Caminhava
eu distraído sem pisar em estrelas, pois era na rua e não em um barracão de
zinco sem telhados lá no morro que eu andava. Por algum motivo, decidi fazer um
pequeno desvio e visitar uma parenta minha que não via há quase cinco anos. Conversamos
rápido e, na volta para à caminhada habitual, fiquei pensando nos efeitos do
tempo incorporados no rosto e nas expressões da minha prima: um endurecimento
em suas tendências religiosas como uma planta trepadeira que, em busca da luz
celestial, asfixia aquelas que lhe servem de apoio e degrau. Seus outros afetos
pareciam todos adormecidos, murchos como se realizados pela via dialética da
negação, outros até, como seu gosto pela pintura, pareciam mesmo ter se
realizado no âmbito da própria impossibilidade, traduzido em seu rosto que eu
percebia como uma paisagem desolada onde a morte ia fincando estacas: o sorriso
hirto como uma cerca de esmalte, o nariz com suas sombras imperiais sobre o
queixo, os olhos semicerrados como telhados de uma noite eterna que se
aproximava. Ela falava o tempo todo que buscava o Senhor Deus, mas não como
alguém que busca uma fonte de vida exuberante, mas como um braço que lhe
guiasse pelos portões álgidos da morte gemedeira. Pareceu-me também ver em seus
traços a celebração de tantos outros parentes nossos já falecidos, tios e avós
que, servindo de modelo, não se contentavam em moldar nossos corpos no ventre,
mas que continuassem, lá do outro lado onde estão, atraindo por forças da decrepitude
e do escorrer do viço, os netos e bisnetos que aqui perseveram, imprimindo-lhes
as deformações dos mortos vicárias: uma pálpebra caída e eis tio Tibúrcio; uma
orelha de abano e Vó Lindaura nos acena com ela, uma expressão coloquial ou um
velho jargão dos tempos da infância na fazenda de Vô Chico, e lá está ele,
enfezado e birrento, a resmungar com as vacas! Enquanto assim pensava, dobrei a
esquina onde se localiza a residência de um primo distante, Olegário Vianney,
farmacêutico atencioso e eremita inveterado. Passei em frente ao banco do
jardim em frente à sua casa e lá estava ele, sentado em um tronco de madeira de
um velho ipê podado e fumando seu folclórico cigarro de palha. O cumprimentei
friamente, pois não queria entabular outra conversa e perder o horário da
caminhada - já era tarde para uma cidade escura e decadente como a nossa e um
cortejo de sombras parecia ir engolindo as casas, muros, calçadas e carros
estacionados. O velho Olegário respondeu ao meu cumprimento com um arremedo de
palavras que pareciam não terem forças para cruzar sua garganta besuntada de
alcatrão, mas eu entendi pelos lábios a polidez de sua resposta. Suas inaudíveis
palavras me abraçaram como uma mortalha e me acompanharam pelo trajeto enquanto
eu seguia meditando sobre os parentes antigos, quando então, já no segundo
quarteirão, talvez instigado por aqueles pegajosos fantasmas de palavras mudas
e encarnadas no frio outonal que resfriava sobremaneira a minha alma, calhou-me
lembrar que o Olegário Vianney havia falecido há cerca de dois anos; morte,
para mim, em forma de uma notícia logo esquecida e enxotada por algum problema metafisico
que, na época, meus neurônios se ocupasse. Eu havia visto o seu fantasma, na
esquina da sua prima que parecia fenecer lentamente em seu encontro, e na minha
imaginação, cheguei a pensar em um romance entre os dois, ele por ela esperando
e rondando a sua casa. Imaginei isso como uma tentativa jocosa de conjurar a
alucinação e restaurar o império da razão sobre uma alma penada avistada nas
sombras frias de uma madrugada. Não funcionou. O medo se apossou de minhas
pernas, subitamente transmutadas nas pernas de algum tísico antepassado para
quem, lentamente, eu me assemelhava. Comecei a tremer de frio ou por conta das
palavras esconjuradas pelo Olegário pronunciadas e que tento agora decifrar,
nesse apontamento que digito com todas as luzes acesas da casa! Talvez até
escrevesse melhor e mais claro, decifrando as palavras que o morto
sussurrara-me, se Doppler, meu cão perdigueiro, não latisse lá fora tão
desesperadamente como se estivesse vendo alguma coisa anormal nos fundos do
quintal!
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