Alguns
escritores são tímidos, não podemos esperar grandes coisas deles.
A timidez habita também o pensamento e os livros que eles escrevem, conscienciosos e pudicos, perdem-se em evasivas. Infelizmente sou um destes. Uma timidez congênita manifestava-se bem antes do meu nascimento. Eu, lembro-me confusamente, não queria nascer; todas aquelas luzes, médicos acadêmicos em roupas brancas, enfermeiras curiosas e, principalmente, ter que sair nu! Não dava. Tiveram que fazer uma cesariana e eu chorei, chorei de vergonha! Custa-me acreditar que passei quatro anos sem falar com nenhuma garota da minha idade e tudo por um incidente tão ordinário! Costumava eu no décimo ano de minha vida acompanhar minha mãe nas visitas regulares que ela fazia ao Educandário Cristo Rei, misto de orfanato, colégio e convento somente por mulheres habitado. Um dia, convidada a conhecer as dependências do orfanato, ela deixou-me sentado no refeitório sozinho, isto é, com as vinte e sete internas entre nove e doze anos sentadas na grande mesa ao lado. O choque fora brutal. Todos interromperam a sopa que tomavam e fitaram-me por longos segundos que na ausência de minha mãe duravam uma eternidade. Súbito uma delas, a líder do grupo, soltou a colher sobre o prato de metal retumbando amplificado no silêncio da grande sala. Levantou-se indignada em direção à porta de saída e ao passar por mim fitou-me dos pés à cabeça. A insolência no seu rosto coroava-se com um nariz aquilino de ventas triunfais. Pôs um dedo longo e pálido no meu rosto soletrando:
A timidez habita também o pensamento e os livros que eles escrevem, conscienciosos e pudicos, perdem-se em evasivas. Infelizmente sou um destes. Uma timidez congênita manifestava-se bem antes do meu nascimento. Eu, lembro-me confusamente, não queria nascer; todas aquelas luzes, médicos acadêmicos em roupas brancas, enfermeiras curiosas e, principalmente, ter que sair nu! Não dava. Tiveram que fazer uma cesariana e eu chorei, chorei de vergonha! Custa-me acreditar que passei quatro anos sem falar com nenhuma garota da minha idade e tudo por um incidente tão ordinário! Costumava eu no décimo ano de minha vida acompanhar minha mãe nas visitas regulares que ela fazia ao Educandário Cristo Rei, misto de orfanato, colégio e convento somente por mulheres habitado. Um dia, convidada a conhecer as dependências do orfanato, ela deixou-me sentado no refeitório sozinho, isto é, com as vinte e sete internas entre nove e doze anos sentadas na grande mesa ao lado. O choque fora brutal. Todos interromperam a sopa que tomavam e fitaram-me por longos segundos que na ausência de minha mãe duravam uma eternidade. Súbito uma delas, a líder do grupo, soltou a colher sobre o prato de metal retumbando amplificado no silêncio da grande sala. Levantou-se indignada em direção à porta de saída e ao passar por mim fitou-me dos pés à cabeça. A insolência no seu rosto coroava-se com um nariz aquilino de ventas triunfais. Pôs um dedo longo e pálido no meu rosto soletrando:
- ME-NI-NO BÔ-BO!
Todas as vinte e seis internas, uma por uma, repetiram em fila indiana aquele gesto e produziram em meu espírito minha primeira ideia universal: todas as meninas são cruéis! Hoje devo-lhes algo mais. Quando relembro a intermitência daqueles diabinhos com seus dedos judiciosos concebo, do mal infinito, a mais justa das imagens. Meus primeiros esforços para superar-me foi esconder o rosto entre as páginas de um livro acreditando, como ainda acredito, ser o conhecimento capaz de corrigir a natureza humana. Que engano! Quanto mais eu distanciava-me do mundo mais configurava-se ele titânico como gigantes que somente à distância podemos vê-los inteiros. Li uma passagem na vida de Diógenes, o cínico, que bem ilustrava o meu drama. Costumava ele em praça pública condenar com veemência, execrar sem piedade os amantes do vinho. Um dia, após um belo discurso na Ágora, o retórico Demóstenes se dirige à taberna com amigos para um trago comemorativo. Na porta, contudo, avista Diógenes vindo na mesma direção. Para evitar a publicidade do seu hábito, Demóstenes se esconde no fundo da taberna. Diógenes porém já o tinha visto e por nada deste mundo perderia a oportunidade. Ao passar pela porta grita para o fundo da taberna:
- Demóstenes! Quanto mais recuas, mais penetras...!
Demóstenes ainda ensaia uma réplica: “o mal não está em entrar, e sim em não sair.”Mas sua resposta soava como clichês de um retórico. A minha situação era análoga. Quanto mais eu recuava mais inibido ficava. Um dia, sem causa específica ou aparente, eu acordei curado. Era domingo de carnaval e encontrava-me no bucólico bairro de Santa Tereza - Rio De Janeiro. Programado para o final da tarde estava o desfile do bloco “As Carmelitas”. O nome deve-se ao convento dessa ordem religiosa ali instalado e os foliões do bloco fantasiavam-se de monges e freiras. Um mau gosto pode ser criativo, por exemplo, os quadros do pintor Archimbold com seus tiranos em faces de repolho e tipos pantagruélicos com nariz de chuchu, porém ver lindas mulheres em vestes sacras e pudicas conspurcava o espírito pagão daquela festa. Era preciso fazer algo. Lembrei-me dos carnavais romanos onde o povo carregava falos gigantescos pelas ruas em homenagem à Príapo, um dos êmulos de Dionísio. Corri ao atelier de uma escultora amiga e com uma peça de espuma fiz u’a máscara em forma de glande pintando-a de vermelho. Em papelão fiz o tronco do falo que ia do pescoço ao joelho, com algodão modelei as veias entumecidas, o prepúcio e o nó pintando com amarelo Nápoli que lembra a cor da pele. Pendurado no joelho ia um saco plástico com duas bolas de basquetebol dentro e coladas sobre o saco, o cabelo de duas perucas. Ao ouvir os primeiros acordes da banda vesti a fantasia, tomei um trago e desci eufórico a ladeira fantasiado de “pica”. Emergi no seio da multidão. Os Gnósticos emasculando-se e lançando à deusa Cibele seus membros decapitados não os tinham tão festivos e vibrantes como eu. Esperava converter os foliões, aflorar os avatares pagãos. Não dera certo. As crianças que me seguiam em grande algazarra foram puxadas pelos pais. A banda hesitava. Os foliões interromperam a dança e fitavam-me indignadas. Eu pulava e sacudia o saco de bolas, enchia a boca de água e cuspia para o alto como se estivesse ejaculando quando um indivíduo vestido de rabino agrediu-me com um guarda-chuvas. As mulheres atiravam-me crucifixos com violência, pisavam no saco de bolas e as vaias sobrepujavam o som da banda. Algo então se passou. Blocos de memória desabaram sobre mim e encontrei-me no antigo refeitório do Educandário Cristo Rei. A multidão ensandecida era agora para mim aquelas meninas com pernas de harpias chamando-me de menino bobo. Os manes da vingança possuíram minhas forças. Como um touro solto pelas ruas da Espanha investi contra a multidão. A glande de espuma protegia minha cabeça dos golpes, o tronco de papelão travestia-me em um aríete. Apanhei senhoras idosas por baixo das pernas lançando-as para cima, com um único giro derrubava cinco nocauteando-os com a cabeça vermelha. Abraçaram-me apertando com força e feito um membro masturbado eu desmaiei gozando de volúpia e vingança.
No outro dia os jornais sensacionalistas exploraram o ocorrido usando de títulos equívocos: FREIRAS CARMELITAS LEVAM SURRA DE PICA ou HAVIA PICA PARA TODOS e outros ainda mais pusilânimes. Não importava muito. Eu estava curado da timidez e posso agora discorrer sobre um tema que muito me persegue: o sexo. Considere, gentil leitora, que o autor possui, entre outros miseráveis atributos, um conhecimento bastante limitado sobre o tema, não ultrapassando os dedos de sua mão o número de mulheres que compartilharam os lençóis engomados do seu leito. Antes de abordar o universo feminino há mais um obstáculo a ser superado, a reflexão sobre algumas experiências que for preciso fazer. Poucas coisas revelam-se tão tenebrosas para mim quanto a reflexão qualquer que seja o tema. Quando menino li uma entrevista do escritor argentino Jorge L. Borges sobre o pavor que lhe inspirava a visão de um espelho. Aquilo inquietou-me profundamente aflorando-me a consciência de um pavor semelhante. Eu sentia confusamente a mesma angústia sem contudo experimentá-la diante dos espelhos. Olhava para eles, fazia garatujas e o máximo que conseguia era rir da minha estupidez; mas havia ali um medo envolvido que eu precisava descobrir. Anos depois, folheando um livro sobre arte européia, deparei-me com a foto de uma escultura de Auguste Rodin chamada “O Pensador”, era Dante Aligheri representado com a mão no queixo em expressivo estado de profunda reflexão. Ericei os pelos do crânio de tanto medo e descobri finalmente que o pavor sentido não era da reflexão de imagens e sim das ideias refletidas no pensamento. Ainda hoje quando vejo alguém imóvel com ares de estar refletindo alguma coisa fujo apavorado se possível for. Estarei assim escrevendo sem pensar muito no que digo.
A primeira vez que fiz “contato” com o outro sexo, se há alguém que possa se interessar por isso, foi aos dezessete anos quando fui seduzido por uma professora de artes no ginásio. Ela combinava inteligência, sensualidade e beleza com muita sensibilidade e seduziu-me com tanta determinação que o marido dela, se soubesse do que houve entre nós, seria obrigado a inocentar-me. Norah, era este o seu nome, costumava excitar as suas alunas no curso de escultura com leituras do “Decameron” de Giovanni Bocaccio, depois mergulhava-as nuas em uma bacia com cera mole usada para tirar moldes. Quando a cera secava ela raspava as partes do molde em contato com o sexo das modelos. Com esta cera ela preparava um cosmético e quando usava-o os homens da cidade ficavam loucos seguindo-a como cães ao cio de uma cadela. A cidade era pequena e muita gente sabia do nosso caso. Um dia, estando o marido dela viajando à negócios, ocorreu uma cena curiosa. Estávamos no quarto, eu e Norah, quando ouvimos passos no telhado. Era um ladrão, alguém que sabia do nosso amor e supondo que não ousaríamos surpreendê-lo visto ser a nossa transgressão algo mais escandaloso - de fato era assim, tal a moral que imperava em nossa pequena comunidade. À princípio ele agia furtivamente mas logo fora tomando liberdades. Abria a geladeira, ligava a televisão e ainda olhava pela fechadura do quarto fazendo comentários maliciosos. Fiquei em silêncio, sofrendo ainda da famosa timidez, enquanto ele colocava a prataria dentro de um saco. Norah ficou furiosa e exigiu de mim nesta noite prazeres capazes de compensar todos os bens perdidos. Não fui contudo o garoto libertino que deixo transparecer. Dias depois caí de amores por uma colegial com onze anos de idade. Nunca experimentei um amor tão platônico como aquele. Era algo tão sublime e assexuado que surpreendeu-me um comentário feito por um amigo meu. Minha púbere amada já era u’a mocinha com seios crescendo a olhos vistos. Meu amigo perguntou-me: “ você já viu os peitinhos de Arlene?” , e eu, o verdadeiro amante, o menino das cartas e das lágrimas, fui surpreendido. “ Não, não tinha percebido.” Fora a minha resposta, mas deixarei esse meu lado angelical para outra hora. Basta-me narrar agora o acontecimento que destruiu todo o meu romantismo, todo o encanto que nos arrebata quando amamos. Fui estudar em outra cidade e me hospedei com uma família que tinha laços estreitos com a nossa. Três habitantes compartilhavam comigo a casa de dois andares: Gustavo, um comerciante obeso e paranoico, sua esposa Betina, um anjo sobre a terra e sua cunhada Jussara, a mais perfeita contrafação de Betina, um demônio nascido de incubações e sucubação. Gustavo tratava a esposa, jovem de vinte anos, como uma pagem medieval sempre trancada no quarto por cujas paredes ouvia-se muitas noites a voz do seu marido trêmula e agressiva por tanto álcool ingerido. Betina tinha em mim uma linha de fuga. Líamos muitos livros, cultivávamos um jardim e dávamos longos passeios de bicicleta quando Gustavo viajava à capital. Jussara odiava-me, escondia a minha farda colegial, trancava os livros no armário e criticava todos os ditos espirituosos que eu pronunciava. Uma noite durante o jantar senti um pezinho delicado acariciando o meu por baixo da mesa. Eu que já estava “caído” por Betina vi estrelas naquele momento. Ela correspondia ao meu afeto e a vida descortinou-me a estrada florida que conduz ao paraíso. Ao lado dela Jussara fitava-me de modo estranho. Dias depois encontrei uma carta anônima sobre a minha cama. Alguém dizia desejar-me com paixão, arder todas as noites pensando em mim e não suportando mais a minha indiferença. Betina amava-me, não havia mais dúvidas. Durante a noite a presença de Gustavo impediu-me tocar neste assunto. As duas irmãs conversavam a noite inteira em voz baixa e fitavam-me sorrindo. Eu correspondia sorrindo também para elas como um noivo no altar. Na hora de dormir encontrei Betina na cozinha com uma jarra de água entre os braços e os seios. Ela perguntou-me sussurando: “ leu a carta?”... SIM! Foi o máximo que consegui responder. Minhas pernas tremiam. Tive ímpetos de beijá-la mas havia a jarra de cristal no meio... “ existe alguém nesta casa que te ama muito” ela disse no meu ouvido.
Ouvimos um grito: BETINAAA... - era a voz de
Gustavo. Ela quase derruba a jarra ao ouvir o chamado. Próximo da escada
ela voltou-se para mim dizendo: “ não tranque a porta do seu quarto,
terás visita...!”Não sei como subi os degraus da escada. Ao deitar na
cama o meu corpo tremia. O coração batia disparado. Deixei a porta
entreaberta e as luzes apagadas pois a casa não tinha forro e entre as
paredes e o telhado a luz denunciava-se. A presença de Betina
antecipava-se em todos os ruídos de uma noite escura. Minha imaginação
fervilhava e temi que um surto onanista me assaltasse. Seria um desastre
se ela me encontrasse exaurido e impotente, assim pensava a mente
imatura de um adolescente. Fiquei pensando em coisas repugnantes para
conjurar o delírio erótico. A imagem de Jussara trajando biquíni na
piscina era um jato d’água no fogo do desejo. Ela possuía nos quadris
uma grande mancha cheia de cabelos e grossa como a casca de uma ferida.
Dava-me náuseas só em pensar. Acabei por adormecer. Acordei tarde da
noite com uma tépida mão me acariciando. Dizem que Adão conhecera Eva ao
sair de um sonho. Eu não via nada na escuridão e pensei estar ainda
sonhando. Havia um corpo quente e nu sentado ao meu lado na cama.
Articulei o seu nome - Betina - mas ela silenciou-me com um longo beijo
na boca. Nos abraçamos como dois famintos. Meu pijama sumiu em um passe
de mágica. Eu só pensava em penetrá-la repetindo mil vezes: “te amo, te
amo...”
Quando toquei em suas coxas senti algo áspero e cabeludo em minhas mãos. Era a mancha repugnante! Era Jussara quem estava deitada em minha cama. Corri ao interruptor e o rosto dela bruxuleou sobre os brancos lençóis. Era ela então a autora da carta! E Betina tivera a coragem de ser cúmplice em uma trama tão sórdida! Quando percebeu a minha decepção, Jussara desenhou um sorriso cínico dizendo-me:
- Quem você esperava? A minha irmãzinha?
Eu nada lhe respondi. Saí andando pelo corredor, desolado e nu. As paredes pareciam estreitar-se e lamentei que elas não esmagassem-me os ossos. A porta do quarto de Gustavo estava aberta. Olhei para a cama iluminada por um pálido luar e vi o corpo de Betina enlanguescido sobre o dele. Sua perna volumosa ondulava sobre o respirar entrecortado. Parecia estar tendo um sonho lindo e quase sorria como uma deusa saciada. Dentro da jarra d’água a dentadura de Gustavo enviava-me uma silenciosa gargalhada. No outro dia, com um pretexto qualquer, mudei-me para um pensionato e jurei não amar nunca mais. O tempo revelou-me ser esta jura mais um capricho de um menino mimado. Continuei por muitos anos procurando a minha “alma gêmea” e nunca a encontrando. Diógenes, o cínico, andava em plena luz do dia com uma vela na mão procurando por um homem. Compreensível era a sua ironia pois, enquanto um peixe é sempre um peixe, um pássaro, sempre um pássaro, o homem raramente é um homem. Felizmente para mim, “une femme c’est toujour une femme” e não perdi ainda a esperança. Carrego nesta busca uma chama no peito, tão ardente que explicá-la como instinto não basta, é quase uma predestinação mas sobre ela nada direi para evitar superstições.
Diógenes fora abordado um dia por um sacerdote délfico - seita que
adorava Apolo, o deus vidente. Com a arrogância própria dos sacerdotes
ele perguntou-lhe:
- Diógenes, responda-me. De onde vem esta luz com a qual você espera encontrar um homem?
Sentindo a inspiração teológica desta questão, Diógenes apagou a chama com um sopro suave e respondeu:
- Se você me disser para onde ela foi, eu lhe direi de onde ela veio!
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