quarta-feira, 27 de março de 2019

À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA!


       Caminhava eu distraído sem pisar em estrelas, pois era na rua e não em um barracão de zinco sem telhados lá no morro que eu andava. Por algum motivo, decidi fazer um pequeno desvio e visitar uma parenta minha que não via há quase cinco anos. Conversamos rápido e, na volta para à caminhada habitual, fiquei pensando nos efeitos do tempo incorporados no rosto e nas expressões da minha prima: um endurecimento em suas tendências religiosas como uma planta trepadeira que, em busca da luz celestial, asfixia aquelas que lhe servem de apoio e degrau. Seus outros afetos pareciam todos adormecidos, murchos como se realizados pela via dialética da negação, outros até, como seu gosto pela pintura, pareciam mesmo ter se realizado no âmbito da própria impossibilidade, traduzido em seu rosto que eu percebia como uma paisagem desolada onde a morte ia fincando estacas: o sorriso hirto como uma cerca de esmalte, o nariz com suas sombras imperiais sobre o queixo, os olhos semicerrados como telhados de uma noite eterna que se aproximava. Ela falava o tempo todo que buscava o Senhor Deus, mas não como alguém que busca uma fonte de vida exuberante, mas como um braço que lhe guiasse pelos portões álgidos da morte gemedeira. Pareceu-me também ver em seus traços a celebração de tantos outros parentes nossos já falecidos, tios e avós que, servindo de modelo, não se contentavam em moldar nossos corpos no ventre, mas que continuassem, lá do outro lado onde estão, atraindo por forças da decrepitude e do escorrer do viço, os netos e bisnetos que aqui perseveram, imprimindo-lhes as deformações dos mortos vicárias: uma pálpebra caída e eis tio Tibúrcio; uma orelha de abano e Vó Lindaura nos acena com ela, uma expressão coloquial ou um velho jargão dos tempos da infância na fazenda de Vô Chico, e lá está ele, enfezado e birrento, a resmungar com as vacas! Enquanto assim pensava, dobrei a esquina onde se localiza a residência de um primo distante, Olegário Vianney, farmacêutico atencioso e eremita inveterado. Passei em frente ao banco do jardim em frente à sua casa e lá estava ele, sentado em um tronco de madeira de um velho ipê podado e fumando seu folclórico cigarro de palha. O cumprimentei friamente, pois não queria entabular outra conversa e perder o horário da caminhada - já era tarde para uma cidade escura e decadente como a nossa e um cortejo de sombras parecia ir engolindo as casas, muros, calçadas e carros estacionados. O velho Olegário respondeu ao meu cumprimento com um arremedo de palavras que pareciam não terem forças para cruzar sua garganta besuntada de alcatrão, mas eu entendi pelos lábios a polidez de sua resposta. Suas inaudíveis palavras me abraçaram como uma mortalha e me acompanharam pelo trajeto enquanto eu seguia meditando sobre os parentes antigos, quando então, já no segundo quarteirão, talvez instigado por aqueles pegajosos fantasmas de palavras mudas e encarnadas no frio outonal que resfriava sobremaneira a minha alma, calhou-me lembrar que o Olegário Vianney havia falecido há cerca de dois anos; morte, para mim, em forma de uma notícia logo esquecida e enxotada por algum problema metafisico que, na época, meus neurônios se ocupasse. Eu havia visto o seu fantasma, na esquina da sua prima que parecia fenecer lentamente em seu encontro, e na minha imaginação, cheguei a pensar em um romance entre os dois, ele por ela esperando e rondando a sua casa. Imaginei isso como uma tentativa jocosa de conjurar a alucinação e restaurar o império da razão sobre uma alma penada avistada nas sombras frias de uma madrugada. Não funcionou. O medo se apossou de minhas pernas, subitamente transmutadas nas pernas de algum tísico antepassado para quem, lentamente, eu me assemelhava. Comecei a tremer de frio ou por conta das palavras esconjuradas pelo Olegário pronunciadas e que tento agora decifrar, nesse apontamento que digito com todas as luzes acesas da casa! Talvez até escrevesse melhor e mais claro, decifrando as palavras que o morto sussurrara-me, se Doppler, meu cão perdigueiro, não latisse lá fora tão desesperadamente como se estivesse vendo alguma coisa anormal nos fundos do quintal!


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