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| Marcel Proust no Farol da Barra, em Salvador-Ba |
O esboço desse apontamento sobre a memória será um famoso e
sofístico argumento que apaixonou os pensadores da antiguidade, conhecido como
o ARGUMENTO DOMINADOR (me atenho à recordação de leituras que fiz há duas
décadas da obra Le Dominateur et les Possibles, de Pierre Maxime Schull). Se eu
digo: "amanhã haverá uma batalha naval", duas possibilidades se
apresentam ao meu pensamento: Haverá uma batalha naval amanhã ou não haverá! O
dia chega e, suponhamos, não houve a batalha. Não haver a batalha era uma possibilidade
que se tornou real, mas a outra possibilidade "haver a batalha" se
tornou impossível; ora, como o impossível não pode derivar do possível, somos
forçados a concluir que esta batalha naval sempre fora impossível, pela
eternidade a fora! Apenas nosso desconhecimento do futuro contingente nos
fizera crer ser ela possível! Aplicando esse postulado lógico sobre o conteúdo
do tempo vivido, veremos que a vida se resume à uma tremenda, inexorável e
asfixiante necessidade ( a mão de ferro que lança os dados na mesa do destino,
para usar uma bela imagem nietzschiana!): Tudo aconteceu como tinha de
acontecer, fatalidade profunda que exige um estoicismo sobre-humano em aceitar
a vida, ou então uma fatuidade de mesma proporção, pois, não podendo ser diferente,
nada podemos fazer para mudar a ordem do que nos acontece (esse segundo
argumento é conhecido na história da filosofia como argumento turco, ou
argumento preguiçoso). Ponto parágrafo. Façamos agora uma consideração sobre a
maneira como vivemos as nossas mais caras recordações passadas. É lugar comum
pensar que nunca mais teremos o passado em sua integralidade redivivo, em seu
puro acontecer, que tudo o que temos da vida pregressa são trapos de lembranças
e pálidos "recuerdos", míseras esperanças de reviver um paraíso
perdido, levado pelo vento! Uma análise acurada, entretanto, como sempre
intempestiva, contra o bom senso, nos revela que, na recordação, temos sempre
mais do que tivemos na experiência original (para horror e anátema dos
empiristas). Temos, além da impressão vivida conservada integralmente no ser da
memória (apud Bergson), todas as lembranças posteriores, que formam o estofo
inseparável da personalidade, da alma daquele que relembra, somados à impressão
primeira. A música que dancei no baile dos quinze anos com a colegial dourada
dos meus sonhos, se ouvida outra vez, irá me dar não apenas a emoção de ter o
secreto amor em meus trêmulos braços, mas também toda a minha experiência
acumulada ao longo de tantos outros amores repetidos, emprestando
irrevogavelmente a essa lembrança a pátina de amores voluptuosos, trágicos,
cômicos, insanos (qual amor não o é?) e fundidos à minha revelia, inconscientes, se podemos usar aqui essa palavra, como camadas de vida substancial aplicadas
sobre a audição da primeira música! Assim sendo, não conseguimos reviver o passado ao
recordá-lo por ser ele um simulacro da nossa recordação, mas, pelo contrário, ser
muito gordo o ser atual que tenta passar pela fenda tão estreita da experiência
original! Me recordo agora de uma professora obesa que tive no ginásio que,
para entrar na lanchonete de estreita e improvisada porta, fingia acenar para
alguém distante, ficando de lado para a porta e assim entrando voraz em busca
dos salgados! Relembro isso como um fato de tremenda comicidade, chego a rir
sozinho de outras feitas que recordo, mas sei também que hoje o meu senso de
humor, moldado por filmes do Chaplin, Mr Hullot, Mussum e Zacarias, Moliére e
centenas de outros de tão largo gênero, responde pela aberração desse gesto
outrora tão espontâneo e normal para um adolescente remelento e elementar,
imerso integramente no cotidiano superficial de uma vida rasa. Na época da
cena, provavelmente não ri nem achei escabroso como rio e acho hoje. Penso que
o meu leitor pode refletir sobre suas próprias experiências e enriquecer esse
meu arrazoado: não podemos modular nosso ser para relembrar o que quer que seja
com a mesma tonalidade de alma que tínhamos no momento vivido originalmente!
Mesmo essas experiências de regressão, onde o hipnotizado chora como uma
criança, chama a sua mãe aos prantos e fala com voz tatibitate, em tudo se
comportando como a criança que realmente fora, mesmo isso tem um ar de tremenda
trapaça e autossugestão, pois, veremos depois, se possível, que o inconsciente
também sabe ser um tremendo trapaceiro. Em momento nenhum o paciente em estado
de transe hipnótico está vivendo seu passado com a personalidade esvaziada pois
não há, no tempo (e na memória) espaço para se esvaziar o que quer que seja!
Voltemos agora para argumento soberano que usei no começo desse texto. Vimos
ali que, pela lógica modal, todo o passado sempre foi necessário, o possível
sendo apenas uma deficiência imaginativa nossa em não ser capaz de antecipar o
destino. Observem que essa é uma lei LÓGICA! E não ontológica! Isto é: Uma lei
intrínseca ao pensamento, que não pode aceitar que algo impossível tenha antes
sido possível; e não necessariamente uma lei do Ser, da Natureza, embora, os
eventos da natureza costume ocorrer em consonância com estas e outras leis do pensamento.
Devemos aqui conjurar a presunção hegeliana que dizia ser o Real racional e o
Racional Real. O que temos até o momento é que a nossa razão - e o inconsciente
usa muito bem isso -, é quem encadeia os acontecimentos da nossa vida,
endurecendo as biografias ao expulsar delas todo o oxigênio do possível, todo o
leque de opções antes de algo ocorrer, o que, mesmo sendo reflexo de nosso
desconhecimento, também era o colorido e a emoção mesma da vida presente. É
esse oxigênio das possibilidades que a razão sufoca e aprisiona o nosso passado
em uma uma narrativa mecânica e cansativa, a tal ponto que confundimos como
falta de memória o que não passa de um bloqueio nosso em recordar a vida
passada com suas possibilidades ancilares, com sua "stimmung" de sonhos
e esperanças, já que o passado tem que ser sempre recordado pelo crivo do
encadeamento lógico que a razão exige, limando os galhos ramosos de vida
sonhada e esperada, colorida por emoções que desbotam e desfolham quando
evocadas pela memória voluntária (apud. Proust). Espero que o leitor tenha
percebido que essa lei da razão tem secretos laços com a consistência da nossa
memória motora que empacota e amalgama todas as nossas lembranças de modo
inexorável em hábitos automáticos e mecânicos (tema da segunda parte deste
ensaio, em fase de elaboração!)
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Vira e mexe, meus pensamentos se voltam para o mais famoso argumento da filosofia antiga, Conhecido como ARGUMENTO DOMINADOR e que versa sobre os futuros contingentes. Assim reza o argumento: "Amanhã haverá uma batalha naval." Aqui estamos de frente a duas possibilidades, dois futuros contingentes: haver ou não haver a batalha. Os dois são categorizados como Possíveis lógicos. Quando amanhã chegar, iremos constatar se houve ou não a batalha anunciada. Suponhamos que não houve a batalha. Não haver batalha se tornou necessário e, por extensão, necessário pela eternidade a fora. Isto é, ontem, quando anunciamos as duas possibilidades, ela já era necessária e nós apenas não sabíamos, pois a outra opção, haver batalha, se tornando hoje algo impossível, não poderia ontem ser um possível lógico (algo impossível não pode, em lógica, ser derivado de algo possível, assim como o necessário- a batalha não ter acontecido - não poderia antes ser algo impossível). É essa operação lógica que, inconscientemente, fazemos para retroagir a categoria de Necessário, de algo que efetivamente aconteceu, para todo o tempo passado e tempo futuro. Com isso, findamos por expulsar o próprio tempo do inconsciente, pois, algo sendo necessário pela eternidade à fora é como se já tivesse acontecido, acontecendo e em vias de acontecer -as três dimensões do tempo embricadas no conceito de eternidade. Por isso que o Freud pode dizer que o inconsciente não conhece o tempo! A origem desse açambarcamento e retrojeção (Lacan irá chamar de Sujeito Suposto Saber) se explica pelos laços profundos que existem entre a nossa memória e nossos raciocínios lógicos. Apesar da tradição filosófica iluminista recortar e mapear nossas faculdades mentais como operações diferenciadas, na prática, tudo funciona junto e em sintonia. Nossa memória praticamente não registra os possíveis que se abrem a todo instante em que deliberamos e decidimos como e onde agir.
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OS psicólogos esqueceram de estudar um vínculo profundo entre a libido e a memória, um investimento de prazer que mantêm viva as boas lembranças e recalca as ruins (chamadas de traumas). Assim sendo, é errôneo dizer que a vida é curta, que passa rápido ou que tudo e fadado ao efêmero e ao esquecimento. Na verdade, aqueles que se lembram muito pouco de suas vidas pregressas, a grande maioria da humanidade, foram pessoas de vida insossa, enfadonhas e sofridas, pessoas que, graças à essa dor refinada e insuportável que é o tédio, não tiveram como registrar na memória seus dias anódinos, eternos e cinzentos; ou mesmo, foram obrigados a recalcar tais registros devido a profunda insuportabilidade de uma existência sem arte! Um homem de memória prodigiosa é, menos do que um bem dotado cerebral, muito mais um homem que soube e sabe viver, que passa pela vida com alegria e prazer, que realiza o conluio da libido com a memória, que celebra as núpcias de Eros com mnemósine!
H. Bergson E M. Proust
(Cassiano Ribeiro Santos)
A memória conhece inúmeros graus de contração e descontração. Na vigília, principalmente nas ações impetuosas, a memória encontra-se toda contraída em forma de movimentos e mecanismos comportamentais; no sonho, ela apresenta-se como imagem e indeterminação. Entre os dois graus extremos, a memória apresenta uma diversidade de estados e matizes: o devaneio, a distração, o hábito, o ensaio e a ação consciente. A função da memória, pelo menos em seu aspecto utilitário, é orientar as ações oferecendo a consciência casos semelhantes ao ato em questão, por exemplo, ao andar por uma cidade, a memória me oferece o trajeto das ruas percorridas outrora. Esta é uma função reducionista. Ao servir aos interesses da minha ação, a memória só oferece lembranças mutiladas pelo corte da utilidade, desprezando as nuanças, os tons e as particularidades que ora não nos interessa na lembrança em questão: a lembrança de um trajeto percorrido mais se parece com um mapa do que com as ruas coloridas que experimentamos quando sonhamos andar pela mesma cidade. No sonho, o vínculo entre a memória e a ação é tão lasso que a cidade costuma aparecer em sua luxúria original, com uma vivacidade de detalhes muitas vezes maior do que a vivenciada ao percorrê-la de fato, considerando que percebemos muito mais do que registra a nossa consciência atribulada. Esta articulação funcional entre a memória e a ação explica a constituição de nossos hábitos: estes, o conjunto de nossas ações inconscientes e mecânicas, nada mais sendo que a articulação cristalizada entre uma atitude e a lembrança acumulada de sua incessante repetição. Assim é que posso percorrer o trajeto entre minha casa e o local de trabalho como um autômato de tão conhecidas que são, do meu corpo, as ruas habituais. Digo do meu corpo por ser nele que os hábitos se inscrevem, constituindo uma memória involuntária e inconsciente, feita de conexões motoras, de ações e reações, de estímulos e respostas. Quando estamos escrevendo a mão, às vezes hesitamos entre as possíveis grafias de um fonema, por exemplo, S ou Z, então, em uma folha avulsa, escrevemos a palavra com uma letra e depois com a outra e logo sabemos, ou melhor, a nossa mão sabe qual a ortografia correta. Quando, porém, me recordo das vezes em que usei deste artifício, já não é a memória motora que estou invocando. Trata-se de uma outra memória, espiritual e composta de lembranças puras, de um substrato que lógicos antigos como Gotrob Frege chama de sentido; por exemplo, quero recordar uma canção da qual não possuo, nesse momento, nenhuma nota na consciência, apenas um sinal extrínseco, uma circunstancia a qual ela está indissociavelmente ligada; posso ouvir uma centena de outras músicas e saberei distingui-las desta que desejo recordar e da qual possuo o sentido embora não encontrando em meu cérebro nenhuma gama sonora correspondente. Se este sentido estivesse no inconsciente eu não poderia usá-lo como critério de identificação (claro está que esta memória espiritual não se encontra localizada no cérebro como defende a ciência do século vinte e um). A realidade metafísica da memória, a sua insistência no tempo, o tempo como uma dimensão ontológica, como o próprio Ser universal são as memoráveis teses do filósofo Henri Bergson em seu fabuloso livro Matéria e Memória, do qual esta página é um pálido decalque, uma lembrança quase mecânica de sua leitura recorrente e habitual.
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Sobre um amigo professor semi-proustiano:
As leituras de Auterives Maciel Junior, um professor bastante generoso e muito bem-humorado, com quem tive o prazer de partilhar toda uma formação filosófica, são vicárias da interpretação feita por Gilles Deleuze, de um tecnicismo acadêmico insuportável, que resseca toda a Einfühlung, a empatia que uma obra precisa ter para nos comover como Arte e Vida. Há algo de vampiresco nessa leitura que Deleuze faz sobre Proust, no seu livro Proust & Os Signos que este, talvez diante do fracasso desta obra, a batizou de um "biscoito duro", em suas próprias palavras. Certamente por isso as aulas do meu colega sobre Proust não tenha o encanto de outras, sobre outros autores. Falo do amigo que conheci; pode ser que hoje ele tenha relido Proust com seus próprios e polidos óculos! Seu mestre Deleuze vivia muito perto, no tempo e no espaço, do Marcel e pode ter perdido o foco. Isso fica claro no cinema, onde muitos europeus tentaram adaptar Proust - Visconti morreu tentando-, mas foi somente um estrangeiro, o chileno Raul Ruiz, quem conseguiu tal proeza, em O TEMPO REDESCOBERTO! Para mim, a cena final da Recherche, para onde deságua toda a obra, com Proust morrendo em um quarto de hotel e se reencontrando consigo mesmo, com o seu duplo criança na praia de Combray, tem o esplendor científico - e ao mesmo tempo sobrenatural - de um reencontro ontológico, de dois seres reais em um círculo temporal, que somente a Física Quântica pode, e timidamente, tentar explicar! Toda a obra de uma vida, uma conjuração e um bruxedo exaustivo do espírito de Proust se fez requisito para essa magia - não existe outro nome - de dobrar o espaço-tempo e por um homem lado a lado com seu duplo do passado vivo e reencarnado - sabe-se lá como, na mais profunda epifania, somente encontrada na hagiografia dos grandes santos católicos! Memória voluntária, involuntária, signos, afetos... tudo não passa de artifícios convencionais que ardem no fogo emotivo desta cena final. Triste de quem leu Proust e não viu o milagre! Deleuze foi um destes!
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