Era um jardim noturno, nos fundos de uma edificação pública, com bancos de cimento e uma fonte sem água composta por um sonolento cupido nu e uma pia de mármore roto, quase obscena. Uma luz fria, de contrabando por entre galhos copiosos de árvores mal podadas, filtrava os resíduos de uma fina chuva de agosto, sobre o piso de cimento de folhas secas salpicadas. Feito uma vírgula perdida entre proustianos períodos de uma interminável página, um morcego crocitava, girando em círculos não-euclidianos e fremindo o espesso ar com o pútrido veludo de suas asas. Na extremidade de um corredor entre as leiras de plantas ornamentais e vulgares, um resto de fogo ardia dentro de uma lata com papéis e gravetos, provavelmente acesa por um mendigo que ali esquentara alguma sopa aguada, sem se preocupar em apagar as chamas. Estas, tão logo consumiam o ar dentro da lata, deixando-o rarefeito, eram alimentadas pela pressão atmosférica ao redor, que fazia o ar renovado entrar pelas frestas do zinco machucado, quase assoviando e insuflando novamente a labareda, em uma conspiração universal entre o ar, o fogo e a superfície ao qual este adere e consome. Pensei na vida como aquela chama consumindo meus dias e cuspi na lata, apagando o fogo e, talvez, tentando apagar também tão medíocre metáfora. Apesar disso era leve a atmosfera após a chuva como um sonho onde nada de importante acontece. Recordo-me de que as impressões de uma dia inteiro na praia, ainda vibravam em meu espírito e parecia emprestar sua luz solar e sua algazarra ao pequeno cenáculo onde eu andava, distraído, após ter corrido por quase dois quarteirões a fugir de um assaltante e de sua ameaçadora faca afiada (podia ver o brilho dela, ao olhar para trás, na mão do meliante gritando que eu parasse, que se eu fugisse iria ser pior!). Agora, no escuro e discreto jardim eu me sentia seguro após ter despistado o marginal correndo por entre os carros. Estive ofegante por alguns momentos, bem passageiros, em seguida me percebi suado, com grossas gotas escorrendo pelas costas e braços. Um cheiro forte se fez sentir de minhas axilas, cheiro acre típico e desagradável. Lembrei-me de um período de minha vida em eu fui vegetariano, ficando sem comer carne por três anos consecutivos. Guardei desta época a impressão muito forte de não ter suores fétidos, por mais intensa que fosse minhas atividades físicas de então. Transpirava como qualquer pessoa normal, mas sem cheiro nenhum nas axilas. A carne em nossa alimentação é a verdadeira e exclusiva causa dos suores fétidos. Isso acontece por conta de um secreto mecanismo de adaptação e sobrevivência dos mamíferos. Uma proteína em nossos músculos, quando digeridos, libera um substrato de forte e encorpado cheiro, para que, espalhado no ar quando o predador se desloca, possa avisar aos outros mamíferos do lugar da sua iminente e mortal presença. É por isso que os felinos fedem tanto sendo obrigados a caçarem sempre no sentido contrário ao vento em relação a sua presa, para que este não leve até o rebanho os sinais da sua presença. Aqui podemos perceber como de fato são os genes que coordenam a evolução, pois, mesmo após morto o herbívoro, sua carne ainda pode ser instrumento de mecanismos evolutivos que sirvam ao interesse dos genes da espécie, o indivíduo sendo apenas um artifício entre um DNA e o próximo. A galinha só existe para que o ovo se eternize e nessa repetição eterna prevaleça sobre qualquer indivíduo a espécie! Algo semelhante acontece nos nossos gestos extremados de altruísmo. Aquele dia na praia um senhor havia se atirado ao mar com roupa e tudo para salvar uma adolescente que se afogava, debatendo entre as pedras e fortes ondas. Por mais que se julgue um herói, quem o fizera flertar com a morte, se jogando ao mar encapelado para salvar a menina, fora o pacote de instintos herdados da sua carga genética, que nos predispõe a sermos bons com o próximo em perigo, pois os interesses da espécie quase sempre sobressaem sobre o interesse do indivíduo. Recordo-me que o assaltante fedia quando partiu pra cima de mim com sua lancinante lâmina. Cogitei até, tão logo o perigo ter passado, que talvez tivesse sido mais sensato não ter fugido (ele poderia ter me atirado a faca nas costas, feito aqueles atiradores de circo – embora seja falso aquele número circense, pois as facas já estão todas previamente enterradas na roda de madeira onde gira a pobre assistente (também falam que ela, a corista que se submete ao martírio das facas, é sempre a esposa do atirador, para emprestar emoção e tragédia à farsa). Um dispositivo de molas, acionado por outro e escondido assistente, faz a faca despontar para fora do buraco com um som abafado no exato instante em que o atirador lança o punhal que, preso no seu pulso por um laço, volta para dentro da manga da sua camisa. Observem como estes números sempre ocorrem com luz mediana e tentem se lembrar se de fato viram a faca cruzar o ar! – e ter dado a ele, o assaltante, o dinheiro que trazia no bolso. Fico pensando o quanto dessa minha sensata ponderação não seja um reflexo de algum instinto que nos estimula a não reagir aos bandidos e dividir com ele o que temos, uma presença corrompida em nós de outrora inexoráveis impulsos altruístas como a do senhor que se jogou ao mar para salvar a náufraga. Como eu não estava tão convicto disso a ponto de voltar o percurso que me levara até aquele ignoto jardim em busca do assaltante para lhe prestar os tributos devidos pela generosidade que caracteriza a espécie humana – o medo da faca também faz parte de outro poderoso instinto, o de sobrevivência do indivíduo -, resolvi procurar o suposto mendigo que ali havia esquentado o seu jantar e lhe oferecer o que restou do meu maço de cigarros. Na época eu vivia torturado pela ideia de parar de fumar e tudo era pretexto para eu me desfazer dos maços que comigo carregava. Não cheguei a andar dois metros em direção ao fundo escuro do jardim quando, feito uma onça perfumada, um assaltante armado, uma náufraga desesperada, uma fatalidade, você, a mulher da minha vida, que até então eu nem desconfiava da existência, saindo de trás de uma moita, mas também de uma lúcida onda da praia que inundava minha memória de então, tal qual uma Vênus dourada de Boticelli, você apareceu na minha vida como um destino... E estragou tudo!
A FERA NA SELVA - uma póstuma e simplória homenagem ao mestre Henry James!
Era um jardim noturno, nos fundos de uma edificação pública, com bancos de cimento e uma fonte sem água composta por um sonolento cupido nu e uma pia de mármore roto, quase obscena. Uma luz fria, de contrabando por entre galhos copiosos de árvores mal podadas, filtrava os resíduos de uma fina chuva de agosto, sobre o piso de cimento de folhas secas salpicadas. Feito uma vírgula perdida entre proustianos períodos de uma interminável página, um morcego crocitava, girando em círculos não-euclidianos e fremindo o espesso ar com o pútrido veludo de suas asas. Na extremidade de um corredor entre as leiras de plantas ornamentais e vulgares, um resto de fogo ardia dentro de uma lata com papéis e gravetos, provavelmente acesa por um mendigo que ali esquentara alguma sopa aguada, sem se preocupar em apagar as chamas. Estas, tão logo consumiam o ar dentro da lata, deixando-o rarefeito, eram alimentadas pela pressão atmosférica ao redor, que fazia o ar renovado entrar pelas frestas do zinco machucado, quase assoviando e insuflando novamente a labareda, em uma conspiração universal entre o ar, o fogo e a superfície ao qual este adere e consome. Pensei na vida como aquela chama consumindo meus dias e cuspi na lata, apagando o fogo e, talvez, tentando apagar também tão medíocre metáfora. Apesar disso era leve a atmosfera após a chuva como um sonho onde nada de importante acontece. Recordo-me de que as impressões de uma dia inteiro na praia, ainda vibravam em meu espírito e parecia emprestar sua luz solar e sua algazarra ao pequeno cenáculo onde eu andava, distraído, após ter corrido por quase dois quarteirões a fugir de um assaltante e de sua ameaçadora faca afiada (podia ver o brilho dela, ao olhar para trás, na mão do meliante gritando que eu parasse, que se eu fugisse iria ser pior!). Agora, no escuro e discreto jardim eu me sentia seguro após ter despistado o marginal correndo por entre os carros. Estive ofegante por alguns momentos, bem passageiros, em seguida me percebi suado, com grossas gotas escorrendo pelas costas e braços. Um cheiro forte se fez sentir de minhas axilas, cheiro acre típico e desagradável. Lembrei-me de um período de minha vida em eu fui vegetariano, ficando sem comer carne por três anos consecutivos. Guardei desta época a impressão muito forte de não ter suores fétidos, por mais intensa que fosse minhas atividades físicas de então. Transpirava como qualquer pessoa normal, mas sem cheiro nenhum nas axilas. A carne em nossa alimentação é a verdadeira e exclusiva causa dos suores fétidos. Isso acontece por conta de um secreto mecanismo de adaptação e sobrevivência dos mamíferos. Uma proteína em nossos músculos, quando digeridos, libera um substrato de forte e encorpado cheiro, para que, espalhado no ar quando o predador se desloca, possa avisar aos outros mamíferos do lugar da sua iminente e mortal presença. É por isso que os felinos fedem tanto sendo obrigados a caçarem sempre no sentido contrário ao vento em relação a sua presa, para que este não leve até o rebanho os sinais da sua presença. Aqui podemos perceber como de fato são os genes que coordenam a evolução, pois, mesmo após morto o herbívoro, sua carne ainda pode ser instrumento de mecanismos evolutivos que sirvam ao interesse dos genes da espécie, o indivíduo sendo apenas um artifício entre um DNA e o próximo. A galinha só existe para que o ovo se eternize e nessa repetição eterna prevaleça sobre qualquer indivíduo a espécie! Algo semelhante acontece nos nossos gestos extremados de altruísmo. Aquele dia na praia um senhor havia se atirado ao mar com roupa e tudo para salvar uma adolescente que se afogava, debatendo entre as pedras e fortes ondas. Por mais que se julgue um herói, quem o fizera flertar com a morte, se jogando ao mar encapelado para salvar a menina, fora o pacote de instintos herdados da sua carga genética, que nos predispõe a sermos bons com o próximo em perigo, pois os interesses da espécie quase sempre sobressaem sobre o interesse do indivíduo. Recordo-me que o assaltante fedia quando partiu pra cima de mim com sua lancinante lâmina. Cogitei até, tão logo o perigo ter passado, que talvez tivesse sido mais sensato não ter fugido (ele poderia ter me atirado a faca nas costas, feito aqueles atiradores de circo – embora seja falso aquele número circense, pois as facas já estão todas previamente enterradas na roda de madeira onde gira a pobre assistente (também falam que ela, a corista que se submete ao martírio das facas, é sempre a esposa do atirador, para emprestar emoção e tragédia à farsa). Um dispositivo de molas, acionado por outro e escondido assistente, faz a faca despontar para fora do buraco com um som abafado no exato instante em que o atirador lança o punhal que, preso no seu pulso por um laço, volta para dentro da manga da sua camisa. Observem como estes números sempre ocorrem com luz mediana e tentem se lembrar se de fato viram a faca cruzar o ar! – e ter dado a ele, o assaltante, o dinheiro que trazia no bolso. Fico pensando o quanto dessa minha sensata ponderação não seja um reflexo de algum instinto que nos estimula a não reagir aos bandidos e dividir com ele o que temos, uma presença corrompida em nós de outrora inexoráveis impulsos altruístas como a do senhor que se jogou ao mar para salvar a náufraga. Como eu não estava tão convicto disso a ponto de voltar o percurso que me levara até aquele ignoto jardim em busca do assaltante para lhe prestar os tributos devidos pela generosidade que caracteriza a espécie humana – o medo da faca também faz parte de outro poderoso instinto, o de sobrevivência do indivíduo -, resolvi procurar o suposto mendigo que ali havia esquentado o seu jantar e lhe oferecer o que restou do meu maço de cigarros. Na época eu vivia torturado pela ideia de parar de fumar e tudo era pretexto para eu me desfazer dos maços que comigo carregava. Não cheguei a andar dois metros em direção ao fundo escuro do jardim quando, feito uma onça perfumada, um assaltante armado, uma náufraga desesperada, uma fatalidade, você, a mulher da minha vida, que até então eu nem desconfiava da existência, saindo de trás de uma moita, mas também de uma lúcida onda da praia que inundava minha memória de então, tal qual uma Vênus dourada de Boticelli, você apareceu na minha vida como um destino... E estragou tudo!
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