quinta-feira, 26 de abril de 2018

FOI UM CIRCO QUE PASSOU EM MINHA VIDA e Meu Coração se Deixou Levar!




 Serei breve nesse apontamento, pois recordações dolorosas são como parentes pobres que ficam indefinidamente em nossas casas se dermos muita trela e acolhimento.

Invejo quem foi feliz no primeiro amor. Eu não o fui. Calhou-me apaixonar por uma linda garota de um circo, Diana, o nome dela. Era filha do dono do circo Moscou com uma trapezista. Queria ela ser trapezista também e passava a tarde inteira ensaiando nos fundos do circo, usando um maiô rosa e lindos cabelos, loiros e soltos, que pareciam asas quando ela se dependurava lá no alto, sorrindo para mim que segurava temerariamente a corda de proteção. Eu gazetava aulas enfadonhas e ia para os fundos do circo ajudar nas tarefas em troca de ingressos ao espetáculo da noite! Ali me familiarizei com a grande família de artistas circenses e, como relatei acima, me apaixonei pelo anjo que via rodopiando entre nuvens no alciôneo céu de minha terra, quando segurava a corda em cuja extremidade ela evoluía em piruetas mágicas e mirabolantes. Se for verdade que o amor tem mesmo uma origem celestial, foi exatamente nesta posição, olhando para o alto e para o infinito, que me apaixonei. O resto é pieguice e chorumelas, exceto se eu fosse um romântico alemão, o que não é o caso. Passemos aos fatos: embora sem intimidades físicas – coisa, aliás, para o qual nossos púberes corpos não estavam ainda prontos – ela parecia corresponder ao meu amor e vivíamos intensas trocas de olhares, toques acidentais e apertos de mãos que me transportavam às alturas muito superiores ao trapézio onde ela aspirava brilhar. Por conta desse amor entre nós, eu decidi fugir de casa e seguir com o circo onde, uma vez descoberto debaixo das lonas em outra cidade, seria logo adotado por uma nova família e iniciado nos segredos do mágico Zalmox, a grande atração do circo e que eu sonhava imitar! Esse era o plano simples e genial traçado por duas crianças apaixonadas. Juntei minhas roupas, livros, um pião e meu canivete dentro de uma fronha de travesseiro e pulei o muro de casa, sob a lua cheia, grande olho indiscreto, e os ganidos do meu cão que quase me fizeram desistir da aventura. Enfiei-me então debaixo das lonas dobradas do circo, horas antes da partida rumo à cidade de Porto Seguro e ali fiquei com o coração palpitando de medo, susto e paixonite. Diana havia me oferecido uma garrafa de água e um cobertor. Era como se uma imperatriz do planeta Ming me houvesse ofertado as chaves da cidade imperial! Viajei por um tempo indefinido, olhando para o céu por uma fresta do encerado e vendo passar as nuvens como uma espécie de mapa-múndi com o roteiro das aventuras que me esperavam por um mundo perigoso e desconhecido. Antes de ler Huckberry Finn, eu já o encarnava, embora fossem ao mágico Mandrake e sua amada princesa Narda, minhas identificações naquele instante. Um instante, lamento confessar assim de modo tão abrupto, profundamente fugaz. Em nossa primeira parada, na cidade de Itamaraju, Sul da Bahia, fui descoberto pelo motorista do caminhão e entregue ao dono do circo, pai de Diana. Fui severamente admoestado (me recordo de ser interrogado por todos ao lado da jaula do leão Trovoada e do palhaço Pirulito e urinei de medo em minhas calças curtas, sem saber qual dos dois mais me assustava naquele instante) e tive que informar o número do nosso telefone. O comboio seguiu viagem e apenas o dono ficou no posto de gasolina esperando meu pai vir me resgatar. Não me recordo como passei o longo dia naquela sórdida rodoviária, mas acho que o medo da repreenda antecipada consumia minha imaginação febril e me fazia um pouco esquecer o meu amor desaparecido para sempre na boleia do caminhão onde fui feliz por algumas horas, quando já me achava um aprendiz de mágico e namorado oficial da filha do proprietário. Era quase fim do dia. O dono do circo andava de um lado para o outro da pista, ansioso à espera do meu pai. Suas imprecações aumentavam a cada hora e enchia-me com nomes e palavrões em espanhol que a metade eu mal conseguia pronunciar, quanto mais saber o significado. Eu tremia de medo dele perder as estribeiras e me dar uma surra ali mesmo, antes de me abandonar ao relento na beira da estrada. Eu pensava em sua filha Diana e continha as lágrimas, pois temia que, no futuro, ele fosse interrogado por ela a meu respeito e ele lhe contasse que eu era uma manteiga derretida, um maricas chorão! Eu amava tanto a Diana que conseguia gostar do pai dela, em uma espécie de síndrome de Estocolmo de contrabando!
Enfim, chegaram quando já escurecia: meu pai, um tio meu, um motorista e um policial, a se prevenir de alguma esparrela. A cena parecia uma troca de reféns. Trocaram um breve aperto de mão, olhares ameaçadores pra mim, e logo se despediram. Mal consigo me recordar da viagem de volta. Acho que, providencialmente, apaguei e dormi sob uma pressão psicológica acima do que uma criança de nove anos poderia suportar. Acordei no outro dia, com o sol à pino e, durante o café da manhã, recebi a sinistra notícia de que havia sido matriculado no Internato Colégio Paulo Egydio, na distante cidade de Jaguaquara-Ba, uma instituição fundada por padres e imigrantes italianos em cujas dependências aprontei algumas artes que um dia, prometo, narrarei e pedirei perdão. Resumo dizendo que passei ali um semestre horroroso, mas também auspicioso demais, no sentido que a distância de casa e da minha paixonite me fizeram amadurecer com a espantosa velocidade que nesta idade nos assombra, e logo é esquecida! Quando voltei para casa, oito meses depois, nas férias de fim de ano, parecia que tudo havia mudado. Parecia apenas, pois, acreditam vocês, passou um carro na nossa rua, com um autofalante preso no teto, anunciando nada mais nada menos do que o Circo Moscou em uma nova e eletrizante temporada! No mesmo instante, feito Hans Solo contemplando o holograma da Princesa Leia no centro de uma cabana, pareceu-me ver a imagem de Diana bailando em um trapézio na cumeeira do meu quarto, pendurada na viga e sorrindo pra mim os raios de sol que desciam pelas frestas das telhas e atiçavam os grãos de amor e orgon no ar, que um cético chamaria de poeira! Eu continuava amando-a, e muito mais, pois o meu coração, conforme descrevi sub-repticiamente, estava crescendo! Nem esperei a estreia do Circo. Corri até o campo de futebol onde eles armavam a lona e o picadeiro, para vagar no local, disfarçado debaixo da minha boina, achando que ninguém iria ver-me, assim como uma avestruz se acha camuflada por enterrar o pescoço em um buraco. Foi quando ouvi a cristalina voz de Diana me chamar! Minha alma virou, mas o corpo não, dando-me um torcicolo na pineal que trago até hoje! Senti ela se aproximar e tocar o meu ombro!
_ Como foi que você conseguiu escapar aquele dia na estrada? Liguei para o número que você passou (aliás, minha mãe fez isso após eu insistir muito), e disseram que você estava em um colégio interno, bem longe! Não quiserem dizer o nome!
_ Estava, sim, mas conseguir fugir de lá! – Menti para passar a impressão de aventureiro que ingenuamente achava ser o que havia lhe conquistado. Crível até, considerado ser ela uma criatura circense e nômade! Conversamos mais um pouco. Eu a olhava embriagado. Como ela ficara mais linda em menos de um ano! Tentei pegar em sua mão, mas ela recusou. Senti que algo muito grave havia rompido o cristal feérico onde vivíamos, onde conjugávamos nossa imaginação e o medo comum de um futuro incerto e perigoso. Despedi-me sem querer soltar sua mão da minha, como se sua mão fosse um trapézio e eu fosse cair em um abismo sem ela. Voltei à noite para o espetáculo de estreia e logo descobri o porquê do seu distanciamento. Contaram-me na saída que ela estava noiva do palhaço Caçulinha, filho do palhaço oficial, mas isso eu descobri bem antes que me contassem, pois eles se cruzavam nos bastidores e de lá assistiam ao espetáculo de mãos dadas e se beijavam (imaginei que ela o fizesse isso de modo ostensivo para me mandar uma mensagem lá dentro dos bastidores, para me dizer, com gestos, o que não pode ou não quis me dizer com palavras). Desta vez os fatos doeram mais do que na primeira vez, quando fui abandonado por todos no fundo do caminhão fedendo a mijo. Antes eu acreditava que ela me amava e que a separação em nada mudaria o seu amor por mim. Agora era esse próprio amor que chegara ao fim. O amor, quando não mais correspondido, se transforma em outra coisa, feito um fruto maduro que, separado da árvore, apodrece e murcha. O meu apodreceu naquela mesma noite, transmutado em ódio contra Diana, seu namorado palhaço e todo o circo que um dia me prometeu fazer de mim um artista e que hoje zombava com escárnio dos meus infortúnios. Comecei a planejar uma vingança, sem saber que meu ódio era também uma afirmação de uma vida oposta pela qual o desprezo me empurrara: doravante eu iria ser um rapaz sério e disciplinado, seguir nos estudos e cedo procurar um trabalho, abraçando um estilo de vida incompatível com os sonhos de liberdade, aventuras e ilusões que o circo representava. Era o circo dentro de mim que eu precisava extirpar. Por isso minha sanha em planejar uma vingança exemplar, para além da natural perversidade e sadismo das crianças passionais. Dormi espumando de mágoa e, fermentada nos sonhos, uma ideia genial me aconteceu pela manhã. Bastou alguns minutos na cama para ela se desdobrar feito um filme que eu via projetado nas cortinas encardidas me separando do sol do outro lado da janela. Corri ao galpão onde meu pai guardava seus apetrechos de caça e encontrei duas focinheiras que ele usava nos seus cães de caça. Em casa de um tio meu, na vizinhança, consegui mais uma. Era o bastante. O dia inteiro, um pachorrento domingo de vida besta no interior e foi relativamente fácil realizar o meu plano. O primeiro cão que roubei veio a ser o do prefeito, um mestiço vira-lata com pastor alemão chamado Bolero, e que vivia na porta do açougue, fuçando as grades fechadas sem saber que era domingo. Joguei a laçada no pescoço e o conduzi sorrateiro para uma cabana abandonada na beira do rio Verruga, atrás da Serraria Porvir. Ali o deixei comer o pedaço de carne que usei como isca, e ele deixou-me por a focinheira após o repasto. Amarrei Bolero em canto da cabana, junto com uma lata d’água e sai em busca de mais duas vítimas. Tive que pular o muro de uma costureira para roubar o cão de sua filha paraplégica, um lindo e manso filhote de dálmata, repetindo os procedimentos e o terceiro, o mais difícil, um labrador gordo e atrofiado, xodó dos filhos do gerente do Banco do Brasil, que tive que atrair para o fundo do mercado vazio, oferecendo quase um quilo de carne em pedaços, até ele ficar longe de qualquer olhar. O apanhei entre os braços, quase sem conseguir carregar, e o coloquei na prisão improvisada. Passava do meio-dia quando conseguir realizar minha proeza e fui almoçar como um anjo que tivesse voltado da missa, silencioso como são silenciosos quem comunga da Santa Hóstia! Findo o dia, já alta madrugada, voltei ao esconderijo para alimentar os cães presos. Retirei a coleira do filhote de dálmata e levei para casa onde a banhei em sangue de galinha ate o couro ficar escuro e ensopado. Durante toda a segunda, acompanhei os comentários das pessoas à procura de seus cães. Seus donos estavam desesperados e a pobre filha paraplégica da costureira nem estava mais conseguindo falar. Ficou traumatizada com o desaparecimento do seu totó! Esperei ansioso pela terça-feira quando planejava disparar o desfecho do meu plano. Tão logo escondi a coleira ensanguentada atrás da grade do leão Trovoada, saí de casa em casa informando ao povo que o pai de Diana, o mágico do circo, furtara os cães no domingo para, com eles, alimentar o leão faminto. Fui tão enfático ao travestir minha mágoa de amor em piedade canina que todos acreditaram no meu testemunho, e logo havia uma turba de moradores indignados marchando em direção ao circo para tomar satisfação. Foi um rebu na porta do circo. Comerciantes, idosos, crianças voltando da escola e pais de família revoltados aglomeravam-se na porta chamando-os de assassinos. O ódio secular e atávico contra ciganos, ladrões de gado, mascates, contra todo modo de vida errante que existe no coração dos sedentários, aflorou em dimensões sociopatas. O dono do circo tremia e gaguejava tentando provar sua inocência, mostrando recibos de compra de ossos no açougue e jurando nunca ter feito tal coisa, mas o povo relutava em acreditar. Queriam seus animais a qualquer preço! O clímax, o rastilho de pólvora aconteceu quando eu, transitando entre as pernas dos adultos, me aproximei da jaula e gritei para que todos viessem ver: eu havia encontrado a prova do crime. Mostrei pra eles, tremendo de satisfação ao provar do mel da vingança, a coleira ensanguentada do pobre animal devorado.
A costureira avançou sobre o troféu pendurado na ponta de uma vara que usei para fisgar a peça, como se de uma prova criminal se tratasse. A pobre mãe deu um grito e gritou quase desmaiando:
_ POMPOM! POMPOM! Comeram você, meu amor! Minha filha nunca vai me perdoar por isso! Ela sempre me culpa por tudo! -
E caiu de joelhos, em prantos, segurando a coleira do seu pobre animal.
Não vi mais como tudo transcorreu. Quando percebi, o povo já quebrava os trailers, cortava as amarras da lona e lançavam para o alto as cadeiras da plateia. Enfurecida e descontrolada, as famílias dos donos dos cães começaram a incendiar os encerados, ou foi algo incidental, não sei precisar nem o inquérito posterior foi capaz de identificar. Em pouco tempo as chamas se alastraram e o fogo começou a subir triunfal para o alto dos mastros centrais, querendo informar ao mundo inteiro que ele agora reinava. Diante das consequências imprevisíveis e da dimensão da tragédia anunciada, os ânimos se alteraram, como dois ingredientes incompatíveis que o fogo houvesse cozinhado em uma harmônica fornada: os dois grupos, moradores e artistas do circo, que então se engolfavam em escaramuças, pauladas e tapas, agora se uniram para controlar o fogo abominável. Egoísta e paranoico – nessa idade tudo que nos acontece faz parte de um filme pessoal – eu via nessa mutação um reflexo do meu rancor voltando a ser de novo um amor encantado, pois, no interior da azáfama, entre bicicletas gigantes de uma roda só, malabares coloridos, calhambeque de palhaço e falanges de roupas penduradas a secar, crepitando sobre o fogo, ouvi a voz do anjo Diana gritando meu nome. Ela correu o meu encontro e me abraçou. Ficamos ali por uma eternidade, tudo em volta se desenrolando em câmera lenta, o rugido do leão Trovoada agoniado entre as labaredas próximas da sua jaula a contrapor com as lágrimas de Diana no anfiteatro da minha alma! Senti de novo que ela me amava! O mundo voltou a ser um lugar respirável! Mas não durou muito. Ela se afastou de mim e me perguntou:
_ Osvaldo! Você viu Osvaldo? Estou preocupada! –
Osvaldo era o nome do palhaço Caçulinha. Ela o amava. Via-se isso na sua expressão de desespero. O remorso que eu iria sentir pelos próximos 40 anos e que já começara a se instalar no meu coração feito as estacas de um circo que começa a se levantar me fez entregar os pontos. De relance eu vi o rapazote escondido atrás da jaula, tremendo de medo e passando baldes de água que uma fila indiana transportava do poço até as lonas onde o fogo teimava em dar seu espetáculo. Apontei-lhe seu namorado. Ela me olhou hesitando. Eu a empurrei em direção a ele:
_ Vá! Vá ajudá-lo. Ele é seu namorado. Eu vou para casa. Serei o seu palhaço fora do circo e se um dia você se cansar dessa vida, venha me procurar!
Meus olhos estavam marejados de impotentes lágrimas. Quatro décadas são o suficiente para eu saber que aquela menina doce e seráfita jamais desceria das alturas para viver com um tolo misto de psicopata e palhaço! Voltei sorrateiro para o esconderijo e soltei os cães que voaram para suas casas. O circo e a cidade fizeram as pazes e ficaram todos unidos. Tudo não passara de um mal entendido e um grande espetáculo gratuito foi encenado pra comemorar a nova aliança entre os nômades e os sedentários. Eu não fui. Fiquei do lado de fora ouvindo a fanfarra, as gargalhadas. Deitado sobre a grama eu contemplava as estrelas de brilho furioso e já planejava outras jornadas, outras aventuras! Que venham sempre outras aventuras, e mais, mais, mais... 


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