domingo, 27 de fevereiro de 2022

APONTAMENTOS kAFKASSIANOS!

       



   Uma noite ele sonhou estar em um avião na iminência de saltar de paraquedas. O pânico era imenso, seu corpo tremia e transpirava de medo; mal conseguia olhar (outras vezes olhava com fixa obsessão) a porta aberta da aeronave onde outros paraquedistas saltavam como se sugados por um abismo. Ao ser empurrado pelo instrutor não conseguiu avistar o solo inatingível: acordou ofegante e transido. Na segunda noite sonhou com outra missão impossível. Ele teria que escalar uma torre de aço de altura quase infinita. Vista de sua base, a torre parecia curvar-se sendo impossível avistar o seu pico perdido entre trapos de nuvens. A certeza de não conseguir escalar a torre congelava seus braços e deprimia sua alma. Um dia inteiro ele passou com a estranha mania de interpretar os sonhos. Concluiu estar em um impasse, não subia nem descia. Na terceira noite sonhou de novo com o avião e com um paraquedas nas costas; desta vez estava muito tranquilo. Ao aproximar-se da porta viu que O avião tangenciava a torre gigantesca. Estendeu o braço e agarrou-se no ultimo gradil da torre de aço; ali ficou pendurado e com a vitoriosa sensação de ter realizado duas proezas fabulosas.
 
       Durante a travessia de uma ponte, os soldados desfazem o passo e caminham até o final para somente então retomarem a marcha. É extremamente perigoso um pelotão cruzar uma ponte em passos cadenciados: as vibrações das botas correm ao longo do concreto e retornam com a mesma frequência emitida multiplicando a intensidade das oscilações a ponto de provocar fraturas em suas junções. Algo semelhante ocorre com os nossos modos de existência. Uma vida extremamente ordinária e regida pela rotina de pequenos e infalíveis hábitos, de meticulosa disciplina, solapa nossas mais sólidas estruturas e um dia, sem dar por isso, rachamos de fora a fora como um prato de porcelana aparentemente novo que, entretanto, acumulasse o canônico martelar dos talheres ao longo dos anos. Assim como é possível uma ponte ser destruída pelo ritmo ordinário dos passos, nosso ser mais íntimo se esboroa sob as rígidas disciplinas da sociedade e de seus hábitos suscitados. O homem é uma ponte sobre um abismo, uma ponte entre o animal e o super-homem e trepida sempre que sobre ele marcha um espírito disciplinado.


     A religião deveria ser reservada exclusivamente aos idosos. Há algo de solene no ancião que se despede deste mundo com esperanças de viver ainda em outros planos de existência mesmo não sabendo como nem onde se daria esse suplemento de vida; somente um homem que viveu sem a consciência torturada pode desejá-la perpétua. Em compensação, os jovens deveriam ser educados no mais radical ateísmo. Para viver esta vida com o máximo de integridade possível, não se pode desviar os olhos, um momento sequer, para seres e coisas que transcendam a natureza. Há algo de imoral em um velho ateu assim como, no jovem religioso, há um ultraje à beleza.

      Certos pensadores assemelham-se aos morcegos; não pelo lendário vampirismo que, entretanto, aplica-se como uma justa metáfora a certas relações humanas, mas sim de um ponto de vista aerodinâmico: sendo animais de elevado peso, os morcegos não conseguem voar a partir do solo (é uma cena patética ver um morcego debatendo-se no chão, escalando em muros e árvores de onde possam cair e, em seguida, planar). Alguns pensadores também não conseguem pensar a partir de um começo e precisam ser arrebatados por uma ideia elevada mesmo que seu objetivo seja voar rasteiro; em outros termos, o pensamento começa com um esforço desesperado por uma ideia altaneira, em seguida uma queda suave e logo, inserido em elegantes fluxos, o pensamento corta a noite dos homens que fogem assustados de seus perigosos beijos!....

      A História nos ensina o quanto a navegação e a agricultura, pilares da civilização, devem à astronomia e costumamos imaginar, nas noites da Antiguidade, uma casta de homens astutos e práticos observando as estrelas e delas extraindo uma ciência positiva. Esquecemos assim que havia primeiro o hábito ocioso e poético de contemplar fascinado o espetáculo das noites estreladas; miríades de noites contemplativas esquecidas pela História como sonhos que se evolam aos primeiros raios do sol da ciência!

       Em qualquer época de nossas vidas, poderemos considerar o passado, qualquer que sejam os fatos em questão, com um sentimento de orgulho e admiração por tudo o que fizemos ou deixamos de fazer; para isso basta-nos não fixar muito o olhar em si mesmo e atentar bastante para as circunstancias em que estávamos envolvidos. Em se tratando de episódios lamentáveis ou vergonhosos, veremos que nossos erros de conduta creditam-se as coerções do mundo a nos constringir ou nos mover contra vontade, pois o mundo, enquanto fatalidade, enquanto um concurso de causas conspirantes, é quase sempre adverso e hostil aos propósitos da vida. Em outros casos, quando agimos com heroísmo, ousadia e criatividade, o enfoque deve ser diferente e o mundo não deve ser considerado. Devemos então voltar para nós mesmos como causa primeira, como um oceano de liberdade por onde fluem tais atitudes - por menores que sejam - admiráveis.


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