De toda a sua folhetinesca existência, o período em que ocupou o cargo de delegado de polícia em Itambé-Ba, fora o mais pitoresco na vida do meu tio Crispin Corcoran. Cheio de episódios folclóricos que causariam espécie, se ali houvesse um poeta para emprenhar as lendas, sua passagem pelo xilindró terminou com um triste episódio que maculou sua fina estampa de investigador diligente. Quem dera a notícia fora Cláudio Bruzega, seminarista que apanhava escondido o carro do padre e viajava de madrugada para namorar uma viúva no vilarejo de Cassilândia. Passando pela Caatinga de Lô Flores, velho latifundiário que não conseguia vender um alqueire sequer daquele chaparral sem água nem mesmo para beber, Bruzega viu luzes de lampião e ruído de picaretas em um barranco da estrada. Ali, dois desconhecidos cavavam com frenesi; os mesmos dois que, no sábado, apareceram na feira procurando um ourives e pagando cachaça com farelo de ouro. Nessa noite de luar amarelo, a notícia do ouro descoberto manteve, até altas horas, o tronco telefônico ocupado e o gerente do banco passou a noite em claro. Em quinze dias, oito novos proprietários cercaram o local enquanto Lô e a família se mudavam para o Acre com malas e bolsos estofados de dinheiro. Não demorou muito tempo – nenhuma faísca de ouro encontrada no lugar logo todo esburacado – e constatou-se que ali fora aplicado golpe conhecido como “buraquinho dourado”. Um dos falsos garimpeiros fora preso pescando em um trecho do rio Bananeira, o outro desaparecera e Corcoran queria a todo custo extrair do cabra uma confissão. _ Venha comigo, Corcoranzinho! – Era como ele me chamava. Eu era aprendiz de escrivão. Meu tio possuía a personalidade de uma lua cheia e eu o seguia feito uma estrela tutelar. Entramos em um quarto escuro nos fundos da delegacia. O garimpeiro estava sobre um tabuleiro, imobilizado dos pés à cabeça. _ Você vai torturá-lo? _ Só o espírito. O corpo eu respeito! Um dos braços do prisioneiro estava amarrado sob a tábua e, dois palmos abaixo, no chão de terra, uma larga bacia fora colocada. O homem teimava inocência. Crispim lhe explicou que seu pulso seria cortado e o sangue pingaria até a última gota caso não confessasse. Não sabia o coitado que, entre o cordame que prendia seu pulso, havia uma mangueira e que ela se prolongava até uma torneira ao lado do banquinho onde meu tio apertava um cigarro. Vi o carcereiro se ajoelhar, mirar com extremo cuidado entre as veias e, com uma gilete, abrir um longo e raso corte no pulso do garimpeiro; depois aplicou sobre o corte uma pasta de pólvora e molho de pimenta para estancar o sangramento e prolongar a dor. Corcoran abriu a torneira e gotas d’água começaram a cair enfáticas sobre o flandres da bacia feito badalos de um sino mortuário. O homem esbugalhou os olhos. O sangue lhe fugiu das faces e só não gritava por estar hipnotizado pelo som pastoso do seu sangue a gotejar na silente penumbra do entardecer. Partia meu coração ver seus olhos cintilarem inocência e suplicarem compaixão, mas meu tio era “casca grossa”: abriu um pouco mais a torneirinha, aumentando o ritmo do sangramento. A palidez do moço não era natural. Ficou da cor de cera como se estivesse, de fato, a perder litros do seu precioso sangue, mas levaria para o túmulo o segredo do golpe. Meu tio apostou alto no blefe: _ CONFESSA! TEU SANGUE VAI ACABAR E TU VAI MORRER! _ E fechou bruscamente a torneira. Vi a última gota d’água balançar na extremidade da mangueira e despedir-se melancólica com o som de um diamante estilhaçado. O garimpeiro revirou o branco dos olhos e gemeu quase sem voz: LUBIANA! LUBIANA! (Mais tarde descobrimos ser o nome de uma manicuri de Itapetinga por quem ele estava apaixonado), e MORREU! Por essa luz que me alumia! Morreu de susto. Branco como um pau-de-leite! Seu inconsciente acreditou que o sangue se acabara e o cérebro se auto-desligou. Sei lá! Sei que meu tio voou no seu pescoço, mais crispado do que um velho no vaso a expelir um cimento feito de osso de galinha e casca de ovo. Quando percebeu não ser apenas um desmaio, mas a própria escabrosa quem lhe arrebatara um prisioneiro, Corcoran deixou escapar, irrefletidamente, uma pérola sobre a precariedade da condição humana:
_ Traste morredor! Basta estar vivo
para cair morto!
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