Era noite de domingo, como esta em que escrevo, há quatro décadas passadas, na pequena cidade de Itambé, Bahia, em uma de suas praças municipais. Uma lenta, mas persistente aglomeração desenhava-se na calçada e bancos de concreto. Familiares, quando não famílias inteiras, vinham de suas casas, na cidade ou fazendas, para embarcar seus filhos no ônibus noturno que os levariam à capital, Salvador-Ba, onde estudavam. Naqueles dias não existia universidades no interior do estado e somente os mais abastados podiam custear um filho ou dois na capital, comendo pão com banana e arrotando caviar. Alguns, já universitários, ostentavam os costumes e modismos de então: fumavam, usavam roupas descoladas, gírias canhestras e peles bronzeadas de quem já incorporara o hábito das praias ensolaradas no fim de semana. Mas a maioria mesmo era composta de marinheiros de primeira viagem, estudantes secundaristas que iam concluir o ginásio e se prepararem para o famigerado vestibular. Era um verdadeiro ritual de iniciação e eles chegavam ao ponto de ônibus, frente a uma estreita agência de viagens, como se soldados embarcando para a guerra. Pelo menos era o que expressava os lacrimosos olhos das mães zelosas e irmãos caçulas, já em pijamas vestidos. Com eles vinham suas malas rudes, sem grife e caixas de isopor lacradas, cujo conteúdo podia-se adivinhar; linguiças gordurosas, requeijão, manteiga, biscoitos e doces caseiros, entre outras guloseimas que, com muita sorte e parcimônia, deveriam durar até à Semana Santa, quando estariam de volta para reverem os pais e renovarem o castigado forro das tripas. Era também, à luz do vigoroso e romântico luar do sertão, o cenário de outro drama menos ostensivo e mais dilacerante. A despedida, ainda que intermitente, dos casais de namorados, pois raros eram aqueles que mudavam-se juntos para a capital. A maioria desses casais sequer eram formados com o consentimento dos pais. Namoravam, por assim dizer, escondidos. Às vezes até os pais só vinham a saber dos amores dos filhos quando a garota aparecia grávida e era preciso então improvisar um casamento às pressas. Dizíamos nesses casos que haviam se casado “na totonha”. Assim sendo, poucos casais trocavam beijos e abraços na despedida, mas como os olhares faiscavam e dardejavam juras de amor! Era por isso, suspeito, que a lua ciumenta tanto brilhava sobre a lataria metálica do ônibus estacionado (o ciumento mesmo era eu, como logo saberão, mas sempre gostei de por a culpa de tudo nos astros!). Nesta noite, eu era um daqueles que não embarcaria, isto é, meu corpo continuaria a vagar pelas ruas solitárias e vazias da pequena cidade, mas meu coração tinha lugar e passagem marcada naquela chalana que, rumo ao mar, levaria consigo meu amor. E não seria apenas mais um caso de breve despedida. Nunca o é para quem ama. Dolores havia terminado comigo uma semana antes, e paranoicos ciúmes faziam-me crer estar ela com um novo namorado, um pústula e janota funcionário do Banco do Brasil. Este crapuloso talarico conseguiu transferência para a capital, onde iria trabalhar de dia e estudar à noite, com o sonho de se formar um dia veterinário e voltar para o seu torrão natal, com uma renca de filhos, muito provavelmente enxertados e emprenhados no ventre virginal da minha Dolores amada. Era preciso fazer algo e eu o fiz sem escrúpulos nenhum. A adolescência é a pré-história da vida e na pré-história não existia escrúpulos. Sabia da fama de glutão desse Don Juan, da sua avareza cavalar na hora da merenda no colégio e de sua conduta pantagruélica nas festinhas de aniversário. Inadvertidamente, ouvi em um grupo de colegas seu relato dos temores e perigos que o futuro lhe reservara na capital. Entre eles, sobremaneira, seu medo ao ter que dividir a geladeira com vários outros esfomeados estudantes em sórdidos pensionatos; em uma época onde frigobares portáteis e particulares era luxo de altos empresários e executivos do mercado financeiro. Foi o bastante para eu ter uma genial ideia - um dia irei a um psicólogo para saber por que só tenho ideias geniais para o que não presta - : datilografei um bilhete supostamente assinado por uma madrinha dele, providencialmente viajando de férias com a família, e o coloquei em sua caixa de correspondência. No bilhete, ela aconselhava o seu afilhado a se prevenir de alguns perigos da vida na capital, como usar xerox autenticada dos documentos ao circular pela cidade, usar pasta d'água como protetor solar nas praias, olhar sempre se o elevador estava no andar ao abrir a porta e outras frivolidades pescadas das conversas cotidianas que eu ouvia dos amigos soteropolitanos. Finalizando o bilhete, contava-lhe um truque infalível para proteger os víveres e iguarias da sanha implacável dos ratos de pensionado. Ele deveria se apresentar como estudante de química por correspondência ou empregado de algum laboratório e aplicar sobre todos os frascos e embalagens de alimentos um rótulo escrito, em esferográfica preta sobre esparadrapo branco, com nomes de produtos químicos de suposta e fatal letalidade. Ninguém ousaria malinar tão indigesta mercadoria. Não deu outra. Não me recordo agora como fiquei sabendo, mas Márcio Braulino, este era o nome do ladrão de mulheres, mordeu a isca e sapecou nos potes de comida os mais assustadores títulos: pergamanato de chumbo no vasilhame de requeijão, sulfato de antimônio no garrafão de leite gordo, óxido de benzedrina na lata de suspiros, percloro de efedrina nas cocadas, Nitrato de Estrôncio na coalhada... Uma verdadeira e portátil usina química encaixotada em um simpático isopor lacrado com fita crepe! Vaidoso, ele mesmo fizer a questão de alardear esta sua mirabolante estratégia, assim como inflava-se todo ao desfilar na piscina ao lado da sua nova namorada, a minha amada Dolores. Na noite da viagem, ele estava especialmente insuportável por conta, evidentemente, dos meus ciúmes, pois não era que o sortudo iria viajar na poltrona ao lado da nossa adorada musa colegial? Confirmei isto ao subir no ônibus, por um pretexto qualquer, e ver ele encaixar no porta-malas sobre os assentos o seu estimado isopor, bem ao lado da poltrona dela! O Sibarita era tão guloso que optou por transportar a mala no bagageiro do ônibus e carregar seu farnel ao lado do corpo, ao contrário dos outros passageiros. Isto facilitaria tanto os meus planos que tomei com um sinal dos céus, embora vê-los juntos como duas rolas no pombal atingia meu peito como os espinhos do inferno atingindo Ugolino, de Dante Aligheri. Sob acenos nas janelas, apertos de mãos comovidas e últimos e repetidos conselhos de pais aflitos, o ônibus prateado partiu feito uma carruagem nupcial. Hora de controlar os sentimentos dilacerantes _ Dolores, nem se despediu de mim! - e pôr em prática o meu vingativo plano. Com as chaves de uma agência telefônica gerenciada por um cunhado e surrupiadas às escondidas, dirigi-me a uma das suas cabines com o número anotado do posto da Polícia Rodoviária Federal, na BR Rio-Bahia, por onde o ônibus trafegaria, assim que alguns passageiros embarcassem na Rodoviária de Vitória da Conquista. Eu iria informar aos policiais de plantão a presença naquele ônibus de um perigoso e desesperado rapaz, portando explosivos dentro de uma caixa de isopor, disfarçados de alimentos e capazes de mudar o curso da viagem para os quintos do inferno. Para reforçar o pânico nos policiais, iria ler para eles um suposto e manuscrito bilhete onde o suicida explicava suas intenções e motivos para se despedir da vida e levar tantas outras com ele. Talvez nem precisasse deste bilhete, os rótulos e o insólito fato de estar o isopor ao seu lado, ao contrário de todos os outros que priorizavam as malas, bastando para a sua detenção, retirando-o do ônibus, coberto de vergonha, e antes que Dolores adormecesse e inclinasse sua jubilosa cabeleira nos ombros do galã rural, cheirando à Lancaster e à Trés Bruit de Marchand, na época considerados com a expressão vulgar de “Perfumes de Nigrinha”. Segurei o fone fora do gancho, disquei os três primeiros números, mas não tive coragem. Fraquejou o meu bom e pacífico coração ferido. Hoje, surrado e humilhado pela vida, se uma mulher me trair, eu a corto toda de navalha, feito um corno furioso das peças teatrais de Shakespeare, mas outrora, quando a vida me sorria e a juventude era um sol de ternura aquecendo o meu peito, sempre que alguém me tratava com perfídia, eu relevava e pensava no tanto de coisas maravilhosas que a vida me acenava na partida para o futuro. Coisas que ainda não aconteceram, mas, enquanto sonhos e esperanças, tiveram sobre mim um efeito benfazejo e notável!
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