O filósofo Aristóteles de Estagira prescinde de qualquer nota biográfica. É quase uma lenda.
Contam que suas últimas palavras, segundos antes de morrer, fora uma exclamação lacônica e sentimental: “... oh! Meus amigos, não há amigos!”... É difícil acreditar que o inventor da lógica formal, um homem que sabia ser a morte apenas um acidente na sua eterna e incorruptível substância pudesse tecer em momentos tão relevantes um comentário patético como este. Muitos atribuem essa passagem ao tecido de lendas envolvendo o seu cadáver mas não seria completamente inverossímil a autenticidade destas palavras supondo serem elas a conclusão de premissas não estabelecidas. Aristóteles fora aluno de Platão e este possuía uma noção muito singular sobre a amizade. Platão era um paranoico, fora traído mais de uma vez pelo tirano de Siracusa, seu amigo; fora vendido como escravo. Sabia que entre a plebe a palavra empenhada não asseguraria a ordem do estado e que leis arbitrárias só poderiam funcionar como delegadas de valores sagrados. Criou então o mundo das ideias. Os homens matam-se por dinheiro, honra e mulheres mas as idéias podem ser pacificamente comungadas por todos e era na comunhão das idéias, na "koinonia", que ele buscava fundamentos para a amizade. Mesmo entre os facínoras, dizia pela boca de Sócrates, impera a ideia de justiça ao partilharem a pilhagem. Aristóteles não acreditava no mundo das idéias, estava muito velho para lembrar-se desse mundo originário. Nem ele nem o seu mestre foram capazes de pensar a amizade como afeto. Sua versão epistemológica das idéias, o conceito, tinha nuanças excessivamente psicológicas para serem comungadas impessoalmente. Diante de uma Grécia decadente e invadida, penso que Aristóteles sentiu saudades do seu mestre ao externar seu último e melancólico enunciado. Um pedaço do céu platônico, estas palavras, que na ausência das premissas, desabou sobre ele como uma lápide - uma sentença lapidar. Muito mais humoradas foram as últimas palavras de Henry Miller. Foram palavras escritas e escrever para o Imperador Da Califórnia - assim chamavam-lhe seus amigos - era algo mais espontâneo que a própria oralidade. Em seus últimos dias, vitimado por uma infeção intestinal, ele ocupou um leito de hospital e lia fascinado um livro de Jacques Lacarriére intitulado Os Gnósticos. Havia ele conhecido pessoalmente esse historiador nos anos vividos em Paris e ocasionalmente trocavam correspondências. O livro explicava a concepção do universo que esses fanáticos religiosos possuíam. Para eles o universo em que vivemos era criado e serviçal de potências maléficas e forjado como uma armadilha atraindo nossas almas que habitavam, antes da queda, paradisíacos lugares. Henry Miller lia o exemplar que lhe fora enviado pelo autor e escreveu-lhe uma carta que, junto à sua vida, terminava assim:... “adorei o seu último livro. É muito confortável para mim, agora que estou partindo, saber que este universo não passa de uma grande farsa...”
De Henry James quase nada sei. Seu único epigrama conhecido por mim resume de modo brilhante a motivação da sua obra, o sentido oculto dos acontecimentos. Suas novelas magníficas narram estes acontecimentos que hesitam do começo ao fim entre diversas realidades e pontos-de-vista. Se Leibniz soube fazer do provérbio vulgar “ cada cabeça é um mundo” o princípio da sua fulgurante monadologia, H. James, mais do que ninguém, demonstrou que a mente e o mundo são dois princípios em si mesmos indefiníveis. Seu formalismo primoroso era a expressão de um problema: o que de fato se passou entre tantos pontos-de-vista indicerníveis? Ao morrer não pode conter a expectativa do mais impessoal dos acontecimentos e exclamou: Finalmente, essa coisa distinta, a morte!
Estes três grandes pensadores, usei-os para introduzir as últimas palavras de um homem desconhecido, íntimo porém do universo literário. Chamava-se Aldo Ives e sempre viveu na pequena cidade de Itambé-Ba. Leitor omnívoro, metade da sua casa era forrada por estantes onde os livros não descansavam. Era professor de gramática e esta era a matéria predileta do seu pensamento. A modesta glória haurida em uma coluna de jornal era conspurcada por uma nota intempestiva em seu caráter que a sociedade não perdoava: era um ateu, de um ateísmo empedernido que ele diariamente no jornal professava. Quando deitou-se no leito de morte, em um modesto quarto de hospital, parentes e amigos revezaram-se a sua volta. Estava ele inconsciente quando cruzou a porta do seu quarto uma figura magra e vestida de negro, o padre da cidade. Pela janela via-se o circular e monótono vôo de um abutre lá fora. Extremamente católica, a família nutria esperanças de vê-lo convertido nesta miserável hora convocando esta personagem insidiosa. Seus amigos retiraram-se indignados e o padre ocupou uma cadeira próxima do leito. Em breve começou a agonia e sentindo dores pungentes Aldo Ives estertorava na cama gritando:
- Ai, Jesus! Ai, Jesus! - O padre dera um pulo da cadeira e com o crucifixo na mão curvou-se sobre o corpo do moribundo. Do lado de fora o abutre pousava em um galho sob o qual um burro velho agonizava após anos de carroça.
- O QUE FOI QUE VOCÊ DISSE, MEU FILHO? - O padre estava eufórico, parecia ir ressuscitá-lo com o brilho dos seus olhos. Aldo Ives acordou em seu último minuto de lucidez. Olhou os parentes na sala, o padre quase em seu pescoço. Entendeu tudo o que se passava e como um gramático ortodoxo proferiu suas últimas palavras:
- Ai, Jesus! Interjeição exclamativa de dor! - E orgulhoso fechou os olhos, para abri-los entre as labaredas nos mármores do inferno!
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