Rodrigo citava-me nas cartas uma passagem do “Fausto” de Goethe
onde um homúnculo diz ao alquimista que o criou:
“vem, abraça-me em teu seio, mas devagar pois a redoma pode
se quebrar; o que é artificial exige espaços fechados enquanto ao natural mal
lhe basta o universo.” Isto me fez lembrar com saudades o nosso curso de
metafísica onde, de todas as cavilações sobre a natureza, a mais curiosa
fora-nos transmitida por um triste teólogo, nosso colega de quarto em uma longa
noite no seminário. Depois de voltar de férias no campo em casa dos pais, o
jovem predicador tinha o espírito assaz agitado para conciliar o sono com as
horas canônicas que badalavam no frio pátio e, compartilhando no beliche o
nosso único cigarro, sua voz murmurava:
- Era uma casa velha, Rodrigo, erguida pelos meus bisavós e
quase tão arruinada quanto os ossos deles lá no túmulo. Eu dormia na grande
sala cujas janelas abertas ampliavam a solidão sepulcral. A noite era
fantástica com luar vigoroso, aves noturnas e ventos uivantes que sugeriam um
grande romance. Eu sonhava escrever um livro e protelava o sono à espera de uma
inspiração. Uma tempestade com nuvens negras orladas de ouro, após inofensivos
relâmpagos, fugia no horizonte entre as montanhas, resolvida em vapores e
murmurando o seu desgosto. Concentrei toda a minha atenção no bosque que
circundava a casa e no fundo escuro da minha consciência, no bosque da minha
alma, um pensamento luminoso fora se destacando. Intuí a premente vitalidade
dos galhos e das ervas sob o solo, o desabrochar imperioso das flores, a lenta
e voluptuosa conquista da natureza sobre os despojos da obra humana. Minha casa
era a imagem adequada dessa fúria dissimulada. As raízes de um velho abacateiro
fendia o piso da varanda, trepadeiras cobriam parte do telhado e os criados se
queixavam de tantas folhas e gravetos ao varrer os cômodos da casa. - “A
violência caminha com pés de pomba”, dizia F. Nietzsche. - Senti a natureza
como uma ameaça, uma pressão vital, uma força única disseminada nas infinitas
modalidades de um bosque noturno. Acredito ter intuído a “Natura Naturante”, o
“Elan Vital”, as forças cósmicas e tudo o que podemos atribuir à vida enquanto
potência expansiva. Paralela à esta sensação, uma outra, interna,
apresentava-se como a força que une todas as nossas partículas e agenciando
outras mais para formar o indivíduo que somos. Esta força que deseja, absorve e
se expande em graus crescentes de consistência Espinosa a chamava de “Conatus”
e aflorou magnificamente em minha consciência em simultaneidade com a intuição
do bosque vivo. Senti esta força no estômago e assim como temi que o bosque
invadisse a casa dos meus avós, temi também que esta força implodisse a
organização do meu corpo reduzindo-me a um cadáver compósito com flores
exóticas brotando nos despojos. Meu corpo e a natureza compunham uma
desconhecida unidade que assustava-me. Corri à geladeira e ocupei o meu
estômago com bolos e limonada conjurando a temida autofagia e acredito que na
composição destes fenômenos citados eu tenha confusamente experenciado e
conhecido a minha alma embora um céptico possa julgá-las como meras alucinações
de um histérico esfomeado...
Rodrigo não disse nada em resposta mas anotava, como de costume,
tudo o que o nosso colega narrava. Depois, vendo a inutilidade deste
apontamento para os seus sermões dominicais, lançou-os fora pela janela junto à
outros papéis amassados. Eu, que sofro de uma crônica falta de assunto, corri
até a lata de lixo como um cão faminto e dissimulo com eles o ócio das minhas
tardes.
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...No sítio onde moro e onde registro esses inúteis apontamentos
há um pequeno ribeiro cujo leito sobre pedras entoa um murmúrio delirante e
fora sentado sobre uma delas que me lembrei de um fabuloso livro de Jack
Kerouac intitulado “O Viajante Solitário”. Neste livro de cunho biográfico
narra o autor a sua passagem por um sítio de um amigo na Califórnia onde ele
costumava ouvir os sons de uma fonte registrando a ininteligível poesia, a
glossolalia que emanava do choque da água entre as pedras. Quis eu fazer o
mesmo e concentrei minha atenção no eflúvio de notas disparatadas que a água
destilava. A diferença entre a voz humana articulada e o som das corredeiras é
tão acentuada que jamais esperaríamos um verso ou sequer uma palavra das forças
livres da natureza. Usar de analogias para adivinhar o que a fonte estaria
dizendo tornaria-me um trânsfuga do pensamento e da poesia. Procurei então
esvaziar a minha mente de todo e qualquer pensamento à maneira de um monge Zen.
Aos poucos o vazio fora se apoderando de mim e o meu espírito se confundia com
o fluxo da água corrente. Súbito, sem nenhum esforço aparente, um verso inteiro
ressoou dentro de mim como uma voz alienígena, como se houvesse um “daimon”
feito de pedra e água escondido sob a cascata:
...“Lave a minha alma, doce água,/
Leve para longe o lodo vil,/
Livre quero estar de toda mágoa,/
Limpo como um lírio sobre o rio...”
Abri os olhos assustado. Não havia ninguém perto de mim. Sobre o
espelho de água pendia-se um lírio virginal. Seria a voz do inconsciente ou
alguma faculdade desconhecida se expressando? Não acredito. Inconsciente é
invenção de psicanalistas; faculdade, de filósofos kantianos. Dois conceitos
impotentes em explicar tão bela mistagogia. Voltei para casa certo de ter
ouvido algum espírito sagrado, quem sabe... a voz do Espírito Santo!
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