... De todas as imagens fabulosas que a astronomia descortina,
nenhuma seduz tanto quanto as imagens aqui na terra; não a terra vista do
espaço e sim a visão que temos aqui mesmo quando, no meio de uma planície sem
fim, sobre uma pequena elevação, perdemos a visão no horizonte. A curvatura
suave, nos limites que esconde, insinua, mais que a própria visão, a imensidão
do planeta. As nuvens vertiginosas desdobram e desmancham-se antes de tocar o
inatingível horizonte, guardião de gemas cintilando seus raios no azul
distante: é o sol se pondo! Um destes coruscantes raios de luz rasga a
vastidão do céu e acende com o seu rubro ardor uma estrela ao longe; dela sai
um outro raio acendendo outra estrela que acende outra como linhas cintilantes
de uma cósmica tecelã... logo o céu noturno incendeia-se com cem mil pontos
fulgurantes suspensa sobre a terra feito nuvens de pirilampos. Tudo isso
Sathaniel, o romântico, observava pela janela da velha torre onde havia se
exilado após uma vida de patéticos desenganos. Seus longos e vibrantes dedos
corriam sobre as paginas de um caderno:
Não me recordo quando foi que adquiri o hábito de fitar com
olhos evasivos o espetáculo das nuvens no teto do céu. Na mais tenra infância
eu deitava-me sobre a grama com a cabeça apoiada nas mãos, as pernas cruzadas
e, com um talo de capim entre os dentes, contemplava o cortejo suntuoso de
nuvens cabeçudas feito montanhas de algodão. Muitas vezes o céu encontrava-se
límpido por horas a fio mas eu não desistia e esperava com o olhar fixo no
horizonte; logo elas apareciam como se eu fosse um desses taumaturgos celtas
que sabiam fazer chover atraindo nuvens com varinhas de condão. Elas surgiam
gigantescas e iam se espalhando - Parecem ovelhas brincalhonas! O pastor das
nuvens deve estar dormindo!. Eu pensava quase dormindo também. Logo surgia um
gigante sobre a linha do horizonte com olhos e braços amedrontadores, mas eu
não me assustava; em breve o gigante transmutava-se em uma bandeja de
suculentas maçãs ou em um monstro pateta de barriga grande e orelhas longas.
Meu posto de observação era o alto de uma colina sob a frondosa sombra de um
ipê permitindo-me ver a sombra das nuvens avançar pelo campo, cobrindo arvores
solitárias, vacas dorminhocas e pequenos casebres de barro às margens de um
riacho murmurante. As grandes sombras redondas deslizavam velozes sobre o capim
ondulante, venciam pequenas elevações e se perdiam nas montanhas distantes. Com
as nuvens passaram-se os anos; hoje já não tenho tempo para tais contemplações.
Quem sabe lá no alto as nuvens não se divertem vendo-me andar sobre a terra
como uma sombra encurvada e atônita?...
* * *
...Voltei sonhando à casa da minha infância e contemplei pela
janela do meu quarto o quintal, onde eu brincava de ser adulto e as tardes
brincavam de serem eternas (se um dia descobrirem um parentesco entre os sonhos
e a eternidade, entre a imaginação criadora e a alma do mundo, como pensava
Avicena, recordaremos desse tempo bem mais pelos sonhos que aqui tivemos do que
pela vida que aqui levamos). Voltando a fita, eu contemplava o quintal agora
gigantesco, pois, para ali hospedar os sentimentos da infância, a percepção da
época em que os lugares eram enormes fora ativada com certa dose de exagero.
Era grande também a desolação por não haver ninguém ali além de mim a admirar,
feito um Adão pecador, um paraíso perdido e sempiterno. Para meu grande
estupor, ao fitar o céu, vi as nuvens caprichosas, à luz trágica do poente,
encenarem episódios da minha infância que julguei extraviados nas curvas da
memória: em uma longa faixas de cirros dilacerados pelo vento havia uma criança
erguendo pelas patas dianteiras um animado cãozinho... Era eu e duque, meu
cachorro que, em lágrimas, um dia enterrei; gordos nimbos no horizonte tinham a
forma de um menino sobre um tonel a rolar em mirabolantes piruetas e uma nuvem
escura no meio do céu, projetando sua sombra no quintal, era o arquétipo da
minha cerejeira em cujos galhos meus dedos inocentes disputavam com o vento uma
pipa ali presa. O movimento, presto andante, surpreendia-me por não desfazer as
imagens, mas evoluir-lhas com a graça de um teatro japonês. Ver o trailer da
minha infância comezinha, projetada nas lâminas hiperbóreas do céu, deu-me a
embriagante sensação de Deus estar por trás deste sonho, fazendo o back-up da
memória e apascentando nos brancos rebanhos do céu a minha alma de nefelibata.
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