sábado, 30 de março de 2019

APONTAMENTOS DE UM NEFELIBATA!



... De todas as imagens fabulosas que a astronomia descortina, nenhuma seduz tanto quanto as imagens aqui na terra; não a terra vista do espaço e sim a visão que temos aqui mesmo quando, no meio de uma planície sem fim, sobre uma pequena elevação, perdemos a visão no horizonte. A curvatura suave, nos limites que esconde, insinua, mais que a própria visão, a imensidão do planeta. As nuvens vertiginosas desdobram e desmancham-se antes de tocar o inatingível horizonte, guardião de gemas cintilando seus raios no azul distante: ­é o sol se pondo! Um destes coruscantes raios de luz rasga a vastidão do céu e acende com o seu rubro ardor uma estrela ao longe; dela sai um outro raio acendendo outra estrela que acende outra como linhas cintilantes de uma cósmica tecelã... logo o céu noturno incendeia-se com cem mil pontos fulgurantes suspensa sobre a terra feito nuvens de pirilampos. Tudo isso Sathaniel, o romântico, observava pela janela da velha torre onde havia se exilado após uma vida de patéticos desenganos. Seus longos e vibrantes dedos corriam sobre as paginas de um caderno: 

Não me recordo quando foi que adquiri o hábito de fitar com olhos evasivos o espetáculo das nuvens no teto do céu. Na mais tenra infância eu deitava-me sobre a grama com a cabeça apoiada nas mãos, as pernas cruzadas e, com um talo de capim entre os dentes, contemplava o cortejo suntuoso de nuvens cabeçudas feito montanhas de algodão. Muitas vezes o céu encontrava-­se límpido por horas a fio mas eu não desistia e esperava com o olhar fixo no horizonte; logo elas apareciam como se eu fosse um desses taumaturgos celtas que sabiam fazer chover atraindo nuvens com varinhas de condão. Elas surgiam gigantescas e iam se espalhando - Parecem ovelhas brincalhonas! O pastor das nuvens deve estar dormindo!. Eu pensava quase dormindo também. Logo surgia um gigante sobre a linha do horizonte com olhos e braços amedrontadores, mas eu não me assustava; em breve o gigante transmutava-se em uma bandeja de suculentas maçãs ou em um monstro pateta de barriga grande e orelhas longas. Meu posto de observação era o alto de uma colina sob a frondosa sombra de um ipê permitindo-me ver a sombra das nuvens avançar pelo campo, cobrindo arvores solitárias, vacas dorminhocas e pequenos casebres de barro às margens de um riacho murmurante. As grandes sombras redondas deslizavam velozes sobre o capim ondulante, venciam pequenas elevações e se perdiam nas montanhas distantes. Com as nuvens passaram-se os anos; hoje já não tenho tempo para tais contemplações. Quem sabe lá no alto as nuvens não se divertem vendo-me andar sobre a terra como uma sombra encurvada e atônita?...

                       *    *    *

...Voltei sonhando à casa da minha infância e contemplei pela janela do meu quarto o quintal, onde eu brincava de ser adulto e as tardes brincavam de serem eternas (se um dia descobrirem um parentesco entre os sonhos e a eternidade, entre a imaginação criadora e a alma do mundo, como pensava Avicena, recordaremos desse tempo bem mais pelos sonhos que aqui tivemos do que pela vida que aqui levamos). Voltando a fita, eu contemplava o quintal agora gigantesco, pois, para ali hospedar os sentimentos da infância, a percepção da época em que os lugares eram enormes fora ativada com certa dose de exagero. Era grande também a desolação por não haver ninguém ali além de mim a admirar, feito um Adão pecador, um paraíso perdido e sempiterno. Para meu grande estupor, ao fitar o céu, vi as nuvens caprichosas, à luz trágica do poente, encenarem episódios da minha infância que julguei extraviados nas curvas da memória: em uma longa faixas de cirros dilacerados pelo vento havia uma criança erguendo pelas patas dianteiras um animado cãozinho... Era eu e duque, meu cachorro que, em lágrimas, um dia enterrei; gordos nimbos no horizonte tinham a forma de um menino sobre um tonel a rolar em mirabolantes piruetas e uma nuvem escura no meio do céu, projetando sua sombra no quintal, era o arquétipo da minha cerejeira em cujos galhos meus dedos inocentes disputavam com o vento uma pipa ali presa. O movimento, presto andante, surpreendia-me por não desfazer as imagens, mas evoluir-lhas com a graça de um teatro japonês. Ver o trailer da minha infância comezinha, projetada nas lâminas hiperbóreas do céu, deu-me a embriagante sensação de Deus estar por trás deste sonho, fazendo o back-up da memória e apascentando nos brancos rebanhos do céu a minha alma de nefelibata.


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