Durante dezenas de milhares de anos, nossos
antepassados tiveram uma curta existência. Quase não se encontra vestígios de
anciãos em sítios arqueológicos . Todos morriam entre trinta e quarenta anos,
não havendo, portanto nenhuma vantagem seletiva para o desenvolvimento de
memórias de longa duração. Supondo que a memória seja um fenômeno
exclusivamente cerebral, ela encontraria uma saturação por volta da quinta
década de existência; e, de fato, o envelhecimento parece mesmo ser um contínuo
processo de esquecimento causado por um cérebro saturado que precisa eliminar
velhas lembranças para contrair novas marcas (talvez a função dos sonhos
repetitivos seja eliminar este excesso de memória, pois geralmente, depois de
sonharmos muitas vezes com as mesmas situações, elas tendem a ser esquecidas
para sempre; por isso, na juventude do nosso cérebro, não costumamos ter sonhos
repetitivos visto haver ainda um grande potencial para novos registros). Quando
um idoso recorda-se da sua infância e juventude, as lembranças costumam ser
imprecisas quanto a detalhes, datas e circunstâncias, aspectos estes de
natureza pragmática e cronológica que um cérebro entupido não pode mais
fornecer com precisão; entretanto, as lembranças dos idosos possuem uma
vivacidade que nenhum detalhe cerebral poderia oferecer. Como as ruínas de uma
cidade antiga, quanto mais destruídas pelo tempo, mais enfáticas e pitorescas
elas passam a ser. A imprecisão das lembranças, suas franjas estioladas são, ao
mesmo tempo, as sombras de um cérebro que declina e o esplendor de um espírito
que doura suas bordas no ouro do tempo. É preciso que o cérebro seja recalcado
por um excesso de lembranças para que se perceba a dimensão espiritual da
memória, um pouco como nos velhos catecismos que condicionava ao padecimento do
corpo a liberdade da nossa alma!
* * *
Nos últimos anos, consolidou-se uma poderosa corrente científica que pretende
explicar toda a nossa vida subjetiva através da neurociência e da fisiologia do
seu precípuo objeto: o cérebro. Biologia, física e química são as
rejuvenescidas fadas-madrinha dessa infante “weltanschaaung” que busca explicar
a consciência que temos de nós e do mundo como resultados de uma atividade
cerebral a formatar, organizar, construir e transformar os dados dos sentidos.
Estes dados seriam a tradução de uma “entourrage” feita de fluxos, partículas,
ondas e forças de alucinadas lentidões e velocidades hipostasiadas: uma
caosmose, para usarmos a definição da física atual. A imagem regular e pastoral
do mundo cotidiano seria, assim, efeito dos processos bioquímicos e neurolépticos
do nosso cérebro, separando as cores, harmonizando os sons, domesticando os
sabores e espiritualizando os aromas. Nossa vida interior também não passaria
de uma grande fuzarca, não fosse a coordenação de misteriosos glios, corpos
calosos e bulbos neurais: lembranças, emoções, pensamentos e atitudes... a
girândola da vida a brotar dessa providencial fisiologia encefálica. Não há
mais, no deserto epistêmico do século vinte e um, rastros de mitologias,
linguagens, pulsões ou outros sinais do romântico conceito de
inconsciente. Os neurotransmissores, as acetilcolinas, as sinapses, os
micro-tubos quânticos, as locações genéticas... novas estrelas hoje brilham
após o crepúsculo do inconsciente, deste “eu profundo de origem divina” como F.
Pessoa chamava a alma humana! Alguém precisa entrar no gorduroso palácio da
psiquiatria e da neurociência, apontar para o cérebro e gritar: “o rei está
nu!”, “o rei está nu!” Afinal, a tese de ser o cérebro o grande regente da vida
consciente não resiste à duas ou três questões bem colocadas: sendo ele do
mesmo estofo com que os corpos são feitos, de matéria (orgânica), moléculas,
átomos, partículas – e o que mais os físicos descobrirem – (e supondo ser a
natureza um rebut de energias não representadas sequer pelas mais disparatadas
equações matemáticas), onde o cérebro encontraria as formalidades com as quais
ele individua e organiza a experiência sensorial? (E a si mesmo?). Onde
estariam as cores, os sons, os aromas, as dores, as recordações, o amor, se a
matéria não pode, onticamente, os conter? De outro modo, onde estariam as
formas, os números e as idéias se elas não fossem propriedades imanentes à
própria natureza sensorial? Não sem razão, sabemos que todas estas sofisticadas
ciências, seus métodos, sua epistême (e suas filosofias serviçais, como a
fenomenologia e a gestalt) são amplitudes e platitudes do filósofo Immanuel
Kant que apontava como origem da ordem do mundo um princípio transcendental –
para além, portanto, do cérebro e na fronteira mais interna da mente – chamado
de “princípio de apercepção transcendental”. Seja lá o que for isso, sentimos
uma inspiração, um perfume platônico nessa doutrina de ser as formas da
percepção, ainda que habitando a matéria, verdadeiros alliens saídos de um
segundo mundo ou mundo das idéias para usar uma terminologia
hegeliana. Por outro lado, se considerarmos que o cérebro só pode
reconhecer o que lhe é naturalmente semelhante, isto é, se a natureza já for
pré-formatada, com estas formas habitando o coração da matéria, (Matéria Signata
quantitati como Tomás de Aquino a definia); então, teríamos que supor que o
cérebro apenas mima e opera com signos que já lhes chegam empacotados, vindos
de uma natureza orgânica e harmoniosa (o caos quântico, nesse caso, seria
apenas um abstração como as formas conceituais com que hora estamos
especulando). O cérebro talvez seja como um fecho éclair unindo duas dimensões:
de um lado, que chamaríamos de realismo platônico, o reino das formas, idéias e
essências que, participando da nossa mente (em segundo grau) e da natureza (em
terceiro), modulam o caos de impressões e sensações experimentadas; na outra
dimensão, batizada de nominalismo aristotélico, pressupõe-se que as formas
existam encarnadas no real (em cada indivíduo) e cuja abstração seria os nomes,
os conceitos, as espécies e demais gadgets categoriais com os quais o cérebro
lê e interpreta a natureza. Para qualquer lado que a psiquiatria pender, como
os míticos argonautas que caiam no abismo Silas ao fugir dos rochedos Caríbdis,
naufragará a stultifera navis dos psiquiatras com seu velo de ouro coruscado de
sinapses. Não deixa de ser divertido, contudo, ver suas mirabolantes e
acrobáticas tentativas de equilibrar, nos hemisférios cerebrais, as tábuas do
conhecimento, como um malabarista que fosse capaz de por um pé no Corcovado,
outro, no Pão-de-açúcar e lavar o crânio nas águas geladas da baía da
Guanabara.
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