternidade afora.
_Um
alvoroço tomou conta do velório. Após um curto e intenso conflito entre a
vontade do pai e o futuro do filho recém-nascido, a sua mãe resolveu-se em
lágrimas e abraçou o marido dando a ele todo o apoio que precisava para
sustentar a sua audácia. O advogado ainda tentou um último argumento:
_Mas
esta riqueza que ele levará ao túmulo é apenas simbólica!
_O
seu pai demorou a responder como se não precisasse mais de nenhuma aprovação
para o seu ato. Depositou com olhos úmidos o cheque nas mãos do defunto sem
dobrá-lo para que todos pudessem confirmar o valor e, afagando-lhe o rosto,
sussurrou algo inaudível no rosto do sogro. Depois, com o olhar perdido em
alguma dor abscôndita, respondeu ao advogado com ares de filósofo:
_Todo
dinheiro é simbólico, meu caro! O papel em que ele é impresso não vale sequer
uma barra de sabão! _ e dizendo assim consertou o colarinho sujo de suor do
advogado com a intimidade de um anfitrião.
_E
qual foi a sua reação, meu tio?- Perguntou Edgar já sem conseguir esconder a
indignação com a astúcia do seu pai.
_A
minha reação custou-me a inimizade do seu pai por todos estes anos e muitas
privações. Não pensei na situação da sua mãe tendo um filho para criar e muito
menos na possibilidade dele dividir o dinheiro comigo. Na minha mente atordoada
só havia lugar para a vontade do meu pai e com passos cambaleantes em sua
direção, desferi um violento soco no meu cunhado que caiu desmaiado como um
cadáver sobre o caixão.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio.
J.R. parecia sentir as velhas dores de uma ferida não cicatrizada e esperava
algumas palavras de conforto, mas Edgar estava distraído e, surpreendentemente,
aliviado como se a sua linhagem passasse entre roldanas onde o seu avô e o seu
pai, descendo os sete côvados da terra, o mantivesse em uma feérica levitação.
A roldana era aquela fortuna deslizando de mão em mão. Custou-lhe noites de
insônia decidir o que fazer com esta fortuna multiplicada por seu pai em anos
de astúcias e especulações. Ainda há pouco as tentações de uma vida principesca
seguiam como uma sombra a sua decisão de doar tudo às obras da Igreja, mas
agora não havia mais motivos para hesitar. Ainda que a maldição do avô fosse
apenas uma lenda e fosse uma doença desconhecida a causa da sua velhice
neurastênica, aquela herança tinha as marcas da usurpação e da cobiça; qualquer
uso que dela ele fizesse comprometeria os seu votos de uma vida impecável e lhe
afastaria as recompensas da salvação.
_E
o fantasma? - Edgar se constrangia ao tocar neste assunto, mas o sol brilhando
na varanda transformava temas dessa natureza em fenômenos prosaicos e quase
histriônicos. - Apesar de tê-lo visto duas vezes e do testemunho de tanta
gente, algo em mim insiste em acreditar que tudo não passou de uma alucinação!
_Talvez
seja! Uma alucinação coletiva! Até Flávia já o viu!- J.R. declinou a voz como
se tivesse deixado escapar algo que não deveria ser dito. Sentada no muro entre
velhos vasos de flores, Flávia dilatou as pupilas e levou à boca o último dos
biscoitos.
_E
o que foi que a minha querida prima viu? Posso saber?
_É
melhor o meu pai lhe contar. Eu não gosto de falar sobre isso.
Um calor opressivo castigava a cidade de Itambé
e os homens esqueciam por alguns instantes as lentas atribuições para limpar o
suor da testa e olhar o horizonte onde caía uma distante chuva de verão. No
solar da família Alencar, um casarão em franca decadência, um homem de
aproximadamente quarenta anos velava a filha, que uma febre ardente mantinha
sobre a cama entre bonecas de pano e livros coloridos. Ela era o fruto da sua
união com uma corista de circo, um caso de amor tempestuoso que o fizera
abandonar os estudos e ser deserdado pelo pai que não aceitara aquela união. A
sua irmã e o esposo haviam herdado toda a herança do coronel Cesário e quando
ele abandonou o circo e a corista, só lhe restava da grande paixão, a guarda da
filha e, do pai falecido, o velho casarão abandonado. Um piedoso amigo do
coronel lhe conseguiu um emprego na empresa de reflorestamento que plantava
pinheiros para uma fábrica de celulose e, com isso, ele vivia quase como um
eremita, como se houvesse herdado, além da casa e dos traços fisionômicos, a
neurastenia que condenou o seu pai a anos de solidão. Agora ele precisava muito
da companhia de um médico, já havia telefonado e aguardava ansioso a chegada da
ambulância, andando de um lado para o outro do quarto. A febre recrudescia e
J.R. desesperado resolveu não aguardar mais e saiu correndo até o consultório
do médico situado no outro lado da cidade. Minutos depois a febre da menina
começou a regredir quando uma mão gelada passou a deslizar suavemente sobre a
sua fronte. Flávia abriu os olhos e surpreendeu-lhe uma luz diáfana a brilhar
por todo o quarto. Ao seu lado, sentado na cabeceira da cama, estava um ancião
quase sorridente.
_Quem
é você? Onde está o meu pai?
_Eu
sou o seu avô! Não tenha medo!
_O
meu avô já morreu! Eu vou morrer também?
_Não,
minha querida. É só uma febre que já está passando.
_Por
que foi que você morreu?
_É
uma longa e triste história. Você quer mesmo saber?
_Quero!
Meu pai conta-me histórias tristes e eu gosto.
_Bem...,
todos dizem que eu morri do coração. É verdade, mas não foi como eles imaginam.
Eu tive uma doença muito rara chamada catalepsia que é mais ou menos assim:
você dorme profundamente e não consegue mais acordar. Todos os seus órgãos
passam a funcionar em um ritmo tão lento que só um exame com aparelhos
específicos pode registrar. Você pode ficar assim por muitas horas e foi como
eu fiquei, deitado dentro de um grande caixão. Todos pensavam que eu estava
morto mas eu já tinha recobrado a consciência e, embora não conseguindo mover
um dedo sequer, era capaz de ouvir tudo o que eles diziam...
_Que
horror! Eu sei como é isso. Às vezes tenho pesadelos e quero acordar, sei que
estou dormindo, mas não consigo!
_Era
mais ou menos assim que eu estava...
_E
o que é que estas pessoas diziam?
_Muitas
estavam chorando, outras rezavam o tempo inteiro e outras me censuravam por eu
haver escrito um bilhete pedindo que todo o meu dinheiro fosse enterrado comigo
dentro do caixão...
_Por
que você fez isso?
_Eu
tinha feito muitas coisas erradas para juntar toda aquela dinheirama e estava
muito arrependido. Alguém havia lançado sobre a minha riqueza um maldição que
acabou se realizando e eu não queria que ela se estendesse aos meus filhos. Eu
esperava a qualquer momento ser coberto no caixão por milhares de notas, já sentia
o cheiro do dinheiro me sufocando quando o seu tio apareceu. Ele era o
encarregado em sacar o dinheiro no banco e depositá-lo no meu caixão, mas sabe
o ele fez?
_Não.
O que foi que ele fez?
_O
safado depositou tudo na conta dele e me deu um cheque no mesmo valor! Foi
quando eu comecei a sentir uma forte dor no peito. Agora eu tinha mais um
motivo para tentar acordar, vingar aquela traição. Redobrei o esforço e tudo o
que consegui foi aumentar a dor no peito, finalmente veio o golpe de
misericórdia. O seu tio aproximou-se do meu ouvido, colocou o cheque em minhas
mãos e disse com profundo rancor: "
Vá descontá-los nos bancos do inferno!", meu fraco coração não suportou
esse último golpe e então eu morri de verdade, já encomendado de preces e com
uma vela na mão!
_Sabe
o que eu acho? O senhor se parece demais com o meu pai! Até a voz é a mesma!
_Foi
bom você se lembrar dele. Ele já deve estar chegando. Fique aí deitada que vou
ver onde ele anda.
J.R. entrou no quarto da filha minutos
depois. Estava sozinho e encontrou-a delirando. Flávia gesticulava e balbuciava
frases entrecortadas como se falasse com alguém. Em pânico, J.R. a envolveu nos
lençóis e carregou-a nos braços até o automóvel emprestado por um vizinho. O
médico que a atendeu foi incisivo no diagnóstico. A menina não tinha
absolutamente nada, a temperatura estava normal e tudo não passara, conforme
escreveu no prontuário, de uma típica histeria de criança.
Era a sua última noite no velho casarão
do seu avô. Edgar não conseguia conciliar o sono e deitado em sua cama, com as
duas mãos sob a cabeça, fitava com olhos penetrantes a escuridão. Seu espírito
vagava nas lembranças do pai falecido e nada encontrando que indicasse uma
atitude como aquela de usurpar a herança do cunhado, admirava-se com a
obscuridade da alma humana. Ainda não descobrira que tipo de ajuda seu pai
esperava que ele trouxesse ao tio solitário. Seria dinheiro para tirá-lo desse
grande mausoléu já infestado de cupins? Seria algum tipo de exorcismo capaz de
expulsar o espectro do avô condenado a vagar pelos sinistros corredores? Edgar
não conseguia evitar a inquietação que acompanhava seus pensamentos nas
aparições por ele testemunhadas. Segundo os dogmas da Igreja, até o dia da
ressurreição dos mortos, nenhuma alma pode vagar por este mundo e, quando
coisas semelhantes acontecem, há sempre por trás o insidioso dedo do demônio.
Em meio a tais cavilações, começou ele a ouvir passos no corredor. Edgar
levantou-se de um salto como se respondesse aos badalos de uma hora canônica e
surpreendeu-se ansioso pela visão do fantasma como se ele representasse um
desafio a sua fé e um ritual de iniciação à vida santa. Abriu a porta do quarto
e ali esperou com o firme propósito de exorcizá-lo, munido com o crucifixo
benzido pelo santo papa e um cabalístico cabedal de orações. Sua face estava
crispada e, na extremidade de uma longa linhagem de cardíacos, o seu coração
descompassava. Os minutos passavam arrastados, os ruídos desapareceram e Edgar
concluiu ser apenas a sua imaginação excitada quem povoava o solar de ruídos e
passos. Voltou-se para o quarto e fechou a porta. O fantasma do seu avô estava
deitado na sua cama e brilhava como se tivesse uma tinta fosforescente
espalhada sobre o rosto; parecia estar agonizando enquanto Edgar mal respirava.
Com as costas apoiadas no dólmã da porta ele fitava com avidez e pavor a imagem
sobre a cama pressentindo o quão efêmera e medonha ela era. Súbito, o coronel
Cesário fitou o neto no fundo dos olhos, ergueu o esquálido antebraço e
esfregou os dedos polegar e indicador, uma típica alusão ao dinheiro; depois
envolveu o corpo com os dois braços como se o cobrisse da cabeça aos pés. Edgar
não demorou a entender o sentido daqueles gestos e ensaiou exclamar: " O
dinheiro? Dentro do seu caixão!". Mas a sua voz havia desaparecido. Em
seguida, como se caísse um pano negro sobre o rosto brilhante, o espectro
desapareceu e com ele tudo o que era visível. Edgar sentiu-se envolvido por um
vazio infinito como se além do chão aos seus pés, toda a sua entourage fosse tragada
para outra dimensão. Vencida pelo
desmaio, a insônia deu lugar a um sono pesado e ele dormiu ali mesmo no
assoalho até os primeiros raios da manhã. Ao acordar ainda estava abatido e ao
arrumar as malas abandonou os poucos livros que trouxera em um gesto de
provável desilusão com o racionalismo cristão que eles professavam. Após o
almoço, presenteou a prima Flávia com um jogo de tintas e pincéis e pediu ao
tio que o acompanhasse até a varanda. Após tirar os óculos, limpar as lentes na
camisa engomada e manter-se compenetrado por alguns instantes, abordou o
assunto de modo incisivo.
_Agora
eu sei por que o meu pai insistiu na minha vinda a esse lugar. Ele ficou com o
dinheiro que pertencia ao senhor e - Flávia e morreu sem ter a oportunidade ou a
humildade em devolvê-lo. Posso imaginar o quão atormentado ele viveu todos
esses anos e quase posso medir o peso dessa tormenta na mão suicida que o levou
deste mundo. Vou lhe devolver toda a sua herança e, mais ainda, toda a herança
do meu avô. Sei que é o desejo dele ter todo o seu dinheiro lá no túmulo onde
está enterrado, por mais absurdo que isso possa parecer. Talvez seja preciso o
peso de toda essa dinheirama para manter a sua alma presa aos restos mortais,
repousando em paz até o dia do Juízo Final. Não tenho estômago para fazer isso
e vou deixar essa gloriosa missão em suas mãos. Aqui está um cheque em seu
nome. É todo o dinheiro que meu pai me deixou. Que você e o fantasma do meu avô
resolvam o que fazer com ele. Já estou cansado dessa história de aparições,
heranças e maldição...
J.R não sabia o que dizer. Os grandes
mestres da pintura encontrariam em seu rosto a alegoria perfeita da
consternação. Demorou uma eternidade para apanhar o cheque estendido na sua
frente e ao fazê-lo, guardou-o no bolso sem olhar o valor. Edgar aproximou-se
mais e disse quase sussurrando:
_Não
vai ser fácil abrir o túmulo em sigilo e nele depositar todo esse dinheiro.
Depois disso feito a verdadeira lápide será o nosso silêncio. Se mais alguém
souber deste episódio, o túmulo será violado mais de uma vez. Não espere que a
lenda da maldição afugente os aventureiros...
_Você
acha que o fantasma do meu pai irá desaparecer?
_Acho
que sim. Assim que for ordenado padre, rezarei muitas missas para ele. Avise-me
quando tiver feito o que resolver e mantenha Flávia fora disso, é uma situação
muito constrangedora.
Ao
final da tarde Edgar partiu no único táxi da cidade e contemplava pela janela
empoeirada o solar se perdendo entre as árvores do caminho enquanto Flávia ainda
acenava com um lenço que tinha agora o tamanho das folhas que o outono copioso
sobre a estrada derramava. Agora somente se via o telhado e laterais do sótão
onde os galhos de um frondoso ipê encobriam um vulto na janela. Deixando para
trás uma herança considerável, Edgar possuía agora um mirabolante episódio em
suas memórias para contá-lo nos futuros jantares na casa das velhas beatas de
sua futura paróquia. "Nunca ninguém pagou tão caro por uma história”! Pensou
quase sorrindo; aliás, duas histórias, pois levava bem guardado na maleta o
manuscrito, encontrado em circunstâncias tão estranhas, com a novela sem título
que ele batizou de “O Alpinista". Traduzi-la e publicá-la na Europa iria
preencher muitas das suas noites ociosas. Pensando assim ele dedicou-se à reler
o maço de folhas envelhecidas até chegar à rodoviária onde embarcaria no ônibus
com destino à velha capital do estado. No banco da estação os acontecimentos
dos últimos dias deslizavam em sua consciência como um cortejo em despedida.
Edgar estava constrangido por haver delegado ao tio uma missão tão sacrílega
que talvez somente coubesse a ele realizá-la, mas violar um túmulo em uma escura madrugada
dava-lhe arrepios só em pensar. Lembrou-se da preocupação do tio com tamanha
responsabilidade, fazendo questão de assinar um recibo especificando o mórbido
compromisso. Edgar apanhou o recibo no bolso da camisa, releu e já ia
amassando-o para jogá-lo no lixo quando um detalhe chamou a sua atenção. Embora
lacônico e escrito ás pressas, podia perceber ser a caligrafia do recibo a
mesma do manuscrito. Edgar comparou os dois textos à exaustão e concluiu
boquiaberto que o seu tio era o autor daquela pequena obra prima da literatura.
Sua mente iluminou-se subitamente. Por trás da máscara de um beócio interiorano
havia um espírito cultivado e uma imaginação estudiosa. Seu tio poderia ter
inventado toda aquela fantástica história do cheque no caixão, da catalepsia e
até mesmo o fantasma do seu avô poderia ser um disfarce... que grande ator! Seu
rosto enrubesceu com a possibilidade de ter feito papel de um erudito ingênuo
que nada sabia da vida além do que estava nos livros. Sua primeira reação fora
procurar o táxi, voltar ao casarão e esclarecer toda a suposta farsa, mas
começou a ponderar enquanto caminhava no saguão à procura do motorista: metade
do dinheiro era mesmo do seu tio (a hipótese do seu pai ter usurpado a herança
de J.R. denunciava a crença inconsciente que Edgar mantinha na versão contada
pelo tio), a outra metade lhe seria interditada pelo voto de pobreza...;
depois, não deixava de sentir certo orgulho quando pensava na inteligência e na
criatividade de um parente que lhe era tão próximo (a ideia de ser a
inteligência um atributo hereditário contrariava o sentimento de tola
ingenuidade que o assaltava). Seu ônibus o esperava e ele resolveu embarcar
deixando para decidir durante a viagem qual a melhor atitude a tomar. Era final
de semana e ele teria muito tempo para refletir antes que o banco abrisse na
segunda-feira. Querendo por um fim naquela trama inescrupulosa bastar-lhe-ia
telefonar ao gerente da agência e sustar o cheque. Viajou com um leve regozijo
ao imaginar o tio vestido como o seu avô em um impecável e shakespeariano
teatro nos escuros corredores infestados de cupins e aos poucos ia se
reconciliando com os dogmas cristãos que negavam a existência de fantasmas. Ao
mesmo tempo pensava na infame heresia que a cobiça podia perpetrar e sentia-se
consternado. Nesta flutuação de alma adormeceu embalado pelas ondulações da
estrada.
Um mês depois, na cidade de Itambé, um
homem sentado na varanda do Solar esperava com impaciência pelo anoitecer. O
céu nublado conspirava a seu favor estendendo sobre o vale um manto de
escuridão antecipada. Chovia torrencialmente quando ele decidiu sair de casa.
Carregava uma grande sacola e, sob a capa, uma pá e um martelo. Seus passos
eram arrastados como se carregasse outro e invisível fardo. Após um quarto de
hora, caminhando ao longo do bosque onde os relâmpagos desenhavam um diagrama
de galhos e trilhas enlameadas, ele chegou ao cemitério e, sem diminuir o
passo, cruzou os portões enferrujados que o vento batia arrancando-lhes
rangidos e fortes estalos. Não demorou a encontrar o pitoresco túmulo do
coronel Cesário onde se via estampado em baixo-relevo, na lousa, a sua efígie
com o indefectível chapéu e o hirsuto cavanhaque. Algum perverso morador da
região havia pichado um epitáfio: "Aqui jaze o Coronel Cesário: passou a
vida enfiando dinheiro em uma caixa; um dia lhe enfiaram em um caixão!"
Após desmontar com o martelo o modesto jazigo de cimento, J.R. usou a pá
cavando com sofreguidão e fazendo confundir na chuva gotas de lágrimas e de
suor. Quando atingiu o esquife do seu pai ouviu um baque surdo ressoar como um
trovão em seus nervos excitados. Limpou a terra sobre o caixão com trêmulas
mãos e forçou a tampa com a pá. Um relâmpago providencial iluminou o interior.
O esqueleto do seu pai jazia impassível e o riso eterno de quem viveu a comédia
humana desenhava-se nos seus dentes perfilados. Em seus dedos repousados sobre
o estiolado paletó havia um retângulo de papel ilegível, mas onde se via,
contudo, o pálido emblema do banco do estado. Sobre os ossos mirrados, J.R.
despejou o conteúdo da grande sacola. Centenas de maços com reluzentes cédulas
embrulhadas se acomodaram como num passe de mágica no leito violado. Só então
ele se lembrou de olhar em volta para ver se era por alguém observado. Fechou o
caixão persignando-se, murmurando frases inaudíveis e embargadas por uma emoção
dilacerante. Com meticulosa veneração deixou o túmulo no mesmo estado de
sempre. Após um frenesi de coruscantes relâmpagos, a tempestade amainou-se e
uma fenda nas nuvens se abriu. Através dela derramava-se o brilho esquivo de
uma lua ilocalizável. Podiam-se ver agora as trilhas prateadas sobre o solo e
através de uma delas, mais morto do que vivo, J.R. arrastava-se de volta para
casa.
Novembro - l999
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