domingo, 21 de fevereiro de 2021

O Vale de Ossos do Profeta Ezequiel!






Não costumamos dar muita importância aos sonhos que temos minutos antes de acordar. São como espumas que vêm dar na praia, já no fim da travessia, sem mais o mistério e a amplidão dos sonhos profundos. Este, porém, que hora relato foi supimpa, e entrou para a minha coleção de sonhos transcendentais (meu tio Fabinho colecionava nuvens, em fotos da sua máquina Kodak, eu coleciono sonhos... Mal de família!). Era noite escura, mas o céu era de algum outro e desconhecido planeta, pois alguns astros gigantes e em nada semelhantes ao sol ou à lua cruzavam o céu. Por detrás de uma montanha podia-se ver um planeta hercúleo e nebuloso se pôr com seu anel saturnino quase a se enganchar no pico pontiagudo. Outro parecia uma imensa brasa adormecida e carbonizada. Eu e mais dois conhecidos, um casal que a memória uniu nesse episódio, mas que nunca se conheceram na vida real, estava ao meu lado. Cada um de nós sentados em uma pequena boia de borracha, parecida com câmeras de ar de pneus de caminhão. Estávamos flutuando sobre um rio caudaloso e descíamos de costas, sem ver o que vinha pela frente. Era preciso ter confiança e eu tinha medo. Em instantes a correnteza nos arrastou em um mergulho que bem poderia ser um túnel ou fora o céu que escureceu, pois nada se via, só o suave e vertiginoso deslizar das boias sobre a água fria. Não demorou muito e chegamos perto de uma margem com areia, juncos e alguns caniços. Tentei remar com os braços, mas a corrente continuava vigorosa. Era preciso saltar e caminhar até a margem, com água então na cintura. O detalhe era que o leito do rio, de onde estávamos até o seco, era coalhado por ossos humanos, precisamente ossos de meus antepassados. Era preciso pisar sobre tios e avós, bisavós e outros desconhecidos ancestrais. O casal que estava comigo não teve coragem de pisar nos seus e preferiram seguir viagem, mesmo com o sentimento compartilhado de haver algum abismo mais na frente por onde o rio escoava. Eu pisei sem remorso algum e parecia saber de um modo vago e íntimo quem era aqueles que eu pisava, ainda que nunca houvesse escutado deles qualquer alusão ou comentário nesta vida. Alguns eram tão envelhecidos que se partiam com o meu peso, fraturei clavículas, omoplatas e bacias encardidas enquanto ia me recordando de pessoas jamais imaginadas a cada osso que estiolava sob meus pés. Cheguei enfim à margem e o dia clareava. Já não havia mais nada sideral na paisagem. Somente grama, murundus e estrume seco de vacas. Foi como se, ao pisotear em meus antepassados e profaná-los, eu me desconectasse do passado e do rio caudaloso de memória transcendental que eles arrastam. Segui andando para a superfície, para o presente feito de vigílias insones, para a fina camada de perversidades que é este mundo acordado de onde vos envio esta enfadonha página!´´
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