A década de trinta viu surgir dois homens notáveis na Bahia; o famoso tenente Juracy Magalhães e o obscuro caçador de cangaceiros Crispim Douglas Corcoran.
O primeiro, nomeado interventor pelas armas do golpista Getúlio Vargas, brilhou nos salões da política baiana, afrontando os coronéis da República Velha e seduzindo as damas da ascendente burguesia mercantil com seus bigodes engomados; o segundo, perseguindo velhos desertores do cangaço e extorquindo suas amásias em busca de um dente de ouro quebrado, um tesouro enterrado ou uma relíquia dos tempos de Lampião que pudesse ser vendida para os colecionadores da capital. Quis o destino, nas entreliças do poder, unir o linear e o pitoresco perfil desses dois protagonistas. Eleito prefeito de Maracás com a benção de um velho coronel e com o dinheiro desenterrado de Nepomuceno, um volante mandrião naquelas bandas exilado, Crispim Corcoran foi à capital, Salvador, para o imprescindível beija-mão ao todo poderoso tenente Juracy. Tinham ambos 25 anos. Crispim se encantou com a escusa e decadente aristocracia baiana; Juracy, com o otimismo solar do sertanejo. Ficaram amigos e torraram grande parte do orçamento nas roletas do Cassino Tabariz, nas tabacarias da rua Chile e nos cinemas da Baixa dos Sapateiros. Um dia, enquanto almoçavam no palácio da Aclamação, a sede do governo, Crispim se esforçava para entender a estrutura do poder, suas pastas e secretarias, os protocolos e o cerimonial cujo hilário arremedo mais tarde ele instalaria no velho casarão cheio de escoras e goteiras que era a prefeitura de Maracás. Espirituoso, Juracy preferiu encenar uma alegoria a dar-lhe uma fastidiosa aula de administração pública. Mandou servir ao hóspede uma carta de aperitivos, sucos de jenipapo e maracujina, e licorosos vinhos de sobremesa. Crispim baqueou e o vento estupefaciente das tardes tropicais trouxe-lhe do mar e dos coqueiros um sono feiticeiro. Juracy lhe ofereceu um canapé de estofada seda e sugeriu quinze minutinhos de modorrenta sesta. Mandou fechar todas as janelas e cortinas, encostou todas as portas, encerrou o expediente e despachou todos os serviçais e funcionários. Foi para o jardim com seu ajudante de ordens e lá ficou a matar o tempo. Não passou vinte minutos para ouvir a voz abafada de Crispim a procurar alguém. No início civilizados, bem cedo os apelos do hóspede se tornaram aboios de claro desespero, para logo silenciarem de uma vez. Juracy permaneceu mais quarenta longos minutos, em perversa magnanimidade, a ver se Crispim encontrava a saída do opulento Palácio. Não precisou vasculhar muito – quando decidiu acudir o seu hóspede. Encontrou Crispim no pátio da Aclamação, espaço que dá nome ao palácio, desfigurado, furioso por ter percorrido em vão escadarias e corredores, aposentos e vestíbulos, paços e banheiros.
O primeiro, nomeado interventor pelas armas do golpista Getúlio Vargas, brilhou nos salões da política baiana, afrontando os coronéis da República Velha e seduzindo as damas da ascendente burguesia mercantil com seus bigodes engomados; o segundo, perseguindo velhos desertores do cangaço e extorquindo suas amásias em busca de um dente de ouro quebrado, um tesouro enterrado ou uma relíquia dos tempos de Lampião que pudesse ser vendida para os colecionadores da capital. Quis o destino, nas entreliças do poder, unir o linear e o pitoresco perfil desses dois protagonistas. Eleito prefeito de Maracás com a benção de um velho coronel e com o dinheiro desenterrado de Nepomuceno, um volante mandrião naquelas bandas exilado, Crispim Corcoran foi à capital, Salvador, para o imprescindível beija-mão ao todo poderoso tenente Juracy. Tinham ambos 25 anos. Crispim se encantou com a escusa e decadente aristocracia baiana; Juracy, com o otimismo solar do sertanejo. Ficaram amigos e torraram grande parte do orçamento nas roletas do Cassino Tabariz, nas tabacarias da rua Chile e nos cinemas da Baixa dos Sapateiros. Um dia, enquanto almoçavam no palácio da Aclamação, a sede do governo, Crispim se esforçava para entender a estrutura do poder, suas pastas e secretarias, os protocolos e o cerimonial cujo hilário arremedo mais tarde ele instalaria no velho casarão cheio de escoras e goteiras que era a prefeitura de Maracás. Espirituoso, Juracy preferiu encenar uma alegoria a dar-lhe uma fastidiosa aula de administração pública. Mandou servir ao hóspede uma carta de aperitivos, sucos de jenipapo e maracujina, e licorosos vinhos de sobremesa. Crispim baqueou e o vento estupefaciente das tardes tropicais trouxe-lhe do mar e dos coqueiros um sono feiticeiro. Juracy lhe ofereceu um canapé de estofada seda e sugeriu quinze minutinhos de modorrenta sesta. Mandou fechar todas as janelas e cortinas, encostou todas as portas, encerrou o expediente e despachou todos os serviçais e funcionários. Foi para o jardim com seu ajudante de ordens e lá ficou a matar o tempo. Não passou vinte minutos para ouvir a voz abafada de Crispim a procurar alguém. No início civilizados, bem cedo os apelos do hóspede se tornaram aboios de claro desespero, para logo silenciarem de uma vez. Juracy permaneceu mais quarenta longos minutos, em perversa magnanimidade, a ver se Crispim encontrava a saída do opulento Palácio. Não precisou vasculhar muito – quando decidiu acudir o seu hóspede. Encontrou Crispim no pátio da Aclamação, espaço que dá nome ao palácio, desfigurado, furioso por ter percorrido em vão escadarias e corredores, aposentos e vestíbulos, paços e banheiros.
_ Então, nobre prefeito! Não querias conhecer o poder? O poder é um labirinto! Um abrir e fechar de portas, uma mudança de rumos sem fim, um eterno entra-e-sai de dar vertigem! Não foi isso que você sentiu no meu modesto labirinto?
Enfezado, Crispim nada respondeu. Voltou para o hotel, fez as malas e retornou a sua pacata Maracás. Vinte e cinco longos anos se passaram. Político consolidado e carismático, Juracy era agora – em 1958 – candidato ao governo da Bahia, nos ventos da democracia após a era Vargas. Crispim, com o dinheiro desviado da prefeitura em três mandatos, havia adquirido uma vasta nesga do sertão, nas Contendas do Sincorá, e lá vivia como um coronel idolatrado. O candidato Juracy, em busca dos votos do interior, decidiu visitar o antigo companheiro de esbórnias e fanfarras. Soubera que o número de cabrestos do Coronel Crispim facilmente a casa dos dois mil ultrapassava. Chegou cedo à sede da fazenda, pelo latido dos cães e pio dos curiangos anunciado. Crispim o recebeu com entusiasmo e alma dilatada, almoçaram com larga comitiva no salão de peroba encerada e prosearam por toda a tarde. Crispim mandou emissários por toda a região convocando o povo para um comício improvisado no raso do passa-quatro, uma campina às margens do riacho de mesmo nome, tão logo findasse a missa dominical. Domingo de madrugada partiram, Crispim, seu ajudante e Juracy Magalhães (seu cortejo todo na sede ficara, derrubado por uma diarréia aloprada, enquanto Juracy festejava o fato de a causa desse mal, uma providencial coalhada, não lhe ter sido ofertada). Desceram em ziguezague os murundus do passa-quatro, entre os arbustos cada um mais parecido com os outros, sobre pedras e lajedos tão diferentemente iguais, até o leito seco do riacho que era da mesma e indistinguível areia universal. Apearam sob um seca goiabeira e ali esperaram a multidão de almas eleitorais. Minutos depois, ou horas - pois que o sol derrete o tempo é fato consumado – Crispim pediu que Juracy aproveitasse o frescor da sombra que restava, enquanto ele e seu vaqueiro subiriam umas quebradas para acenar ao povo que já se aproximava. Mal saíram das vistas do tenente, que ensaiava em solilóquio seu discurso empolado, Crispim arrastou pelo braço seu capanga e escafedeu pelas encostas, desaparecendo em poucos minutos por entre umbuzeiros ralos, moitas de espinho e rastros cagados de gado. Pararam dentro de um mato-cipó e o vaqueiro o interpelou pela sorte de Juracy, que seria do pobre coitado?
_ Preocupa, não, Anésio. O tenente conhece os labirintos escuros do poder na capital! Como não haveria de conhecer a caatinga, esse labirinto de veredas pelo sol incendiado?
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