Meados dos anos setenta. Na TV e cinemas de todo o país explode a onda Disco com John Travolta levando as adolescentes à histeria coletiva dançando seus Saturday Night’s Fevers.
Garoto pobre do interior, como eu poderia resistir a tal febre? Imediatamente cortei o cabelo no estilo topetudo de Tony Manero, adotei camisas acetinadas e usava sempre uma indefectível blusa de malha jogada sobre os ombros. Andava pelas ruas de Itambé imitando toscamente o caminhado de meu ídolo, aquele rebolado de bunda dura, gingando o corpo com pequenos e imperceptíveis pulinhos ao levantar a perna. XUUUUUU-cesso! (Pelo menos, assim eu acreditava!). Um dia, passando pela porta da casa do prefeito Humberto Lopes, uma de suas filhas olhou para mim e comentou com suas amigas para todos ouvirem:
_ HUM! HUM! HUM! JOHN TRAVOLTA DOS POBRES!!!
Porque será que pobres odeiam tanto serem chamados de pobres? Aquilo me doeu profundamente como um tiro no coração da minha vaidade. Voltei pra casa abatido, feito um branco de neve cujo feitiço houvesse se desfeito nas escadarias de um palácio hollywoodiano! Depois de muito cismar, esbocei uma vingança. Na época eu já gostava de filosofia e passava horas na biblioteca do Colégio dos Padres, o Gilberto Viana, devorando embolorados livros de Teologia Católica e filosofia. Escrevi então uma carta ao Bispo Dom Climério, em Salvador, relatando a cena jocosa com a filha do prefeito e apresentando a seguinte argumentação: Segundo Aristóteles (usei São Tomás de Aquino, óbvio, pois este abraçava a filosofia do estagirita e emprestava auras de santidade aos seus argumentos), existe duas modalidades de substâncias no mundo, a Substância primeira e a Substância segunda. As primeiras, os indivíduos e as coisas (pragmas) são aquelas apreendidas pela nossa sensibilidade. O Real é individual, dizia o Santo, composto de substâncias primeiras, esta casa, esta pedra, aquela mulher..., a outra modalidade de substância, substância segunda, era os sujeitos lógicos encontrados na linguagem e, diferente da primeira, necessariamente coletiva e universal. A casa, a pedra, a mulher... Podem ser tratadas como universais e servir de atributos para definir substâncias primeiras. Podemos dizer “aquela construção serve de casa”, “o que quebrou a vidraça foi pedra”, "Gorette é mulher". Em compensação, as substâncias primeiras nunca podem ser predicadas de outras substâncias, nunca posso dizer “Ser racional é Gorette” (só se eu estiver invertendo e usando de floreios para dizer o correto “Gorette é um ser racional”) ou “a durabilidade é essa pedra”... De modo taxativo, não podemos usar um indivíduo físico, uma substância primeira, para definir uma substância segunda, um gênero. A lógica exige que os gêneros mais universais sejam sempre usados para definir os menos universais, partindo do gênero supremo até chegar à espécie ínfima e, finalmente, à substância primeira que, por sua vez, não pode mais definir nada, apenas servir de exemplo. Na carta ao bispo eu expliquei com mais delongas, bem ao estilo escolástico. Aqui, vos pouparei dessas cavilações e vou direto ao desfecho. Aleguei ao bispo que, ao me chamar de “John Travolta dos pobres”, a beócia havia usado de uma substância primeira como gênero, ferindo com isso as regras do Corpus Aristotelicum, algo que poderia ser perdoado, mas que poderia também indicar a presença de um espírito perturbador na mente da relapsa, pois, segundo o filósofo, os vícios de linguagem são os primeiros sinais de uma alma depravada e a sabedoria do homem de Deus é justamente se antecipar aos males incubados e cortá-los pela raiz! Eu sonhava ver a esdrúxula sendo julgada em um tribunal inquisitório e depois arder dentro de uma fogueira na Praça Pública da cidade, enquanto eu gargalharia ouvindo seus gemidos de dor dentro das labaredas. Até agora, mais de trinta anos transcorridos, não obtive resposta do Bispo, mas sei que virá. Os moinhos de Roma moem lentos, mas nenhum grão escapa!
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