sexta-feira, 29 de março de 2019

EUFORIA NO ENTARDECER In Tratado de Teologia Quântica!




Durante dezenas de milhares de anos, nossos antepassados tiveram uma curta existência. Quase não se encontra vestígios de anciãos em sítios arqueológicos . Todos morriam entre trinta e quarenta anos, não havendo, portanto nenhuma vantagem seletiva para o desenvolvimento de memórias de longa duração. Supondo que a memória seja um fenômeno exclusivamente cerebral, ela encontraria uma saturação por volta da quinta década de existência; e, de fato, o envelhecimento parece mesmo ser um contínuo processo de esquecimento causado por um cérebro saturado que precisa eliminar velhas lembranças para contrair novas marcas (talvez a função dos sonhos repetitivos seja eliminar este excesso de memória, pois geralmente, depois de sonharmos muitas vezes com as mesmas situações, elas tendem a ser esquecidas para sempre; por isso, na juventude do nosso cérebro, não costumamos ter sonhos repetitivos visto haver ainda um grande potencial para novos registros). Quando um idoso recorda-se da sua infância e juventude, as lembranças costumam ser imprecisas quanto a detalhes, datas e circunstâncias, aspectos estes de natureza pragmática e cronológica que um cérebro entupido não pode mais fornecer com precisão; entretanto, as lembranças dos idosos possuem uma vivacidade que nenhum detalhe cerebral poderia oferecer. Como as ruínas de uma cidade antiga, quanto mais destruídas pelo tempo, mais enfáticas e pitorescas elas passam a ser. A imprecisão das lembranças, suas franjas estioladas são, ao mesmo tempo, as sombras de um cérebro que declina e o esplendor de um espírito que doura suas bordas no ouro do tempo. É preciso que o cérebro seja recalcado por um excesso de lembranças para que se perceba a dimensão espiritual da memória, um pouco como nos velhos catecismos que condicionava ao padecimento do corpo a liberdade da nossa alma!
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      Nos últimos anos, consolidou-se uma poderosa corrente científica que pretende explicar toda a nossa vida subjetiva através da neurociência e da fisiologia do seu precípuo objeto: o cérebro. Biologia, física e química são as rejuvenescidas fadas-madrinha dessa infante “weltanschaaung” que busca explicar a consciência que temos de nós e do mundo como resultados de uma atividade cerebral a formatar, organizar, construir e transformar os dados dos sentidos. Estes dados seriam a tradução de uma “entourrage” feita de fluxos, partículas, ondas e forças de alucinadas lentidões e velocidades hipostasiadas: uma caosmose, para usarmos a definição da física atual. A imagem regular e pastoral do mundo cotidiano seria, assim, efeito dos processos bioquímicos e neurolépticos do nosso cérebro, separando as cores, harmonizando os sons, domesticando os sabores e espiritualizando os aromas. Nossa vida interior também não passaria de uma grande fuzarca, não fosse a coordenação de misteriosos glios, corpos calosos e bulbos neurais: lembranças, emoções, pensamentos e atitudes... a girândola da vida a brotar dessa providencial fisiologia encefálica. Não há mais, no deserto epistêmico do século vinte e um, rastros de mitologias, linguagens, pulsões ou outros sinais do romântico conceito de  inconsciente. Os neurotransmissores, as acetilcolinas, as sinapses, os micro-tubos quânticos, as locações genéticas... novas estrelas hoje brilham após o crepúsculo do inconsciente, deste “eu profundo de origem divina” como F. Pessoa chamava a alma humana! Alguém precisa entrar no gorduroso palácio da psiquiatria e da neurociência, apontar para o cérebro e gritar: “o rei está nu!”, “o rei está nu!” Afinal, a tese de ser o cérebro o grande regente da vida consciente não resiste à duas ou três questões bem colocadas: sendo ele do mesmo estofo com que os corpos são feitos, de matéria (orgânica), moléculas, átomos, partículas – e o que mais os físicos descobrirem – (e supondo ser a natureza um rebut de energias não representadas sequer pelas mais disparatadas equações matemáticas), onde o cérebro encontraria as formalidades com as quais ele individua e organiza a experiência sensorial? (E a si mesmo?). Onde estariam as cores, os sons, os aromas, as dores, as recordações, o amor, se a matéria não pode, onticamente, os conter? De outro modo, onde estariam as formas, os números e as idéias se elas não fossem propriedades imanentes à própria natureza sensorial? Não sem razão, sabemos que todas estas sofisticadas ciências, seus métodos, sua epistême (e suas filosofias serviçais, como a fenomenologia e a gestalt) são amplitudes e platitudes do filósofo Immanuel Kant que apontava como origem da ordem do mundo um princípio transcendental – para além, portanto, do cérebro e na fronteira mais interna da mente – chamado de “princípio de apercepção transcendental”. Seja lá o que for isso, sentimos uma inspiração, um perfume platônico nessa doutrina de ser as formas da percepção, ainda que habitando a matéria, verdadeiros alliens saídos de um segundo mundo ou mundo das idéias para usar uma terminologia hegeliana. Por outro lado, se considerarmos que o cérebro só pode reconhecer o que lhe é naturalmente semelhante, isto é, se a natureza já for pré-formatada, com estas formas habitando o coração da matéria, (Matéria Signata quantitati como Tomás de Aquino a definia); então, teríamos que supor que o cérebro apenas mima e opera com signos que já lhes chegam empacotados, vindos de uma natureza orgânica e harmoniosa (o caos quântico, nesse caso, seria apenas um abstração como as formas conceituais com que hora estamos especulando). O cérebro talvez seja como um fecho éclair unindo duas dimensões: de um lado, que chamaríamos de realismo platônico, o reino das formas, idéias e essências que, participando da nossa mente (em segundo grau) e da natureza (em terceiro), modulam o caos de impressões e sensações experimentadas; na outra dimensão, batizada de nominalismo aristotélico, pressupõe-se que as formas existam encarnadas no real (em cada indivíduo) e cuja abstração seria os nomes, os conceitos, as espécies e demais gadgets categoriais com os quais o cérebro lê e interpreta a natureza. Para qualquer lado que a psiquiatria pender, como os míticos argonautas que caiam no abismo Silas ao fugir dos rochedos Caríbdis, naufragará a stultifera navis dos psiquiatras com seu velo de ouro coruscado de sinapses. Não deixa de ser divertido, contudo, ver suas mirabolantes e acrobáticas tentativas de equilibrar, nos hemisférios cerebrais, as tábuas do conhecimento, como um malabarista que fosse capaz de por um pé no Corcovado, outro, no Pão-de-açúcar e lavar o crânio nas águas geladas da baía da Guanabara.


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