Corria
o ano de 1975. Os estudantes da cidade de Itambé viviam em polvorosa
com uma gincana a movimentar toda a comunidade. Minha equipe, da sétima
série ginasial, no Colégio Polivalente, era uma das favoritas. As
tarefas se alternavam entre arrecadação de gêneros alimentícios e
doações para a população pobre e brincadeiras jocosas,
tipo trotes e “pegadinhas”.
Naquele fatídico domingo, a missão era:
CAPTURAR UM URUBU-REI (um abutre da cabeça branca máis próximo de um
condor do que propriamente de um urubu) E TRAZÊ-LO VESTIDO COM CAMISA DO
FLAMENGO. Valia 100 pontos a extraordinária missão e com ela
ganharíamos a gincana. Um velho caçador nos deu a dica: tal abutre era
mais comum do que se pensava. Sua aparente raridade se devia,
simplesmente, ao fato dele ser o primeiro a abordar a presa –nenhum
outro ousa comer antes dele. Entretanto, ele só come o ânus do animal
morto, um pedaço frugal do intestino grosso e, em seguida, se afasta com
repulsa, deixando o resto do banquete para os urubus comuns. Assim
sendo, bolei um estratagema genial (na época eu era mesmo um gênio. Quem
não o é aos 12 anos de idade?): corremos ao curtume, onde animais
mortos eram escalpelados para industrializar o couro, e conseguimos um
cadáver de um velho burro morto naquela mesma e fria madrugada.
Evisceramos o animal, deixado intacto apenas o exterior e o ânus,
obviamente.
O plano era por o animal no meio do pasto com um heroico e
abnegado colega nosso dentro do ventre do cadáver. Assim que o urubu
comesse o ânus e enfiasse a cabeça dentro em busca do repasto visceral,
seria agarrado pelo pescoço e dominado até que o resto da equipe viesse
em seu auxílio. Meu amigo Charlinho, hoje vereador em Itambé, colega de
muitas artes inenarráveis, foi escolhido para ser esse herói. Fomos para
um ermo capão na zona rural e prontamente a armadilha foi preparada.
Sem dificuldades, o magro e astuto Charlinho entrou no ventre do burro
morto (o fedor era terrível) e ali dentro se alojou. Costuramos a
abertura com uma grossa linha de sapateiro e deixamos o pacote lá na
beira da rodagem, perto de uma velha aroeira em flor. Com um binóculo, à
cerca de três quilômetros, embaixo de um boqueirão, nos revezávamos
espreitando o cenário. Urubus começaram a voar em círculos, em um
pútrido cerimonial.
Em menos de uma hora, vimos se aproximar ele, o
cara, o rei do pedaço, seu arubu-rei da cabeça mais alva do que a do
prefeito de Vitória da Conquista, tio Guiga! Seu passo majestoso, suas
asas abertas levantando poeira na estrada de terra seca, seu piado
melancólico ainda hoje frequentam minhas lembranças como um augúrio,
como uma sombra na minha sorte! Logo começou suas bicadas no cu do burro
morto. Charlinho a essa hora, se não estivesse já cozido pelo calor
feito um recheio de chouriço dentro de uma porca assada, iria em breve
ter visitas. Pelo binóculo possante, vi o animal monstruoso enfiar a
cabeça no cu do burro. Em seguida, sem poder retirar, começou a bater as
asas com sofreguidão! CHARLINHO HAVIA CONSEGUIDO! BRAVO! MENINO SECO
MACHO CABRA DA PESTE! Corremos em polvorosa, aos berros de motivação,
derrubando tudo e prontos para abafar o comedor de cu das alturas, a
esse hora com o pescoço preso nas mãos ossudas de Bolachão (sub-apelido
carinhoso de Charlinho!), Acontece porém, que o animal era muito forte
e, nos estertores para se libertar, conseguia prodigiosamente arrastar o
burro morto com nosso colega dentro por uma lateral da estrada onde
endurecidas ondulações no tereno – chamadas de costelas de vaca –
fizeram um estrago, como pudemos constatar depois, nas costelas do nosso
pobre amigo sacolejando lá dentro feito abóbora a caminho da feira, sem
contudo largar o pescoço do caçador em caça transformado. Jogamos uma
lona sobre o animal esbaforido, eu e mais cinco colegas: Joelisa, Ivana,
Gilberto, Mauro babau e Dori Bittencourt. Charlinho gritou lá de dentro
algo incompreensível. Cortamos a linha, abrimos o ventre e retiramos o
nosso querido colega em um estado deplorável, vermelho de suor, quase
asfixiado, cheio de manchas nas costas – que depois inchariam em
hematomas – e com pedaços de carniça fedorenta grudados no rosto, cabelo
e pescoço! Quase o carregamos nos ombros como um troféu mais valioso do
que condor enrolado na lona.
Chegamos em casa e já passava do meio dia.
Não almoçamos. Tomamos um banho, vestimos o urubu-rei com uma camisa do
Flamengo de alguém que já não me lembro quem, e corremos para o
auditório do Cine Fox onde ficava a comissão da gincana. Fomos os
primeiros. Ganhamos a tarefa, os pontos e fomos campeões. O resto do dia
fora de fuzarca e comemorações, hostilizando os membros das equipes
derrotadas. Durante a noite, exausto e com o corpo todo moído, tive um
sonho muito estranho.
Sonhei que o urubu-rei estava sentado na cabeceira
da minha cama e falava comigo com uma voz gutural de um dragão. Dizia
estar muito triste pois conhecia o espírito vingativo e rancoroso do meu
amigo Charlinho e sabia que, assim que acordasse e visse os hematomas,
iria sair em busca de vingança, não descansando enquanto não lhe
cortasse a cabeça fora. E olha que quase conseguiu. E dizendo isso,
mostrava-me o pescoço roxo dos apertos que levou, pedindo-me que
passasse a mão no local e sentisse o couro inchado dos garguelos que
levou! Findou por me ameaçar dizendo que, caso morresse, iria azarar a
minha vida para sempre. Acordei suando frio. Profundamente impressionado
com a vivacidade do sonho, se é que fora mesmo um sonho ou um aviso
profético. Não comentei nada. Tomei café e rumei diretamente para a casa
de Charlinho. Ele estava, de fato, quase inválido com o tamanho dos
hematomas.
Fora logo me perguntando quem ficara encarregado de soltar o
urubu e logo senti nele a sanha vingativa anunciada no sonho que tive.
Desconversei. Felizmente ele estava impossibilitado de sair em busca do
condor maldito. Iria ficar em sua companhia o dia todo impedindo que ele
fizesse besteira. Escondi a espingarda do pai dele em cima do
guarda-roupas e convidei-o a jogar cartas. Depois almoçamos, vimos
seriados na TV, lemos gibis e recordamos a aventura do dia anterior
registrando tudo em um caderno velho que era o nosso diário de
travessuras e de onde copio esse episódio. (Outro amigo da turma, Mauro
Babau, ficou com um desses cadernos onde eu escrevia nossas histórias e
deixou sumir, o cornin!). Como não gostava muito de ler, Charlinho
findou por adormecer. Relaxei, por fim! Agora era deixar ele ferrar no
sono. Isso daria tempo a ave soturna de se escafeder pelos sétimos céus
do sertão. Fechei os olhos e tentei dormir um pouco também, quando fui
acordado pela histérica irmã de Charlinho que entrou esbaforida no
quarto, segurando um pano de cozinha e, dentro dele, a imensa cabeça de
um urubu-rei decepada e ainda sangrando! Aos gritos, ela contou que
estava alisando os cabelos no quintal quando caiu do céu, bem sobre o
seu pote de alisante, a cabeça monstruosa do animal que ela reconheceu
ser a mesma do rapace vesperal. Colocou sobre a mesinha do quarto e saiu
atônita em busca da mãe deles que só vivia na casa dos outros. No mesmo
instante, Charlinho acordou e comentou semi embriagado de sono e
prazer:
_ Tive um sonho muito estranho! Sonhei que estava lá perto do boqueirão. Encontrei o urubu maldito que quse me aleija as costelas e consegui cortar a cabeça dele com meu facão! Eu era capaz de voar, meu facão parecia uma espada e o bicho era igual a um dragão! Huia! Disgraça!
Mal terminou de dizer isso, viu a cabeça ensanguentada
sobre o pano e desmaiou. Mais forte que ele, mas também atordoado pelo
nonsense e pelo macabro de tudo aquilo, dei de vomitar sobre o pano. Por
mórbida coincidência, naquele dia havíamos almoçado um prato típico do
local, pescoço de peru com macarrão grosso e hortelã. Os pedaços de
pescoço com macarrão que vomitei sobre a cabeça do abutre formaram um
dos mais dantescos e repugnantes momentos do meu imaginário, nem quero
mais continuar com essa história tal o nojo que voltei a sentir, de mim,
do vômito, do urubu... De tudo! Charlinho que me perdoe por eu ter
revelado aqui o motivo dele ser um cabra tão azarado e eu, tão sortudo!
Fiz a minha parte!
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