O baile à fantasia seria na Ilha do Fiscal, na Baía da Guanabara e Odete não conseguia pensar em outra coisa. Chegava mesmo, obcecada como estava, ao mirar as águas da baía da janela do seu apartamento na enseada de Botafogo, a ver nos reflexos da cidade sobre a oleosa água, mil e um rostos mascarados a bailar em psicodélico frenesi. Sua empolgação havia uma “raison d’être”, uma razão de ser: Oberon iria estar presente, seu primeiro namorado que estava de volta à cidade, após um longo período no interior do país. Falaram por telefone, tensos, com vozes embargadas, e patente ficou que o afeto entres eles continuava o mesmo, apesar de ambos estarem casados, e relativamente bem casados. Seu esposo estava no exterior, à negócios, e a esposa dele, havia ficado lá na fazenda, a cuidar de dois filhos pequenos. O baile seria só deles! Ele iria vestido de Zorro, de capa e espada, ela iria de cortesã veneziana, trocaram detalhes de suas fantasias como se fossem de novo os primos adolescentes que namoravam furtivos nos jardins do velho casarão do Cosme Velho, dos seus avós. Ele tentou conseguir mais detalhes da fantasia dela, mas Odete, muito altiva, se recusou a dar, pois, se ele não fosse capaz de reconhecê-la entre centenas de outras mascaradas, é porque tinham sido falsas todas as suas juras do passado! Ele amou esse desafio, e disse que a reconheceria mesmo se ela fosse uma sombra noturna, uma lágrima na chuva, um vapor nos campos!. Trocaram mais promessas e a ela conveio desligar, por recato ou tática de sedução. Daquela noite ao telefone, até a noite do baile, passaram-se uma eternidade disfarçada de semana, e finalmente o sábado chegou. Parecia que o Rio de Janeiro estava em peso no baile. Filas quilométricas e estacionamentos engarrafados despejavam um cortejo feérico dos mais estranhos seres na porta do pitoresco palacete sobre as águas da Guanabara: princesas das Arábias respirando entre véus feitos de nuvens, faunos gregos, piratas e ciganos, sacerdotisas do Egito, Astronautas e bandoleiros do velho oeste, heróis dos quadrinhos, o mais bizarro repertório do Halloween e dos festejos mexicanos a celebrar o dia de finados..., era como se as portas da história tivessem perdido os gonzos e as épocas da humanidade se entregassem à uma orgia nos assoalhos de uma tumultuada estação de trem! Pelo menos, era a impressão de Oberon, acostumado que estava com os tipos monótonos e pitorescos de uma sóbria fazenda de café no interior. Pelo menos não viu ninguém fantasiado de Zorro e grande era a sua ansiedade em encontrar o mais cedo possível a sua prima querida, e com ela recuperar um pouco dos anos dourados como se este reencontro com o seu passado fosse a razão de estar percebendo a azáfama do baile como um fenômeno alucinatório onde as eras da humanidade se misturavam, ele que não costumava delirar nem possuir, nessa circunstância, o desprendimento mínimo necessário para tal. Seus olhos perscrutavam o local fingindo uma discreta serenidade. E tinha mesmo o que olhar. A mistura embriagante e entorpecedora dos perfumes femininos, o tilintar das taças e o lufa-lufa dos convidados bailavam entre sorrisos e olhares enigmáticos, amigos e celebridades elusivas feito farrapos de sonho no labirinto dos corredores e pátios do palacete enluarado. A noite era tépida e a música, conjugada com o champanhe, tratavam de solapar seu brejeiro senso de realidade fermentado nas rudes lidas do cafezal. Oberon resistia a se entregar ao clima de magia que tudo no lugar conspirava. Estava ali para rever sua antiga namorada e não se interessava em corresponder aos olhares que sua galante estampa de cavaleiro mascado atraía. Com Odete era diferente, ela circulava entre a multidão de mascarados olhando tudo e a tudo sendo afetada, pois precisava justamente perder o senso de realidade, esquecer que era uma mulher de família, casada com um honorável diplomata, para poder reencontrar seu primeiro amor e a ele se entregar, ainda que fosse por uma noite apenas. Para isso contava com sua máscara vermelha e imponente, tomando quase todo o seu rosto e o estoque generoso de champanhe que transitava sobre as lestas bandejas dos garçons. Considerando o que já havia bebido em casa, era pra já estar moderadamente embriagada, mas essa noite a expectativa a mantinha acesa e vigilante. A orquestra e a voz do cantor Emílio Santiago enchia o ar com os acordes de “Nada Além”, um foxtrote melodramático e embriagador. Casais dançavam rodopiando no salão enquanto serpentinas coloridas caiam entre os lustres prateados e gargalhadas que, sob máscaras e disfarces, possuíam algo de sinistro e assustador. Oberon dançava com todas com quem cruzava e assim ia circulando entre os casais, atento e arrebatado pelo suspense, como se estivesse consciente dentro de um sonho. Não demorou muito e viu, no patamar de uma escada em caracol, altiva e parecendo lhe fitar profundamente, a silhueta de uma dama com uma grande e perolada máscara vermelha. Seu sorriso cintilante e de uma ternura indescritível não permitia dúvidas. Era ela, sua prima Odete! Oberon abandonou no meio do salão a garota fantasiada de Doroth, do Mágico de Oz, e tentou atravessar o salão onde as pessoas pareciam lhe impedir a passagem, seu corpo se arrastando com lentidão e estupor, feito a recorrente comparação com um sonho ou um pesadelo, quando sentimos dificuldade em nos locomover. Era apenas afetação e ele logo conseguiu chegar aos pés da escada. Odete, segurando a barra do vestido de organdi e fios de ouro falso, cintilando em adereços prateados e lamet, sorria sem tirar os olhos dele enquanto subia em direção à um luxuriante alpendre com sacadas debruçadas sobre o mar onde a lua de dividia em um milhão de reflexos dourados, feito um baile sobre a água onde houvesse apenas um tipo de mascarada. Oberon venceu os degraus ofegante e ébrio de felicidade. Odete estava recostada em uma pilastra na extremidade da varanda onde a sombra flertava com a luz e distante de outros casais espalhados pelo local. Seu rosto era um convite e seu sorriso no de Oberon se espelhava. Com um gesto teatral e elegante, Odete abre um leque e o lança fora, sobre o mar, rodopiando e dançando ao vento antes de se perder entre as máscaras do luar sobre o espelho d’água. Notem que o narrador abusa de alusões aos reflexos e espelhos, pois que os espelhos eram a nota dominante na decoração do local, havia-os em toda a parte e, providencialmente, ao lado da pilastra onde Odete recostava-se à espera do seu amado, havia um grande espelho emoldurado em laca e retorcidas ferragens, entre vasos de trombetas e abricós envolvendo o elusivo casal em aromas mornos e tropicais. Tal espelho nos permitiu ver a cena diametralmente duplicada: de um lado, lânguida e emocionada, vê-se o rosto mascarado e sorridente de Odete crescer na tela enquanto Oberon se aproximava, de costas, podendo notar o nó da sua máscara negra entre as madeixas do cabelo liso e louro. Ao lado, exatamente ocupando metade da imagem (Se isso fosse um filme, óbvio), vê-se a coluna de mármore com u’a moça, de costas, nela apoiando seus alvos ombros nus e, à sua frente, o zorro se aproximar cada vez mais, com uma ruga de alegria contida entre o bigode e os lábios. Por fim se aproximam e Oberon lhe segura pelos ombros. Ensaia falar alguma coisa, algo talvez obsessivamente decorado, mas ela o silencia com um dedo nos lábios e lhe beija na boca com ardor. Em seguida, tomados por uma ensaiada espontaneidade e um furor em continuar o beijo inacabado, ambos retiram suas máscaras, ainda pulsando de paixão e se faz conveniente que a minha narrativa se desdobre para descrever as duas faces da imagem, a real e a do espelho lateral:
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