Peraltices
da infância são como joias falsas que uma astuta senhora mistura com uma ou
outra joia verdadeira em sua canastra para disfarçar e protege-la da sanha de
empregadas ladras. Talvez o leitor um dia encontre alguma peraltice de valor
literário entre meus escritos; provavelmente esta, não! As tardes ociosas de
uma criança no interior se assemelham à eternidade em duração e em tédio, para
quem não sabe teologia ou música, as únicas atividades nela permitidas. Sem ter
o que fazer, certo dia eu e meu primo Pedro Rucas resolvemos por em prática um
plano já minuciosamente elaborado: capturar um peru do vizinho Zózimo e levá-lo
para uma famosa cozinheira, chamada Durvalina, que iria assar a iguaria para
nós, quando então, durante os bailes de fim-de-semana, iríamos convidar os
amigos para o acepipe no final da noite, angariando, antecipadamente, elogios,
prestígio, mimos e até, ingenuamente pensávamos, o afeto das meninas ao nos
verem cercados de puxa-sacos e bajuladores durante o baile. O plano era tão simples
que o explico já narrando como acontecera, tipo um mapa do exato tamanho de um
território que basta abrir o papel sobre as colinas, montanhas e planícies para
cada coisa cair exatamente sobre a coisa representada, casas sobre casas,
árvores sobre árvores, cancelas sobre cancelas. Nosso vizinho criava perus no
pátio lateral da sua residência e apenas um muro manchado por copiosas chuvas
separava nossos quintais. O instrumento do crime era simplório e eficaz: uma
corda com um laço na extremidade era enfiada dentro de um longo e resistente
cano de PVC, ficando só a laçada para fora. Do alto do muro, sorrateiros e
sibilando um doce chamado para as aves famintas, jogava-se o laço que, tão logo
envolvia o pescoço da ave, era vigorosamente puxado. A cabeça da vítima ficava
presa e asfixiada na ponta do cano, por dentro do qual a corda retesada era
puxada com força. Enforcado com um gordo Luis XIV, o animal era içado em solene
silêncio, salmodiado por uma rezinga lúgubre de pios mochos, vinda das outras
aves aterrorizadas com o espetáculo. Agora começava a festa! O banquete e a
ostentação criminosa! Nossa ingênua cozinheira caprichava nos temperos e
guarnições. A farra era homérica e, ébrios, devorávamos o pobre e saboroso peru
nas madrugadas tépidas de Itambé-Ba, sob a vasta concavidade das noites
siderais! Abreviei esse relato, pois que a ele outro viera se juntar: um
apontamento em um caderno escolar desta época onde eu registrava pensamentos em
uma espécie de diário sentimental: nesta época eu havia lido em alguma
enciclopédia que os cisnes, próximos de morrer, entoavam um canto sublime e
arrebatador, sem paralelos com nada nesse mundo além do mitológico canto das
sereias. Rezava o mito que a audição desse canto era uma sensação tão
maravilhosa que, por todo o resto da sua vida, o ouvinte privilegiado
carregaria consigo uma lembrança capaz de atenuar todas as dores e infortúnios
dessa vida, um bálsamo, um elixir feito de sortilégio e encanto só compreendido
por quem teve a graça de ouvi-lo. Ouvir esse canto, assim, tornou-se
imediatamente para mim uma obsessão, naquela idade onde disputamos com os
amigos para ver quem sonha mais alto, quem é capaz de desejar as coisas mais
impossíveis. Imaginem, portanto, a minha felicidade quando soube que a
prefeitura de Vitória da Conquista, cidade vizinha da que eu morava na época,
havia comprado um casal de cisnes e os mantinha soltos, no lago da Praça
Tancredo Neves, centro da cidade. Uma tia minha morava bem em frente e eu
cuidei logo de planejar um fim de semana em sua casa, quando então iria
realizar o meu sonho, mesmo ao preço monstruoso de sacrificar, se preciso
fosse, o belíssimo e caro animal. Hospedado no quarto de visitas, cuja janela
se abria para uma rua lateral, era possível desta, avistar uma nesga da praça e
um canteiro de lírios e nenúfares dentro do lago onde o majestoso casal de
cisne singrava. Apaixonei-me pelo animal tão logo vi. Pela primeira vez não
tive vontade de comer a carne de uma ave por mim admirada. Era seu esotérico
canto a minha obsessão e para tal aluguei de um sonoplasta da antiga Radio
Clube, um imenso microfone com o qual pretendia gravar o canto da ave,
enforcando-a no mesmo fio que iria transmitir seu peã de despedida para um
gravador nas margens do lago. Era um plano macabro e de uma simplicidade
originalíssima! O único obstáculo era o vigia! Fleumático, pontual e de um zelo
memorável, foi preciso lhe oferecer um sanduíche com um calmante para ele ser
vencido e adormecer sobre um banco em frente ao lado, feito um Proteu cansado
de tantas metamorfoses na gruta de suas ninfas! Percebendo que, após devorar o
acepipe, ele não falava nem ouvia mais nada, declinei vagarosamente o seu corpo
sobre o banco e o observei até sua respiração chiar como uma criança em sono
profundo.
Imediatamente
entrei vagaroso na água gelada do lago artificial e deslizei margeando as
bordas limosas e cobertas pelas sombras das palmeiras até me aproximar de um
deslumbrante cisne a dormitar com a cabeça enterrada nas níveas plumagens do
peito. Acostumado a laçar novilhas nas fazendas do Marçal, joguei o fio do
microfone da marca Nagra (a marca então predominante no mercado profissional de
sonoplastia) e na primeira tentativa enlacei o régio pescoço que estremeceu e
tentou escapar, o que acabou por facilitar mais ainda o ajuste do fio preto em
torno do seu pescoço de neve. Exceto a acústica e uma leve microfonia no
gravador ligado dentro de uma moita, e o ruído residual de um ronco distante do
vigia dopado, o silêncio sepulcral era a tônica. Até a lua se escondeu atrás de
uma nuvem escura para não ver o estrupício. Apertei com toda a força do meu
braço esquerdo o laço no pescoço do cisne, para lhe estrangular, enquanto, com
a mão direita, encostei o microfone para registrar o esperado e mitológico
canto da morte. O cisne de olhos azuis abriu o bico e tentou sem sucesso emitir
um som. Afrouxei o laço tremendo de emoção e então ouvi a coisa mais inesperada
naquela situação. Do bico do cisne saiu a seguinte exclamação:
_ Largue-me, seu psicopata de aves! Sou primo do peru de Zózimo que vc matou lá
em Itambé e devorou com os amigos! Fique sabendo que minha carne é dura como
tijolo e dá sete anos de azar a quem a come!
Acordei
de um salto! Estava dormindo e tudo não passara de um sonho, muito
provavelmente nascido de alguma indigestão ornitológica! Tão impressionado
fiquei que não consegui dormir mais. Para esperar o dia nascer, apanhei minhas
tintas e uma tela e pintei a imagem deste cisne, ou o que parece ser um, antes
que a imagem do bicho se apagasse da memória. Esta imagem que ilustra este
conto é a tela que pintei então. Ainda hoje, duas décadas passadas, ainda
lamento profundamente ter perdido essa tela, quando, em uma de minhas
incontáveis mudanças na cidade de Salvador, deixei-a aos cuidados da Drª Vera
Príncipe, médica veterinária da UFBa, e dali se extraviou definitivamente. Quem
me dera se algum leitor, um dia venha a dar-me notícias desta pintura
despretensiosa, mas de estimação! Milagres acontecem!
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