Quase todo mundo viveu, em sua
juventude, um período de felicidade e júbilo profundos do qual se esforça em nunca
se lembrar, por conta das saudades e do temor que momentos tão intensos assim
jamais voltem a se repetir.
Como alguém que volta à antiga casa dos seus pais,
fechada por anos e teme entrar pela porta da frente, preferindo ir pelos
fundos, pular a janela da cozinha, apanhar algo na gaveta que fosse o motivo da
visita, e sair sem encarar as lembranças dormentes no andar de cima, assim
também podemos encarar essas fases da vida por um viés menor, um evento cômico
ou comezinho, sem encarar o fantasma da felicidade perdida. É o que faço agora.
O lugar desta minha lua-de-mel com a vida foi em um balneário do Rio de
Janeiro, chamado Pedra de Guaratiba, próximo da Restinga da Marambaia e a
época, meados dos anos noventa do século passado. O que era pra ser uma simples
visita a uma amiga que morava lá e a seu restaurante de atrativos frutos do
mar, tornou-se um lugar encantado quando conheci uma amiga desta amiga que
morava por lá e nos apaixonamos perdidamente. Omitirei seu nome (pois que ela
lê meus textos que publico no Facebook e talvez não queira ser reconhecida como
protagonista de um texto tão debochado, mesmo sabendo a razão da minha
desonestidade sentimental) e a chamarei de Olívia. Ela era casada, em crise com
seu marido crapuloso e que a chantageava de mil maneiras imagináveis. Mesmo
assim, como sinal de superioridade do nosso amor e de nossa altivez, não nos
entregamos completamente a este amor, pois acreditávamos na moral e nos laços
sagrados do casamento, mesmo sendo o dela uma farsa por conta do marido
cafajeste. Iríamos esperar tudo se resolver, e esperávamos como dois
adolescentes, namorando na praia, passeando de bicicleta, tomando sorvete,
vendo filmes em fitas de videocassete e ardendo de desejos. Como ela se
aliviava destes desejos, não faço ideia, mas eu – e aqui confesso ser algo
parecido com o marido cafajeste de Olívia – saciava meu ardor, nunca o meu
amor, diga-se em minha defesa, nas carnes da minha amiga dona do restaurante em
cuja casa eu me hospedava, mulher solteira, independente e de quem sempre
escondi meu amor por Olívia, amor que, por sinal, ela nunca me cobrava. Pode
parecer muito estranha essa divisão que vivi, amando platonicamente uma garota
e copulando quase sadicamente com outra, ao mesmo tempo, mas quem me julgar um
cartesiano, feito de corpo e alma profundamente separados, estará mais próximo
da verdade do que aquele que me tomar por um cafajeste, mas ambos concordarão
que, fosse qual fosse a explicação, eu estava vivendo na plenitude afetiva, ao
consumar essa condição. Lembro-me das noites em que eu voltava da casa de
Olívia – seu marido vivia viajando com as suas alunas na faculdade que ele as
seduzia – e voltava para os braços da minha amante, andando pelos becos e
ruelas da colônia de pescadores, entre o mar e as casas de veraneio, vendo a
lua imponente sobre as ondas e barcos de toda cor recolhidos nas amarras.
Parecia flutuar em um quadro de Guignard, em marinhas vivas de Pancetti (nessa
época eu frequentava também o atelier da pintora Mirtila, cujo sobrenome esqueci,
e cuja casa servia de alcova para meu romance com Olívia {suas aulas de pintura
que ela ministrava-me ajudaram a fixar na mesma tela da memória a luminosidade
do verão com as tonalidades ardentes do amor}). Muitas vezes me banhei nas águas
escuras do lugar para refrescar os dois tipos de calores que consumiam o meu
corpo e a minha alma. A dona do Restaurante Criterium - aos poucos eu vou
revelando pistas para meus biógrafos imaginários -, possuía um criado
homossexual, um servo que cuidava de seu toucador e seus bibelôs e que se
antipatizou comigo assim que me viu de calção pela casa, dando palpite em tudo
e dando tapas na bunda da minha amante! Eu mandava-lhe comprar cigarros para
mim e, quando ele voltava muito tempo atrasado, eu fazia minha amante
castigá-lo, privando-o de frequentar a cozinha do restaurante, pois o sonho
dele era ser um grande cozinheiro e já ensaiava suas receitas mirabolantes
quando lhe era permitido. Seu nome era Almir e sua histeria era algo tão
repugnante que me recuso descrevê-la aqui. Certa noite, ao lado de Olívia na
casa de Mirtila, assisti ao filme de Jean Luc Godard, “Salve-se Quem Puder, A
Vida!” e, enquanto ela se dobrava de rir com uma cena onde um homem persegue
Godard pelas ruas de Paris gritando: _ SEU GODARD! SEU GODARD! EU QUERO LHE DAR
A BUNDA, SEU GODARD!, Eu ficava imaginando o constrangimento que eu teria se um
dia esse Almir viesse a fazer uma cena semelhante comigo. E ele quase o fez.
Uma noite, o restaurante lotado, eu fui para a cozinha ajudar nos preparativos.
O Almir também. Por um motivo fútil que agora não me recordo mais, eu o
repreendi severamente, acho que fora por algum excesso dele nos temperos
exóticos que ele importava da Índia. Eu estava com uma faca na mão, uma
peixeira. O Almir se apavorou e saiu correndo pelas mesas lotadas do
Restaurante a gritar ensandecido:
_ O HOMEM RETOU! O
HOMEM RETOU! O HOMEM RETOU!
Com muita
dificuldade, a dona do restaurante e uma sócia conseguiram acalmá-lo e o
levaram para casa onde ele ficou emburrado, proibido de voltar. Eu esperei o
ambiente voltar ao azáfama natural, terminei de compor os pratos e, assim que o
movimento dos fregueses diminuiu, eu apanhei a mesma faca e fui para casa tomar
uma providência quanto ao chuparino Almir. Entrei no seu quarto chutando a
porta. Ele via TV e ficou lívido ao ver-me de faca na mão. Apanhei-o pelo
pescoço e o espremi contra a parede. Fixei a ponta da peixeira na sua jugular e
lhe disse:
_ Escute bem, seu
palhaço! Nunca mais saia gritando em público que eu me retei perto de você,
pois, lá na Bahia de onde venho, e em muitos lugares também, se retar significa
ter ereção! Vai ficar parecendo para algum malicioso que ouvir isso que eu
estou sentindo atração por você. Para evitar que isso aconteça de novo, estou
pensando seriamente em lhe sangrar e jogar suas tripas no mar essa noite!
Apertei com força a
ponta da faca em sua jugular. Ele tremeu de pavor e tentou uma reação qualquer
que lhe desse tempo de se safar. Sabia que desespero nestas horas só piora a
situação. Com sua voz falsete de lambisgoia dourada de Shangri-lá, ele comentou
com surpreendente e fingida resignação:
_ Então eu vou
morrer? Vou mesmo encontrar-me com a Divindade?
_ Vai sim! Comece a
orar!
Ele então mudou
subitamente o tom de voz, encheu os pulmões de ar e com um timbre profundamente
natural e viril, que nunca antes havia revelado possuir, deu-me um forte tapa
no ombro afastando a faca, dizendo-me:
_ VOCÊ VAI MATAR NINGUÉM, SEU CASSIANO! VOCÊ É UM CARA FANTÁSTICO, SEU PORRA! UM CARA QUE TODO MUNDO ADMIRA!
_ VOCÊ VAI MATAR NINGUÉM, SEU CASSIANO! VOCÊ É UM CARA FANTÁSTICO, SEU PORRA! UM CARA QUE TODO MUNDO ADMIRA!
VOCÊ LÁ PRECISA
DISSO, UM CARA QUE TODA A SOCIEDADE CONSIDERA UM GÊNIO? VAMOS ALI TOMAR UM
UÍSQUE DA PATROA, PORRA!
E saiu do quarto resoluto, sem
rebolar, dando-me tempo e oportunidade em abaixar a faca e me dobrar no riso
com tamanha revelação. Até hoje não sei dizer se ele era um veado fingindo ser
homem para não morrer nas mãos de um homofóbico, ou se era um homem que por alguma
razão estapafúrdia se passava por um gay histérico. De qualquer modo, tão
perfeita fora a sua transmutação que eu atribuo a ela, e não ao fato de estar
apaixonado na época por uma linda mulher, o fato de não ter sangrado aquela
sinistra aberração! Permita-me assim, usar o adágio shakespeariano, Tudo Começa
Bem Quando Bem Acaba, a guisa de conclusão, pois que toda história de amor,
mesmo quando dissimulada, possui no Cisne de Avon a sua secreta inspiração.
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