Meados dos anos setenta, em Itambé-Ba. O lendário delegado
Crispim Corcoran Douglas Júnior patrulhava as ruas obscenas da periferia em seu landau preto,
com o som metálico de muitas armas apreendidas, facões, espingardas, cravinotes
e garruchas a sacudir no porta malas. Nesse dia, já saindo do perímetro urbano
( quando as galinhas são criadas soltas, sem cercas ou muros, já estamos na
zona rural) ele topou com um cigano desesperado arrastando pelas mãos uma linda
adolescente de olhos de azeviche e cabelos longos cor da noite. O cigano o
abordou e implorou que Crispim lhe emprestasse um dinheiro para ele fazer uma
viagem muito importante, levar a mãe dele a um hospital, ou coisa do gênero.
Como garantia do empréstimo, ele deixaria a filha aos cuidados para resgatá-la
na volta. Temendo que o cigano viesse mesmo a negociar a filha com algum
cafetão inescrupuloso e precisando de uma moça para cuidar dos serviços em sua
casa, Corcoran emprestou o dinheiro, 25 mil cruzeiros, e trouxe a moça para
ficar em sua casa. Ali, ao lado de sua esposa e dois filhos, Aritana e Osmarino,
a menina encontrou um lar e uma família. Era muito diligente e prestativa, mas
seu prazer mesmo era cuidar das plantas no jardim, que tratou logo de replantar
e cultivar flores e vasos ornamentais. O filho do delegado, Osmarino, então
com 14, 15 anos de idade, caiu loucamente apaixonado por Zara, a cigana de
olhos encantadores, mas o temor e o respeito que seus pais lhe inspiravam o
proibia de se declarar. Apenas fitava por longos períodos o rosto da menina
que, timidamente, se esgueirava e recolhia o olhar. Uma noite, indo levar para
ele um copo de leite no seu quarto, antes de dormir, ela o encontrou de
joelhos, ao lado de uma imagem de Nossa Senhora, a chorar copiosamente. Seus
instintos piedosos lhe vez vencer o recato e ela perguntou ao Osmarino porque
ele chorava. Com emoção e voz embargada, ele confessou o que vinha corroendo a
sua alma: lhe disse que ela tinha olhos tão lindos e promissores que ele não
conseguia mais orar, sempre que fechava os olhos para falar com Deus, ele via
os olhos dela por toda parte a lhe encarar! Zara voltou para seu quarto sem
nada responder. Horas depois, ouvindo gemidos de dor, o delegado foi ao quarto
da moça e encontrou Zara cega. Havia perfurado com um broche os dois olhos.
Interpelada porque havia feito isso, ela respondeu que havia agido assim para
não atrapalhar a fé e as orações de Osmarino, para não afastá-lo do amor que
ele tinha pela Virgem Maria. Crispim Corcoran levou-a correndo ao hospital onde
ela foi medicada, mas irreversivelmente cega. Naquela noite ele não dormiu
angustiado, sofrendo com a dor da moça e preocupado também com o pai de
Zara que, certamente, não iria lhe devolver o dinheiro emprestado. Assim,
dolorido de piedade e certo do prejuízo, ele passou o dia na delegacia, sem
fazer as rondas folclóricas e habituais. No final da tarde, muito extenuado,
cochilou na cadeira de trabalho e teve um vívido sonho: Nossa Senhora, em seu
imaculado manto azul cheio de estrelas e fúlgido rosto, lhe disse
consolando-lhe com a voz idêntica a de sua falecida mãe:
_ A moça se
desvalorizou perante a você e ao pai dela, mas ganhou um valor incalculável
para mim! Tudo está consumado!
Os carrilhões
da igreja, dobrando a hora do anjo, lhe acordou bruscamente. Um pressentimento
lhe fez correr para casa, lá chegando em poucos minutos, sem sequer notar o
crepúsculo em chamas anunciando a noite de verão. Correu ao quarto de Zara e a
encontrou deitada sobre a cama. um leve sorriso e uma imensa expressão de paz
no rosto disfarçava a nota fúnebre da imagem: morta estava Zara. Sobre o branco
vestido, na altura do ventre, repousava um pacote de cédulas novas e dobradas. Corcoran nem precisou contar - aliás, nem teve coragem de tocar nelas - para
saber que ali estava o valor exato do dinheiro ao pai da moça emprestado.
Suponho que tenha doado esse valor ao pobre cigano quando o reencontrou, ou
doado à igreja que passou a assiduamente frequentar. Não sei o fim dessa
história, seu arremate ou seus detalhes. Ele a guardou consigo, fazendo desse
milagre um acontecimento familiar e sagrado! Daquela data em diante, até o seu
passamento, tornou-se um homem manso e piedoso, tendo sempre nos lábios, pronta
para tudo que viesse, a expressão MARIA MÃE DE DEUS SEJA SEMPRE LOUVADA!
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