terça-feira, 7 de junho de 2016

MAFALDA, A VIRGEM e SEUS FILHOTES QUE FUÇAM E RONCAM!



Quando retornei do Rio de Janeiro para Salvador, ocioso como um peixe em um aquário, resolvi abrir um consultório de psicanálise e institucionalizar meus pendores de vigarista.

Não demorou muito para aparecer minha primeira paciente, Mafalda, uma senhora da minha pachorrenta cidade do interior do estado, Itambé, prima de uma antiga professora minha, que me achava um gênio, sem saber que todas as notas dez que eu tirava no colégio se deviam ao furto das provas pela empregada da professora, mediante um tipo de pagamento que não posso contar aqui, agora. Ela acreditou nos diplomas pendurados na parede da sala que eu dividia com outro escularápio e me contou seus pesadelos. 

Sonhava recorrentemente que estava dormindo e acordava com uma imensa árvore lhe saindo pela boca. Nos galhos desta árvore, dúzias de bebês enrolados em coloridos panos-de-bunda, chorando tão alto que ela acabava por acordar de fato, com o berro dos bebês sonhados, jamais conseguindo olhar direito as feições e os detalhes daquela imagem tão dilacerante! Hipnotizei-a pela metade, induzindo um relaxamento e sugestionando-lhe imagens na esperança de que uma acertasse e lha convencesse de qualquer explicação plausível capaz de fazê-la abrir a bolsa e pagar os meus almoços da semana. Sem que eu chegasse a invocar algo tão preciso, ela mesma me contou de um pesadelo de sua infância, quando engolia o caroço de alguma fruta, e suas babás a torturavam dizendo que ela iria dormir e nascer uma árvore de dentro de sua goela omnívora e bestial. Entretanto, a maneira tão trivial e desdenhosa com a qual ela narrava esse episódio me fazia entender que esta explicação não lhe convenceria de ser a causa do seu sonho, pois a sensação de pesadelo neste era muito mais intenso e pavoroso do que a que ela sentia diante do susto das babás. lembrava-se muito bem de como ela ia dormir gargalhando com a ideia tola de nascer-lhe uma árvore pelas tripas afora. 

Era preciso outra explicação e eu comecei a ficar desesperado por não a encontrá-la. Foi quando me calhou a lembrança com ela compartilhada de um famigerado médico da nossa cidade natal, o Drº Bandeira, um médico ginecologista de alta estatura, espadaúdo, sempre com um cigarro na boca e homem de poucas palavras. Providencialmente, lembrei-me de sua irmã, minha professora, durante as bancas (aulas particulares de reforço) narrarando o pânico que ela e a irmã Mafalda, minha atual paciente, sentiam quando foram, ainda adolescentes, fazer um exame com esse ginecologista, tão logo tiveram a primeira menarca. Drº Bandeira tinha fama de ser um tremendo aborteiro, tendo um longo histórico de casos, onde mocinhas aflitas e embaraçadas, pelos fundos do seu consultório, entravam furtivas para expulsar de seus corpos os inconvenientes filhos do erro e do pecado. Foi tudo que eu precisava para ter um insight providencial: não me fora difícil imaginar Mafalda adolescente, indo fazer seu exame ginecológico, e sendo aterrorizada pelos rumores de então. Usando de palavras de duplo sentido, o povo se referia ao médico como um fazedor de anjos e Mafalda bem que podia ter ouvido alguém dizer que ele iria arrancar um anjo de dentro da barriga dela, feito esses mágicos dos circos de lona furada que por Itambé passavam, retirando coelhos da cartola e com palhaços retirando calçolas do fundo de uma caçarola! Inventei para Mafalda uma falsa teoria freudiana, a de que a mulher também possuía um velado complexo de castração, algo meio que coadjuvante na estrutura da psique humana, tipo o complexo de Electra que, nas mulheres, evoca o lendário complexo de Édipo e reforça a tese freudiana de ser a mulher uma cópia do homem, fiel à sua - nossa - tradição judaizante. Pois bem, Mafalda possuía o medo de ser castrada tendo seu útero arrombado e dele retirado todos os óvulos, todas as SEMENTES ali por Deus depositadas para gerar os filhos que iriam dar sentido e valor ao futuro reservado às jovens noivinhas do interior! Os trabalhos do sonho, nome que Freud usava para explicar os mecanismos psíquicos da nossa mente adormecida, tem por missão modificar o real conflito recalcado no inconsciente, também chamado de conteúdo latente, em formas e sentidos, por mais absurdos que sejam, capazes de frequentar os salões dos nossos sonhos, travestidos e disfarçados em coisas que o nosso superego não consegue recalcar por não ter deles o verdadeiro significado, o que chamamos de conteúdo manifesto! No caso da Mafalda, o medo da sexualidade emergente, feita no imaginário de defloramentos, sangue, dores no coito e dores do parto, somado aos temidos abortos que o Drº Angélico viria a praticar nela durante a consulta, tudo isso deve ter gerado em sua mente adolescente um temor sinistro. Na impossibilidade destes temores invadirem nus e grotescos o átrio da sua consciência moralista de moça recatada e puritana, seu inconsciente se aproveitou de outro medo ali alojado, quase uma comédia e uma farsa, o picaresco receio de lhe nascer uma árvore pela boca após engolir um amendoim sem mastigar! Usando desse artifício melindroso, ela projetou nos sonhos, de um modo traumático - pois tais sonhos são traumáticos justamente por não sabermos do que realmente se trata, e o trabalho do analista ser nada além o de “pocar” a bolha do verdadeiro sentido inflamado dentro da alma -, os seus complexos de castração, seu medo de perder a fertilidade, no medo pueril de nascer uma árvore pela boca, fazendo com que essa árvore, florada e carregada de bebês gorduchinhos e chorões, expressasse de contrabando a vitória da fertilidade sobre a ameaça personificada pelo Drº Bandeira! BINGO! 

Acertei em cheio e o alívio que ela sentiu ao aceitar essa minha interpretação “ad hoc”, foi qualquer coisa de indescritível! Pareceu rejuvenescer vinte anos, sorriu para mim e para as paredes e quase me pagou o combinado, só não o fazendo por um miserento e infortunado detalhe: Eu sou a cara, cuspido e cagado, do antigo Dr Bandeira (quem é de Itambé e o conheceu, pode confirmar isso)! Mafalda acreditou tanto que o médico escularápio era a causa de todos os seus anos de infértil infelicidade (ela não se casou e era o que antigamente se chamava de Titia ou “moça solteira”) que imediatamente começou a ver em mim a personificação do seu algoz e sumiu do meu consultório, prometendo voltar no outro dia e desaparecendo sem dar bandeira! 

Como vingança, descrevi o seu caso falseando os sintomas, como Freud adorava fazer, dizendo que no seus sonhos, a árvore era cheia de porquinhos grunhindo, bacorinhos com cabeça de gente e rabo de porco, expressando suas fantasias animalescas de ser punida pelo hábito medonho que possuía de fazer sexo com os leitões, na vida solitária que levava na fazenda como uma eterna solteirona. Publiquei em uma revista prestigiosa da capital e lhe enviei pelos Correios um exemplar com o subtítulo que escrevi do próprio punho: MAFALDA, A VIRGEM e SEUS FILHOTES QUE FUÇAM E RONCAM!
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