Nos primeiros dias, tão logo elaborei o tema do meu sermão,
encomendei na biblioteca um exemplar de Contos da Era do Jazz, do Scott
Fitzgerald, onde constava a primorosa e singular novela curta, O Estranho Caso
de Benjamin Button, sobre um indivíduo que nasce idoso e vai rejuvenescendo até
findar nos panos de um bebê, no colo de uma ama de leite. Menos prosaico e mais
esotérico, encomendei também O Timeu, onde Platão explana a visão grega do
universo e marquei as páginas onde o autor narra a fábula do universo original,
quando o demiurgo com suas próprias mãos fazia o universo girar no bom sentido,
o tempo passando ao contrário, como nessas modernas especulações da Cosmologia
(a reversibilidade da Flecha do Tempo, os deslocamentos em velocidades
superiores à velocidade da luz, estiramento do tempo em buracos negros e outras
suposições admiráveis) e o crime bárbaro dos Atridas que fizera o demiurgo
largar de mão o universo, deixando-o girar no sentido insano que conhecemos
hoje, onde o mundo caminha para o declínio e degradação. Era tudo que podia contar
visto minha erudição incipiente e as limitações da biblioteca do Presídio.
Enviei os livros para o meu cliente, não sem antes fac-similar suas páginas e
reler tais textos que comoveram meus anos de Faculdade. Benício iria ser
enforcado em questão de dias e, por ter perdido desastrosamente a causa, eu
sentia-me sentia na imperiosa obrigação de atenuar o pânico em que ele se
encontrava diante da lâmina fria e nada conjectural que o aguardava! Na véspera
do enforcamento, ao seu lado no pátio da prisão, caminhamos um pouco em
profundo silêncio. Eu media as palavras:
_ Saiba que estes dois pensadores, um na Literatura e outro na Filosofia, tiveram um deslumbre, um insight de um aspecto até hoje não cogitado pela imaginação humana. Não ousaria lhe contar, isso que descobri por outros e impublicáveis meios, se não fosse este um segredo que você levará contigo para o túmulo!
_ O tempo, meu caro, verdadeiramente passa ao contrário do que experimentamos. Esse é o maior e mais profundo segredo do universo! Vamos primeiro analisar a faculdade com o qual experimentamos o passar do tempo, a nossa vontade. Veja como ela opera: primeiro vem o futuro iminente, aquilo que vamos fazer ou iremos evitar em breve, digamos, tenho sede e vou beber água. Em seguida, vem o passado: lembro-me onde fica o cântaro ou onde coloquei a garrafa (as condições de possibilidade para que eu possa agir), finamente vem o presente, o momento final onde eu bebo a água e sacio minha sede. Parece trivial, mas a integridade da nossa existência depende totalmente desse esquema e rompê-lo significa perdê-la, enlouquecer! Veja o exemplo de Napoleão: Primeiro ele quer invadir a Rússia (futuro), em seguida vai buscar nos seus feitos do passado as condições para isso, reúne seus exércitos e, por fim, parte em campanha! Anos depois, ele quer invadir a Europa a partir do exílio (novamente o futuro se apresenta), mas quando ele vai ao passado, este está destruído pela derrota de Waterloo, o tempo sai dos eixos e ele nada pode faze mais a não ser enlouquecer, delirar sobre falsos fundamentos. Outro exemplo encontramos em Hamlet quando a sucessão do trono se rompe, seu pai é assassinado e o tio dele assume o Reino da Dinamarca no seu lugar! Novamente o tempo sai do seu eixo funcional no contexto da existência humana. Hamlet enlouquece! Vejamos agora como a consciência apreende o tempo: mais precisa ilustração do que seja a consciência humana, e de como ela opera essa apreensão do tempo, é a imagem de um espelho. O espelho é, com perdão do trocadilho, a imagem mais fiel do que seja a consciência! E o que faz o espelho quando reflete uma imagem qualquer? INVERTE O SENTIDO DOS OBJETOS MUDA A ESQUERDA EM DIREITA! Também inverte a flecha do tempo, a nossa consciência! Pensamos assim, ao refletirmos sobre a ordem do tempo, e julgamos ser o passado que veio primeiro, depois o presente e por fim o futuro que só se torna realidade quando as outras duas dimensões já aconteceram! Resumindo: quando agimos, sabemos como o tempo se orienta, mas quando refletimos sobre ele a consciência nos ilude! À semelhança do cogito agostiniano: "quando não me perguntam o que é o tempo, eu sei, mas se me perguntam"... De fato, o tempo escoa do futuro já existente para o passado ainda por vir-a-ser e nesse rio nós navegamos de costas, subindo a corrente do rio. Vemos a nossa frente o que pensamos ser o futuro iminente.previsível, mas é justamente o que se chamaria de passado se tivéssemos o poder de registrá-lo. Olhamos para trás e vemos o nosso futuro inteiro desenhado e o confundimos com o passado que não volta mais. Estamos a cada segundo que passa esquecendo o que já vivemos e que pensamos ser o nosso futuro obscuro. Amanhã eu serei um dia mais novo do que sou hoje, outubro sucede a novembro, minha juventude em breve devolverá o viço aos meus braços cansados! Estamos todos rejuvenescendo! É preciso ser tremendamente contra-intuitivo para apreender isso. Só iniciados o consegue, embora quase nenhum consiga explicar pois a linguagem também faz parte dessa ilusão, o que explicaria, por falência múltipla, os cogitos agostinianos e o meu. Aparentemente estou explicando-lhe essa doutrina, mas na verdade, estou desconstruindo-a, movendo-me na direção de um tempo onde ela ainda não lhe foi revelada. Quando ela não for mais conhecida, também não saberemos que existiu um dia, ela irá então fazer parte de um negro passado sem absolutamente memória nenhuma, perdida nisso que equivocadamente chamamos de futuro, onde a nossa imaginação se assusta com fantasmas irreais, tendo breves recordações (que chamamos de premonições e profecias - nossa memória, de fato), supondo coisas que jamais poderão acontecer pois que já aconteceram! Não, jamais seremos mais velhos do que somos agora, pois já o fomos e o tempo apagou. Não haverá um momento posterior a esse onde você venha saber de cor o que ouviu hoje, pois isso será – está sendo – vagarosamente perdido como um castelo em ruínas se desfazendo em areia. Tudo o que você hoje lembra de ter se repetido infinitas vezes, seu tédio e seu enfado, é uma espécie de cansaço deste futuro inexorável, que lentamente empalidece e alivia o seu fardo à medida em que nele penetramos e o apagamos (como dito acima: o que nos falta de verdadeira memória, sobra-nos de vidência). Seu dente molar renascerá, seus cabelos escurecerão como a sombra da tarde, e apenas a sua consciência infeliz, infeliz por inverter o ritmo da passagem, é que não pode entender!
_ Ótimo exemplo! Esta regressão é justamente o alinhamento normal
da nossa consciência com o fluxo real do tempo! Vemos verdadeiramente neste
momento o nosso futuro que iremos viver um dia, mas o momento em que acordamos
desta meditação hipnótica é justamente o momento em que estamos começando a
regressão, julgando ser um passado iminente aquilo que está na iminência de
acontecer! Esta inversão independe do tamanho do intervalo considerado:
segundos, meses décadas, tudo passa invertido pela consciência como pássaros
por um espelho! Para clarear um pouco mais: não temos memória, exceto alguns
raros lampejos, temos sim, uma nunca antes definida faculdade de premonição que
nos faz ver todo o nosso futuro. Isso que chamamos de memória é o futuro para o
qual nos dirigimos. E assim como eventualmente temos pressentimentos e visões
do que pensamos ser o nosso futuro desconhecido (na verdade trata-se do que
passou e para qual não temos faculdade nenhuma para registrar), tal percepção
nada mais é do que trapos de míseras e verdadeiras memórias. Raramente me ocorre rememorar o
ancião que fui, a viuvez que suportei, ou o fim dessa conversa que hora vou
lentamente engolindo as palavras! Em compensação vejo todo o meu futuro nas
cenas que deslumbro nisso que equivocadamente chamamos de memória!
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