Uma nova filosofia veio ao mundo no século
dezessete quando David Hume publicou o TRATADO DA NATUREZA HUMANA. Inspirado em
um vetusto adágio aristotélico-tomista: nihil est in intelectus quod prius non fuerit in sensu - nada se acha na
inteligência sem que antes se achasse nos sentidos -, este escocês
sensualista elege a experiência sensível como a prova de toque de todo o
conhecimento humano e, para todo pensamento apresentado em nossas mentes, irá
buscar a impressão sensível que o fundamenta e o legitima; assim a importância
do seu conceito de PERCEPÇÃO que compreende tudo o que se apresenta à mente,
seja uma sensação, um sentimento, lembranças ou reflexões. Este conceito
apresenta duas notas compreensivas: IMPRESSÕES e IDÉIAS. As primeiras são as
nossas percepções vívidas e fortes implicando a presença do objeto percebido;
as Idéias são essas mesmas percepções enfraquecidas e distantes da fonte (é
como se Hume, na velha tradição naturalista, pensasse as idéias como simulacros
e a subjetividade como uma rapsódica fantasmagoria subjugada por associações
destas impressões e idéias segundo princípios bem definidos de SEMELHANÇA,
CONTIGUIDADE e CAUSALIDADE). No enunciado de Hume:...We can never think of any thing which we have not seen without us, or
felt in our own minds - jamais podemos pensar em qualquer coisa que não
tenhamos visto fora de nós, ou sentido em nossas próprias mentes... - Sentimos bem a velha inspiração aristotélica de serem todos os nossos conceitos
oriundos da experiência, com a ressalva de ser a experiência, em Aristóteles,
um árido conceito tal a sua pobreza de exemplos.
Muitas vozes ergueram-se contra o empirismo na tentativa de preservar as
pretensões da razão humana em alcançar o conhecimento sem abandonar os
confortáveis gabinetes de uma vida sedentária, sendo famosas as CRÍTICAS
kantianas postulando a existência de formas A PRIORI (tais formas revelaram-se,
com o tempo um insólito decalque do empírico como páginas sulcadas e
sobrescritas de um bloco de notas). Séculos depois, nesta tradição, surge na Alemanha
uma escola de psicologia, a Gestalttheorie, afirmando a prioridade de formas
autônomas e absolutas em tudo o que percebemos, impressões e idéias incluídas;
esta escola, caudatária da fenomenologia, trazia uma novidade: a objetividade
das formas para além da matéria correlata e do transito subjetivo. O grande
exemplo de ontologia formal dessa escola psico-filosófica é a percepção musical
onde a forma melódica não se limita às notas que a compõem. Ela, a melodia,
conserva a sua identidade se todos os sons (sua matéria) forem modificados de
uma determinada maneira (por exemplo, em uma oitava); inversamente, se
mantivermos todas as notas, modificando apenas a altura (o tempo de sustentação
das notas, algo puramente formal), teremos uma melodia completamente diferente,
A melodia é um acontecimento que organiza gamas sonoras, uma hecceitas que
intenciona a consciência, um transcendental que, entretanto, não resiste à
prova de toque da experiência: basta ver a reação de uma criança, de um
primitivo ou de um beócio que percebe como estranhos ruídos uma erudita
composição de vanguarda.
A mais pertinente crítica a esta diferença de graus e identidade de natureza
entre idéias e impressões, postulada por Hume, encontra-se nas refinadas teses
de Henri Bergson quando este pensa a percepção como um misto de matéria e
memória. Entre os seus notáveis argumentos de refutação ao empirismo, Bergson
afirma textualmente: ...SE A LEMBRANÇA DE UMA PERCEPÇÃO NÃO FOSSE MAIS DO QUE
ESSA PERCEPÇÃO ENFRAQUECIDA, ACONTECERIA, POR EXEMPLO, TOMARMOS A PERCEPÇÃO DE UM
SOM LEVE COMO A LEMBRANÇA DE UM RUÍDO INTENSO; ORA, SEMELHANTE CONFUSÃO NUNCA
SE PRODUZ..., JAMAIS A CONSCIÊNCIA DE UMA LEMBRANÇA COMEÇA SENDO UMA PERCEPÇÃO
MAIS FRACA QUE PROCURARÍAMOS LANÇAR NO PASSADO APÓS TER TOMADO CONSCIÊNCIA DA
SUA FRAQUEZA( Matéria & Memória, pág. 196, ed. Martins Fontes). Muitas
vezes, entretanto, no silencio da madrugada e entregue aos devaneios que
antecedem ao sono, acontece-nos ter a impressão de ouvir u`a música distante e
por muito tempo não sabermos se tratar de um rádio ligado no apartamento
vizinho ou de sons ordinários sobre os quais projetamos uma vívida e melodiosa
lembrança. Neste momento, confundimos impressões fracas com idéias marcantes
mantendo-as como graus de uma mesmo fenômeno conforme os critérios humeanos.
Kant gostava de dizer que a filosofia de David Hume o havia acordado do seu
sono dogmático. Bergson, que insuflou a filosofia de sonho e poesia, não
acordou suficientemente; ainda sonolento, ele ouviu os sinos do empirismo inglês
e sobre ele projetou as formas de um LIEB
alemão...
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