A maior parte de nossos
sonhos é momentânea, isto é, dura o tempo em que transcorrem os eventos
sonhados, frações de segundos, minutos, meia hora? Entretanto, há raros sonhos
em que o tempo dilata-se por longos períodos, meses, anos, vidas talvez, sem que
tenhamos que sonhar todas as cenas. É como se adquiríssemos, ao sonhar, um
suplemento de memória, uma memória sonhada, se assim podemos dizer. Um exemplo:
sonhamos andar de bicicleta com uma amiga. Ela se adianta e desaparece em uma
curva da estrada. Quando voltamos a reencontrá-la, quilômetros depois, três
anos já se passaram e sentimos que então, pedalando ao seu lado, poderíamos
falar de mil coisas que nos aconteceram nesse período – é quando memória e
imaginação, em livre acordo, trocam figurinhas inter allia ! Um destes sonhos
épicos (batizo-o assim por falta de um nome melhor), eu o tive dias atrás: Com
um grupo de imigrantes clandestinos, viajei de avião para a fronteira do México
com os Estados Unidos dispostos a cruzá-la e “fazer a América”. Hospedamos-nos
em uma rude pousada, em uma empoeirada rua, nos subúrbios de Laredo, onde
parecia haver dez perros desgraçados para cada hombrecito. Na varanda da
pousada podia-se ver a fronteira de arame farpado e, no horizonte, as
cintilações do sol poente que se confundiam com as centelhas promissoras de uma
Califórnia dourada! Meus companheiros de travessia estavam ansiosos e pareciam
sonhar –dentro do sonho – com a vida melhor que encontrariam do outro lado da
“linha”. Havia nesta varanda uma velha cadeira de balanço onde me sentei a
olhar as primeiras estrelas no céu do deserto. Parecia um trono mágico, pois
tão logo me sentei, um ano já havia se passado! Todos os meus companheiros já
haviam cruzado a fronteira. .., mas eu fiquei. Com o pouco dinheiro que possuía,
comprei a pousada e vivia ali, hospedando e explorando os miseráveis brazucas
que, como eu, sonhavam com uma vida melhor para seus filhos. Quanto mais eu me
balançava, mais o tempo se adiantava e surgiam recuerdos da minha vida naquele
chaparral: aprendi a tocar viola com um mariachi bêbado, casei-me com uma índia
tartamuda de olhos tristes, engordei e criei longos bigodes que passava as
tardes cofiando na varanda. Toda vez que entregava um grupo de meus patrícios a
um coyote que os guiaria até o paraíso, eu os abraçava, transferindo para eles
um pouco dos meus sonhos de juventude, e voltava para contar o dinheiro em
minha cadeira de lona com estampas toltecas (ou maias, não sei diferenciá-las).
Dia veio em que não havia mais nenhuma estrela no céu e mais nenhum sonho em
meu coração. Comecei a despachar os imigrantes quase desejando que os coyotes
os matassem para roubá-los, ou que morressem de fome e frio nas madrugadas.
Passei a invejar os sonhos, agora que não era mais capaz de tê-los, e, por não
ter mais com o que sonhar, acordei. Mais covarde do que era antes de dormir,
mas feliz por sentir que estar acordado sempre é melhor do que sonhar!
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EL MARIACHI
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