Vão-se os anéis, ficam os
dedos! A idade foi levando sorrateiramente a saúde do Coronel Gugé, mas isso só
fez recrudescer-lhe os hábitos como a carne seca dos idosos que vai grudando
nos ossos à medida que o tempo passa. Um destes hábitos era caçar veado galheiro
nas matas do Marçal. Com ele ia sempre um ajudante e uma matilha de cães.
Apesar de não enxergar como antigamente, Coronel Gugé se gabava de ter uma
excelente pontaria (Quando a cegueira é em um olho só, rapidamente você compara
uma visão com a outra e percebe algo errado, mas quando é progressiva e nos
dois olhos, não tem como comparar, algo também parecia acontecer com a sua
audição cada dia mais curta).
CORTA. Agora já estamos nas cercanias do Marçal, os cães
ladrando ao longe, em inequívoco sinal de veado se aproximando e o coronel
babando de perversidade na iminência de mais um troféu abatido. Perto dali, um
camponês, precisando atravessar uma pinguela bem em frente ao caçador, e
sabendo do risco, partiu correndo na frente gritando bem alto:
_ NÃO SOU UM VEADO! NÃO SOU UM VEADO! NÃO SOU UM VEADO!
Incontinenti, calcado em seus reflexos indefectíveis, o coronel Gugé ergueu sua
espingarda de dois canos, calibre 12, desenhou uma abstrata linha no ar e
sapecou uma chumbada de rolimã nos peito do camponês que ele morreu no ar,
antes de esbagaçar o espinhaço no desfiladeiro.
_ MEU DEUS DO CÉU, CORONÉ! – Gritou seu ajudante – Matou o
homem! Não ouviu ele gritar que não era um veado?
MINHA NOSSA SENHORA! – Exclamou consternado o coronel! – Pensei
que ele estivesse gritado: EU SOU UM VEADO! EU SOU UM VEADO! EU SOU UM VEADO!¨
Sinal de má notícia, sabiam todos, os núncios da
rapina! O coronel se adiantou ao pátio e viu que ele trazia na garupa do cavalo
nada mais, nada menos do que a sua filha. Foi a filha saltar e correr para os
braços da mãe para ele ver que havia algo muito errado no ar. Antes do
empregado se pronunciar, a filha tratou de denunciar aos gritos: seu marido,
Suzano Lopes, era um monstro que batia nela todas as noites e ela estava toda
cheia de cicatrizes; e, conforme ia relatando, ia levantando a roupa e
mostrando as marcas da violência. O coronel Gugé foi tomado de uma fúria
medonha. Arrastou a filha até um quartinho de selas e apetrechos. Fechou a
porta e, de lá, só ouvia-se os gritos da moça e o estalar dos chicotes! Pânico
e apreensão de todos no pátio escuro que os relâmpagos emolduravam ao som da
chibata. Finalmente o coronel Gugé sai do quartinho carregando a sua filha
quase desfalecida, com a roupa rasgada pelas pontas ensandecidas do chicote.
Colocou a moça na garupa do empregado e lhe disse, trovejante e peremptório:
_ Vá! Rápido! Diga ao Suzano que, se ele tem coragem de espancar
minha filhinha, eu também sou capaz de bater na esposa dele!
Foi de surpresa que o delegado Crispim Douglas
Corcoran abandonou a delegacia de Itambé para se tornar agente do Dops e sair
caçando comunistas e guerrilheiros pelo interior do país! A cidade, de uma hora
pra outra, ficou sem o seu guardião e promotor da paz! Na época, o coronel Gugé
havia comprado muitas terras na Região e pensou que o cargo vago de delegado
lhe daria a oportunidade de estreitar os laços com a comunidade itambeense e
consolidar suspeição. Bastou-lhe uma promessa ali, um presentinho
lá, uma ameaça velada acolá e.. Pronto! Logo seu nome se tornou o favorito para
o cargo, indicado pelo prefeito com a chancela (falsificada) do governador Roberto Santos. No primeiro dia, sem nada entender do riscado, coronel Gugé
tomou duas doses caprichadas de genebra e foi tomar posse. Tão logo se sentou
na cadeira de Corcoran, foi apresentado a dois pequenos pecuaristas cujo
litígio já ameaçava se tornar uma guerra entre famílias. Um deles, o autor da
queixa, foi o primeiro a falar:
_ Seu delegado! Meu vizinho, aqui ao lado, filho de seu Otelino,
todos os dias invade a minha propriedade com o seu rebanho até o rio para dar
de beber ao gado. Isso dura uma boa parte da tarde, o gado pisoteia, pasta,
demora de beber e isso já dura meses, sem que eu receba nada como indenização!
O som taquigráfico do escrivão parece acompanhar sua pausada respiração. O
coronel Gugé, agora chamado de Delegado Gugé, mantendo a mesma expressão de
esfinge iracunda, externa um imediato veredicto:
_ O SENHOR ESTÁ CERTO!
E voltando-se para o acusado, interpela-o com um cacoete de
sobrancelhas. O pobre pecuarista, segurando o chapéu com as duas mãos sobre as
pernas, titubeia:
_Seu delegado! Com essa estiagem secaram todos os açudes e aguadas. Só temos o
rio para o gado beber. Não posso impedir o gado de pastar nem posso forçá-lo a
beber rápido sob chicotadas. A água é de todos, o senhor não acha?
_ O SENHOR ESTÁ CERTO! – Arrematou o coronel.
O Escrivão pigarreou, e timidamente tentou orientá-lo:
_ Desculpe, Senhor delegado, me intrometer, mas os dois não
podem estar ambos certos...
O coronel Gugé não era homem de se deixar apanhar em dilemas ou
antitemas. Foi logo apontando seu dedo ossudo para o escrivão e arrematando:
_ O SENHOR TAMBÉM ESTÁ CERTO!
E foi assim que a partir daquela data - sem que os círculos acadêmicos de
Lógica Formal e Aritmética viessem a saber - morreu fulminado o princípio do
Terceiro Excluído e o desfecho desta história não poderia ser compreendido por
vocês que, ignorantes profundos das incertezas e indeterminações do mundo
quântico moderno, não saberiam prescindir em seus entendimentos do imperativo
axioma TERTIUS NON DATUR!
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Idos de 1953. A cidade de Vitória da Conquista, Sudoeste da Bahia, sofre de uma recalcitrante seca. Os animais vêm morrer na Praça da Igreja, no meio das ruas descalças como se quisessem implorar que fizéssemos algo para salvar seus filhotes abandonados no pasto em chamas! A desolação e o desespero tomam conta da população. Homem de espírito inovador e coração altruísta, o coronel Belisário decide contratar uma empresa americana, com sede no Rio de Janeiro, para bombardear as nuvens na esperança de trazer a chuva benfazeja. Em uma semana, três barulhentos lockheads, incrustados de balas durante a guerra da Coréia, pousam no campo de aviação, atraindo multidões de curiosos. O técnico decide bombardear as nuvens durante as madrugadas, quando a temperatura mais amena faz com que elas passem mais baixas, ao alcance das aeronaves. A cidade não dorme de olho nos céus vendo os pilotos desenharem rajadas de luz no interior das nuvens noturnas e o ronco dos motores assustando as crianças. Após dez noites de tentativas frustradas, uma forte chuva desaba sobre a região, com seus relâmpagos coruscando na lataria dos aviões e seus motores se confundindo com o retumbar dos trovões. O pasto verdeja agradecido e a cidade se salva da fome gemedeira!
A população e as autoridades se reúnem no átrio da igreja e discutem uma forma de homenagear e agradecer ao coronel Belisário pela salvação da lavoura. Não sabem o que lhe oferecer. Terras, ele as tinha tantas que já começava a dividir com filhos, genros e netos, não podendo dar conta de tantas propriedades. Uma Estátua? Uma rua com seu nome? Isso parecia muito pouco. Mesmo se dessem a ele as chaves da cidade e o nomeasse prefeito, isso seria uma responsabilidade, não uma recompensa. Foi quando o Coronel Gugé, não se sabe se por ingênua estupidez, inveja ou ironia (esse pobre cronista era criança na época e não podia então discernir a polissemia das palavras ouvidas {sentado nos ombros do meu pai, eu apenas deslumbrava o perfil e o colarinho engomado do orador}),... O coronel gugé declarou para todo mundo ouvir:
_ Tenho uma ideia! Vamos matar ele e o adorar como Padroeiro da nossa Cidade!
Para sorte de Belisário, a padroeira da cidade continua sendo Nossa Senhora das Vitórias!
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