Quando retornei do Rio de Janeiro para Salvador, ocioso como um peixe em um aquário, resolvi abrir um consultório de psicanálise e institucionalizar meus pendores de vigarista.
Não demorou muito para
aparecer minha primeira paciente, Mafalda, uma senhora da minha
pachorrenta cidade do interior do estado, Itambé, prima de uma antiga
professora minha, que me achava um gênio, sem saber que todas as notas
dez que eu tirava no colégio se deviam ao furto das provas pela
empregada da professora, mediante um tipo de pagamento que não posso
contar aqui, agora. Ela acreditou nos diplomas pendurados na parede da
sala que eu dividia com outro escularápio e me contou seus pesadelos.
Sonhava recorrentemente que estava dormindo e acordava com uma imensa
árvore lhe saindo pela boca. Nos galhos desta árvore, dúzias de bebês
enrolados em coloridos panos-de-bunda, chorando tão alto que ela acabava
por acordar de fato, com o berro dos bebês sonhados, jamais conseguindo
olhar direito as feições e os detalhes daquela imagem tão dilacerante!
Hipnotizei-a pela metade, induzindo um relaxamento e sugestionando-lhe
imagens na esperança de que uma acertasse e lha convencesse de qualquer
explicação plausível capaz de fazê-la abrir a bolsa e pagar os meus
almoços da semana. Sem que eu chegasse a invocar algo tão preciso, ela
mesma me contou de um pesadelo de sua infância, quando engolia o caroço
de alguma fruta, e suas babás a torturavam dizendo que ela iria dormir e
nascer uma árvore de dentro de sua goela omnívora e bestial.
Entretanto, a maneira tão trivial e desdenhosa com a qual ela narrava
esse episódio me fazia entender que esta explicação não lhe convenceria
de ser a causa do seu sonho, pois a sensação de pesadelo neste era muito
mais intenso e pavoroso do que a que ela sentia diante do susto das
babás. lembrava-se muito bem de como ela ia dormir gargalhando com a
ideia tola de nascer-lhe uma árvore pelas tripas afora.
Era preciso
outra explicação e eu comecei a ficar desesperado por não a encontrá-la.
Foi quando me calhou a lembrança com ela compartilhada de um famigerado
médico da nossa cidade natal, o Drº Bandeira, um médico ginecologista
de alta estatura, espadaúdo, sempre com um cigarro na boca e homem de
poucas palavras. Providencialmente, lembrei-me de sua irmã, minha
professora, durante as bancas (aulas particulares de reforço) narrarando
o pânico que ela e a irmã Mafalda, minha atual paciente, sentiam quando
foram, ainda adolescentes, fazer um exame com esse ginecologista, tão
logo tiveram a primeira menarca. Drº Bandeira tinha fama de ser um
tremendo aborteiro, tendo um longo histórico de casos, onde mocinhas
aflitas e embaraçadas, pelos fundos do seu consultório, entravam
furtivas para expulsar de seus corpos os inconvenientes filhos do erro e
do pecado. Foi tudo que eu precisava para ter um insight providencial:
não me fora difícil imaginar Mafalda adolescente, indo fazer seu exame
ginecológico, e sendo aterrorizada pelos rumores de então. Usando de
palavras de duplo sentido, o povo se referia ao médico como um fazedor
de anjos e Mafalda bem que podia ter ouvido alguém dizer que ele iria
arrancar um anjo de dentro da barriga dela, feito esses mágicos dos
circos de lona furada que por Itambé passavam, retirando coelhos da
cartola e com palhaços retirando calçolas do fundo de uma caçarola!
Inventei para Mafalda uma falsa teoria freudiana, a de que a mulher
também possuía um velado complexo de castração, algo meio que
coadjuvante na estrutura da psique humana, tipo o complexo de Electra
que, nas mulheres, evoca o lendário complexo de Édipo e reforça a tese
freudiana de ser a mulher uma cópia do homem, fiel à sua - nossa -
tradição judaizante. Pois bem, Mafalda possuía o medo de ser castrada
tendo seu útero arrombado e dele retirado todos os óvulos, todas as
SEMENTES ali por Deus depositadas para gerar os filhos que iriam dar
sentido e valor ao futuro reservado às jovens noivinhas do interior! Os
trabalhos do sonho, nome que Freud usava para explicar os mecanismos
psíquicos da nossa mente adormecida, tem por missão modificar o real
conflito recalcado no inconsciente, também chamado de conteúdo latente,
em formas e sentidos, por mais absurdos que sejam, capazes de frequentar
os salões dos nossos sonhos, travestidos e disfarçados em coisas que o
nosso superego não consegue recalcar por não ter deles o verdadeiro
significado, o que chamamos de conteúdo manifesto! No caso da Mafalda, o
medo da sexualidade emergente, feita no imaginário de defloramentos,
sangue, dores no coito e dores do parto, somado aos temidos abortos que o
Drº Angélico viria a praticar nela durante a consulta, tudo isso deve
ter gerado em sua mente adolescente um temor sinistro. Na
impossibilidade destes temores invadirem nus e grotescos o átrio da sua
consciência moralista de moça recatada e puritana, seu inconsciente se
aproveitou de outro medo ali alojado, quase uma comédia e uma farsa, o
picaresco receio de lhe nascer uma árvore pela boca após engolir um
amendoim sem mastigar! Usando desse artifício melindroso, ela projetou
nos sonhos, de um modo traumático - pois tais sonhos são traumáticos
justamente por não sabermos do que realmente se trata, e o trabalho do
analista ser nada além o de “pocar” a bolha do verdadeiro sentido
inflamado dentro da alma -, os seus complexos de castração, seu medo de
perder a fertilidade, no medo pueril de nascer uma árvore pela boca,
fazendo com que essa árvore, florada e carregada de bebês gorduchinhos e
chorões, expressasse de contrabando a vitória da fertilidade sobre a
ameaça personificada pelo Drº Bandeira! BINGO!
Acertei em cheio e o
alívio que ela sentiu ao aceitar essa minha interpretação “ad hoc”, foi
qualquer coisa de indescritível! Pareceu rejuvenescer vinte anos,
sorriu para mim e para as paredes e quase me pagou o combinado, só não o
fazendo por um miserento e infortunado detalhe: Eu sou a cara, cuspido e
cagado, do antigo Dr Bandeira (quem é de Itambé e o conheceu, pode
confirmar isso)! Mafalda acreditou tanto que o médico escularápio era a
causa de todos os seus anos de infértil infelicidade (ela não se casou e
era o que antigamente se chamava de Titia ou “moça solteira”) que
imediatamente começou a ver em mim a personificação do seu algoz e sumiu
do meu consultório, prometendo voltar no outro dia e desaparecendo sem
dar bandeira!
Como vingança, descrevi o seu caso falseando os sintomas,
como Freud adorava fazer, dizendo que no seus sonhos, a árvore era cheia
de porquinhos grunhindo, bacorinhos com cabeça de gente e rabo de
porco, expressando suas fantasias animalescas de ser punida pelo hábito
medonho que possuía de fazer sexo com os leitões, na vida solitária que
levava na fazenda como uma eterna solteirona. Publiquei em uma revista
prestigiosa da capital e lhe enviei pelos Correios um exemplar com o
subtítulo que escrevi do próprio punho: MAFALDA, A VIRGEM e SEUS
FILHOTES QUE FUÇAM E RONCAM!
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