Na
pequena e triste Alvorada, cidade encrustada como um rochedo na Serra do
Marçal, vivia o renomado coletor de impostos Dr. H. James, advogado por
correspondência – formado por uma destas obscenas faculdades do interior que
enviam pelos correios as provas dos alunos junto ao “carnet” de pagamento. H. James era um típico provinciano cuja
ausência de mundanidade havia comprometido o desabrochar de um inato e agudo
senso de observação. Gostava de ler as obsoletas enciclopédias compradas nos
sebos da capital e de dar longos passeios pelas ruas do lugar com o seu cão de
uma desconhecida raça, na verdade um cão perdigueiro que após longas gerações
de vida sedentária havia perdido a ferocidade e o faro. À exemplo de um famoso
filósofo de Könisberg, muitos moradores acertavam os seus relógios pelos
elegantes passos de H. James nas ruas de pedra e becos descalços. A solenidade
de seus passeios encontrava, na secreta intimidade do seu coração, uma
motivação de ordem moral: H. James possuía a insólita crença de haver em todos
os animais, da mais infusória bactéria ao mais ostensivo paquiderme, uma alma
de origem divina inspirando-lhe, entre outros sentimentos, uma efusiva
cordialidade e um afetado respeito por tudo que rastejasse sobre a terra,
deslizasse sob as águas ou voasse pelos ares. Era vegetariano e não os criava
em cativeiro. Em épocas remotas a sua crença poderia passar como um tipo de
santidade, como Francisco de Assis entabulando diálogos com os pássaros; Hoje
em dia, H. James talvez fosse aclamado como um ecologista iluminado, mas
vivendo no auge do mecanicismo e das ciências positivas os seus sentimentos
seriam julgados como aberrações de um romântico desmiolado; assim, o segredo. A
ninguém ele revelava o tema de suas ruminações literárias: um ensaio sobre o
pensamento dos animais, suas regras e faculdades.
A meticulosidade dos seus hábitos
ultrapassava o ritmo dos seus estudos, do seu trabalho e dos lendários passeios
pela cidade. O seu despertar, por exemplo, era um minucioso ritual decomposto
em inúmeras e distintas particularidades: o barbear-se com volumosa espuma e
coruscante navalha, o prestidigioso nó na gravata, o café sorvido em cinco
longos goles, o exame dos papéis dentro da pasta e o beijo na foto de sua
falecida esposa, tudo isso repetido todos os dias como uma imagem móvel da
eternidade. Deitado no tapete ao lado da sua cama, Corneta, o seu cão,
observava como uma fresca novidade o automatismo do seu dono. Nas úmidas
pupilas do cão, como nestas mônadas onde se desenrolam todos os predicados da
nossa alma, podia-se ver refletida toda a cena do quarto e o mecânico teatro do
seu proprietário. Assim que ele cruzava a porta com a pasta na mão, o cão
saltava a janela lateral e ia lhe esperar no portão da casa, balançando a calda
e ansioso por mais uma caminhada. H. James
afagava-lhe o pêlo castanho e se deixava acompanhar até à coletoria de impostos
onde trabalhava, quando então, com um simples meneio de cabeça, fazia o cão
retornar sozinho para casa. Um dia, no meio da sua rotina matinal, já vestido e
no terceiro gole de café, H. James lembrou-se do telegrama recebido na véspera
anunciando a vinda da sua irmã nesta manhã. Era preciso apanhá-la na
rodoviária, deixá-la em casa e só depois ir ao trabalho.. Exceto um sorriso no
rosto ao pensar em sua querida irmã, nada se alterou no seu cerimonial que mais se assemelhava a uma liturgia que a
um simples hábito; beijou a foto , apanhou as chaves na gaveta da escrivaninha
e saiu com a sua executiva pasta. Ao cruzar o jardim e avistar o portão,
lembrou-se que Corneta estaria lhe esperando, como sempre, para o passeio
diário. Ele iria emprestar o carro do vizinho e não poderia levar o cão
consigo. Era preciso fazê-lo entrar. Ao abrir o portão ficou muito surpreso ao
perceber que o animal não estava no lugar habitual. Retornou ao seu quarto,
abriu a porta e lá estava, deitado no tapete, o seu fiel companheiro . O cão
tinha os olhos bem abertos e fitava-o como se nada tivesse acontecido. Seu
primeiro pensamento fora o de estar o cão adoentado mas ao primeiro afago e à
festa que se seguiu, tal hipótese fora afastada. O cão saltava sobre a cama,
latia e apanhava no ar uma bola de meia que o seu dono lhe lançava; então,
aliviado, H. James o deixou e saiu um pouco atrasado ao encontro de sua irmã. À
tarde, no gabinete onde trabalhava, ruminou a esquisita atitude do animal sem
encontrar nenhuma explicação razoável, exceto um capricho ou uma ligeira
indisposição, contudo...uma insólita conjectura atormentava o ocioso
transcorrer das suas horas: “teria o cão
previsto a suspensão do passeio matinal
e, assim, não se dando ao trabalho de esperá-lo no portão?” O dia
seguinte talvez lhe daria uma resposta. Nele, durante os primeiros raios da
manhã, como um ator que se vê encenando no palco, repetiu as condutas de
sempre, desta vez acompanhando de
soslaio os olhos do seu cão no tapete. Ao cruzar o portão em direção ao
trabalho, já o cão ali estava esperando-lhe ansioso e parecendo possuir sobre o
seu dono um intuitivo conhecimento. H. James possuía uma relativa autonomia em seu trabalho e podia
organizá-lo com liberalidade, antecipando tarefas e se permitindo muitos dias
ociosos. Um pouco relutante em alterar suas rotinas, ele adotou esse expediente
para testar a inteligência do seu adorável cão. Escolheu um dia no meio da
semana em que não iria trabalhar e com o máximo de dissimulação, na manhã desse
dia, repetiu com perfeição os seus enfadonhos afazeres. Sentiu o vigilante cão
prescutar todos os seus passos, como era de rotina. Saiu fechando a porta e no
caminho do pequeno jardim imaginou Corneta saltando a janela lateral do quarto,
pulando a cerca e lhe esperando no lado de fora do portão. Ao abri-lo, como
suspeitava, e contente pela confirmação de um enigma a mover o seu preguiçoso
cérebro, Corneta ali não estava. Voltou para o quarto e o encontrou estendido
sobre o tapete, os olhos tomados por uma canina serenidade. A partir desse dia,
H. James constituiu um novo hábito: testar a inteligência do animal e,
secretamente, confirmar a sua crença na existência de almas irracionais. Ele
acreditava em muitos fenômenos que os almanaques classificavam de “paranormais”
como telepatia, premonições, metempsicoses e possessões; embora possuísse uma
cera intimidade com as cavilações metafísicas à respeito da alma humana, elas
não poderiam ser atribuídas à seres irracionais e era somente através de
evidências empíricas que ele esperava confirmar as suas entrigantes
premonições. A confirmação de uma relação espiritual entre ele e o seu cão
haveria de elevar o seu nome ao iluminado panteão da ciência e, sonhando de
olhos abertos, ele via a legenda da sua vida no alto daquela serra projetada
nos pináculos da sabedoria. De fato, o cão parecia possuir uma participação nas
mais secretas volições de H. James. Sempre que ele ia trabalhar o cão o
esperava no portão e sempre que ele simulava, o cão não se movia do lugar. Com
o correr do tempo, H. James passou a experimentar variações em sua rotina
matinal; suspendia um dos seus atos como, por exemplo, não beber os cinco goles
de café ou ,então, introduzir um outro, como engraxar os sapatos. Nada se
modificava. O cão era infalível e só o esperava quando a intenção de ir
trabalhar se alojava nos departamentos mais íntimos da sua alma. Arrebatado
pelo comportamento extraordinário de Corneta, H. James começou a redigir um
artigo com o pomposo título “Intersubjetividade Monadológica – Estudos de
Conduta Animal.” No estilo prolixo de um burocrata, o ensaio começava
explorando as formas transcendentais do tempo e do espaço e argumentava ser a
posse destas formas pelos animais um sinal de uma estrutura metafísica onde seria
sustentado, como um penduricalho de sacristia, o seu conceito de alma:
... “Sabemos haver em certos animais uma
precisa noção do tempo que ultrapassa em muito as determinações biológicas do
instinto, por exemplo, os gatos. Eles costumam marcar o seu território, em
relação aos outros gatos vizinhos, urinando nos limites desse território. São
capazes de deixar dentro dele um pedaço de alimento e sair por alguns
instantes. Nenhum outro gato ousa invadir esse território demarcado enquanto
persistir o cheiro da urina e, antes que esta marca expressiva desapareça, o
gato retorna revelando assim a noção exata de um intervalo de tempo, o tempo de
persistência das suas excreções. Os cães, por sua vez, possuem uma noção de
temporalidade enquanto sucessão e podem assim apresentar uma franja de
inteligência que nada mais é senão a inferência de causas e efeitos que a noção
de sucessão condiciona; se lançarmos um bastão de madeira em frente ao nosso
cão ele irá apanhá-lo e trazê-lo de volta. Ele entende sermos nós a causa do
bastão lançado e isto só é possível devido às suas inferências temporais ( os
gatos correm atrás de um novelo lançado ao seu lado mas não o trás de volta,
não lidam com relações de causa e efeito. O tempo para eles é matéria de uma
intuição e o intervalo está para a
intuição assim como a sucessão está para a inteligência)...”
O ensaio continuava com curiosos exemplos
de comportamento animal extraídos de fontes minuciosamente citadas. Por fim,
com excessiva modéstia, é descrito o insólito caso do seu cão Corneta, um caso
que delimitaria uma nova região para o pensamento, um empirismo superior onde
novas relações éticas entre homens e animais pudessem ser constituídas e
exploradas. Quando eu recebi uma cópia deste ensaio fiquei sensivelmente interessado
em conhecer este extraordinário animal que era Corneta, mas o curso de Biologia
que eu ministrava na universidade não me permitia uma viagem tão longa e lhe
escrevi prometendo tudo fazer para que o seu artigo fosse publicado e divulgado
nos meios acadêmicos. Não lhe avisei meses depois que o seu laborioso texto
fora motivo de severas críticas e de escárnio nos doutos lábios da
universidade. Estava decidido a ir visitá-lo nas férias de verão e lhe dar todo
o apoio possível na continuidade de sua pesquisa. Quando chegou a ocasião,
escrevi ao Dr. H. James manifestando o
desejo de repousar alguns dias em uma cidade serrana e a minha científica
curiosidade em conhecer o objeto de seus estudos. Recebi um telegrama como
resposta quando foi-me adiantado, com palavras generosas, parte do entusiasmo
que a minha presença causaria. Viajei em uma tarde de Domingo sem nenhum
sobressalto ou contratempos, deleitando-me com as pitorescas paisagens que a
janela do ônibus enquadrava feito uma câmera de cinema. H. James recebeu-me na
rodoviária da sua cidade e carregou a minha valise como se eu fosse um emérito
cientista e não um reles professor universitário, dogmático e mal remunerado.
Logo em frente ao portão da sua casa estava a personagem da nossa conversa dentro
do carro, o cão Corneta, um pouco mais velho e menos robusto do que eu o
imaginava, embora conservando ainda um grande vigor e a simpatia comum aos cães
da sua raça. H. James hospedou-me em um quarto contíguo ao seu ainda decorado
com os objetos da irmã que sempre o ocupava quando vinha visitá-lo. Às
primeiras manhãs entediadas, dediquei-me a escrever para meus filhos pequenos
um livro, “As aventuras de Scadufax”, o fantasma de um cão, morto durante um
assalto, ajudando o seu antigo dono, um detetive, a resolver mirabolantes
enigmas policiais. Quando meu anfitrião ficou a par deste meu passatempo os
seus olhos brilharam como se percebesse haver em mim um pouco da sua crença em
almas irracionais e, principalmente, por ser uma crença secreta ( não tão secreta
assim que não pudesse ser presumida nas entrelinhas do seu artigo) , devia
imaginar ser esta crença compartilhada entre nós dois por algum acorde
superior, a intersubjetividade monadológica que supostamente explicaria o
comportamento do seu animal, do ilustre hóspede que eu personificava e, quem
sabe, de todos os seres do planeta que tivesse alguma relação com a alma de H.
James. – Diante desta hipótese amplificada e do meu espírito absolutamente
afirmativo, eu só podia surpreender-me e exclamar: viva a paranóia! – Não
demorou muito para H. James me conhecer, confiar em mim e convidar-me para
observar a sagacidade do seu cão. A parede que dividia os nossos quartos, como
era costume nos casarões antigos do interior, não se erguia até a cobertura de
telhas e pairava um grande espaço entre ela e o alto telhado sustentado por um
longo cume horizontal. O proprietário sonhava em forrar os cômodos e construir
um sótão e o adiamento desse projeto fora providencial para o papel de
testemunha que me estava reservado. De manhã bem cedo, com o máximo de silêncio
possível, eu subia por uma escada de pedreiro apoiada na parede divisória,
podendo deste lugar avistar o panorama da sala e todo o quarto onde meu
anfitrião dormia. Fastidioso seria descrever o minucioso ritual daquele velho
celibatário. Acordava duas horas antes do seu horário de trabalho e entrava no
banheiro de onde saía molhado e envolto
em um roupão. Barbeava-se, apanhava a vetusta dentadura em um copo com água,
limpava os ouvidos com cotonetes, vestia várias peças de roupa, dava corda no
relógio, conferia papéis, despejava o café de uma cafeteira metálica...tudo
isso frente aos atentos olhos de Corneta deitado no tapete aos pés da cama;
seus últimos gestos era fechar a gaveta da escrivaninha, guardar a chave no
bolso, beijar a foto da esposa, apanhar a pasta e sair resoluto com passos
rangendo sobre o assoalho...incontinenti, Corneta se erguia do tapete, cruzava
veloz o quarto saltando a janela lateral e caindo sobre um canto do jardim. Em
seguida pulava o pequeno muro alcançando um beco que findava na rua transversal
onde o portão de saída se encontrava. Ali ele sentava-se sobre as patas
traseiras e com a língua arfando esperava pelo passeio com o seu dono; isto, é
claro, quando H. James ia de fato trabalhar pois, conforme observei
boquiaberto, quando o seu dono simplesmente simulava sair, Corneta não se movia
do tapete, apenas estendia a cabeça entre as patas e voltava a dormir. Durante
todos os dias de Dezembro, enquanto transcorriam minhas férias, acompanhei as
cenas matinais de H. James e em momento nenhum o cão deu sinais de
equivocar-se. Parecia conhecer os mais íntimos pensamentos do seu dono e por
mais que ele tentasse enganar o animal com variações gestuais, nada abalava a
impecabilidade de Corneta. Meu anfitrião chegou ao ponto de confessar-me,
durante um jantar, uma de suas burlescas hipóteses para aquele caso: havia,
segundo ele, o fantasma de um cão naquela casa, o pai de Corneta morto há
muitos anos atrás; seria este fantasma, pressentido não sem profundos arrepios
dentro do seu quarto, quem avisava Corneta sobre suas verdadeiras motivações.
Para me aterrorizar um pouco mais, ele apanhou uma velha foto onde se via o
pai, chamado Valente, cercado por filhotes, entre eles, um dócil cãozinho que
seria Corneta com seis meses de nascido. Para lhe mostrar que nada naquela
estória me assustava, resolvi brincar um pouco com o sisudo H. James. Segurei a
foto entre os dedos e lhe perguntei;
_ Este
cão era seu?
_
Claro que sim.
_ E
ele era o pai dos filhotes?
_
Evidente.
_
Então ele era “seu” e era “pai”; logo, ele era seu pai e você, irmão dos
filhotinhos! - H. James não gostou nem um pouco desta brincadeira e nossa
relação deteriorou-se um pouco.
No final das tardes e nos fins de semana, H.
James dedicava-se à redação de um livro de Etologia, ciência que anos de
estudos e de pesquisas fizeram dele um especialista. Manifestei o meu interesse
em ler o capítulo referente aos cães ( meu interesse maior naqueles dias era
encontrar inspiração e fatos para Scadufax, o cão fantasma do meu livro
interrompido). Como se adivinhasse a vilania das minhas intenções, ele
argumentava não estar o texto pronto ainda, afirmando, porém, ser
imprescindível um prefácio meu à primeira edição. Faltando poucos dias para o
fim das minhas férias, após o meu anfitrião Ter saído para o trabalho, eu
decidi olhar minuciosamente o seu quarto em busca de alguma pista elucidando o
mistério de Corneta; também me corroía uma crescente e incontrolável
curiosidade em ler as páginas de H. James guardadas na gaveta da sua
escrivaninha. Após olhar todos os ângulos do quarto, sentado no tapete para ter
uma noção do ponto de vista do cão e para justificar a mim mesmo o propósito
científico da minha intromissão em seu quarto, cedi à tentação e tentei abrir a
sua gaveta. Fiquei um pouco surpreso por encontrá-la trancada pois vagava em
meu espírito a impressão de estar a gaveta aberta. Voltei para o meu quarto e
resolvi, sem sucesso, reencontrar o fio da novela que escrevia para meus
filhos. Meu pensamento estava inquieto em busca da impressão visual
correspondendo à minha crença de estar a gaveta aberta. Por alguns instantes
acreditava ter visto H. James trancá-la ao sair, depois me convencia de que ele
somente retirava a chave sem dar a volta na fechadura. À noite, sem nada contar
a ele a respeito da gaveta para não levantar suspeitas sobre o meu interesse
nos manuscritos, pedi que não fosse trabalhar no dia seguinte, apenas
encenasse o seu teatro em frente ao cão.
A minha expectativa era que ele, nos dias em que não ia ao trabalho,
descontraía o seu espírito vigilante e, sem o temor de ser roubado por alguém,
uma vez que passaria a manhã dentro de casa, não trancasse a gaveta,
contentando-se, inconscientemente, em retirar o molho de chaves da fechadura; assim,
na manhã seguinte, eu talvez pudesse folhear rapidamente os manuscritos.
Debruçado no alto da parede na manhã combinada, a minha atenção se despreendeu
de todos os detalhes da cena habitual, apenas o gesto de apanhar as chaves e
fechar – ou não – a gaveta era-me relevante. Como eu presumia, H. James não
virou a chave na fechadura e saiu. Desci correndo a escada e tentei apanhar o
manuscrito no breve intervalo em que ele iria ao portão confirmar a ausência do
cão e voltar para casa. Minha intenção
era lê-lo no meu quarto e devolvê-lo antes dele retomar a redação. Ao tocar na
gaveta fui surpreendido pela reação de Corneta que rosnou para mim. Não apanhei
os manuscritos e viajei na madrugada do dia seguinte com a promessa de receber
em breve pelos correios uma cópia do seu livro. Abandonei definitivamente a estória do cão fantasma e, somente quando
estava dentro do ônibus, com o pensamento vagando na aurora insinuante sobre as
colinas, é que descobri, de chofre, o segredo de Corneta. Escrevi ainda no ônibus
o rascunho de uma carta explicando a H. James qual era o exclusivo detalhe em
todos os seus hábitos matinais que condicionava a saída ou a permanência do seu
cão do quarto de dormir, a saber, a volta que ele dava na chave quando ia sair de fato e que deixava de dar quando apenas simulava: um sintagma visual na leitura semiótica do cão que mudava completamente o sentido da cena! Elogiei a fidelidade do seu animal que sacrificava a
possibilidade de um agradável passeio em função da vigilância, o que era,
aliás, um dos mais admiráveis atributos desta raça. Guardei comigo a carta até
receber a cópia do seu livro temendo que a minha revelação viesse a constranger
a sua edição e, como esta cópia ainda não chegou, dois anos transcorridos,
ainda tenho comigo a estiolada carta. Quando penso naquele velho e gentil
senhor arrebatado por um problema mal formulado, consola-me pensar em Pôncio
Pilatos e em suas filosóficas palavras: “A verdade! O que é, afinal, a
verdade?”
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