Hoichi, músico
excelente e por fatalidade cego, possuía ainda belas orelhas, vermelhas como um
sol poente e perdidas, vejamos como, em uma tarde do antigo Japão. A trama se
desenrola numa tarde, um pouco antes do crepúsculo, diante do portal brilhante
do templo de Danomosoura onde Hoichi, o deplorável músico, havia sido recolhido
por caridade. Hoichi não via o cintilar do céu nem das águas em cujas margens
elevava-se o velho templo, mas a magia movente da noite vesperal fremia o ar
com vibrantes e invisíveis presenças e o cego sentia o vôo dos demônios
escondidos, dos legendários heiké cuja passagem comunicava a sua carne
misteriosos arrepios. Ele tinha medo. O templo vazio dormia. O marulho das
águas exalava suspiros semelhantes ao dos defuntos. Encolhido sobre si mesmo, a
flauta cerrada contra o peito, a face revirada, apoiado contra o muro frágil,
ele esperava. Nesse momento a voz imperiosa do samurai, como se exalada da
essência das coisas, o chama. Ele o chama uma vez e depois uma outra; e como
Hoichi não responde nunca, o samurai aproxima-se. Hoichi sente u’a mão metálica
aprisionando a sua. O guerreiro parecia muito potente, bem armado. Então ele
obedece.- Eu vim... diz o guerreiro... eu vim...
E eles seguem
marchando em meio ao silêncio das pedras. Então a grande voz imperiosa e
distante retoma no mesmo ritmo hebefrênico:
...Da parte do
meu mestre, da parte do meu mestre, para te buscar.
E as pedras
recomeçam o canto secreto; as folhas, o murmúrio. O caminho possuía uma
distância incalculável, mas o que assustava sobretudo o músico cego era o final
desta viagem, ao qual ele sentia não ter a coragem de se furtar. Eles chegam
enfim aos pés de uma grade imensa diante da qual seu condutor lhe interrompe.
“Meu mestre espera de ti, o mais maravilhoso músico da terra, u’a melodia mais
bela que a que tocarias ao maior mikadô, meu mestre maior que o maior mikadô.”
- Disse o
samurai e o silêncio retorna. Logo as grades se abrem e eles passam com passos
pesados, patinando como tropas de soldados. Chegaram diante do que parece ser
ao músico uma escadaria. Ouvia-se algo como cortinas se abrindo, voo de gansos
selvagens, sopros bruscamente baforados. Uma impressão de luz toca a pele do
músico cego. Ele se sente em um palácio ultra-iluminado, mas o vertiginoso terror
que eriçava sua carne lhe fazia titubear a cada passo que dava.
- Cante-nos,
cante-nos... - entoa a voz do samurai toda encouraçada de ferro - cante-nos o
casamento da princesa... a princesa do nosso grande mikadô. Então parece ao
cantor desgraçado que a visão lhe fora devolvida como se não houvesse mais
pálpebras, como se seus membros fossem todos em vidro transmutados. Sentiu a
impressão de uma queda e sentia seus dedos correrem sobre a corda da biva
segundo o ritmo do poema comandado, e as imagens se traçavam em torno dele,
belas e maravilhosas como sonhos feitos no fundo do mar. Via suntuosos desfiles
dissociados e estupendas flores se consumindo, e legendárias visões de virgens
se dissipando nas chamas de fogueiras prodigiosas. Ele próprio se sentia girando.
Recua. Quer morrer. Sente que a intensidade da emoção ultrapassa suas forças.
Mas com a velocidade do raio o samurai se levanta, vence o espaço que separa o
palácio das grades e retoma a estrada com o músico ao seu lado. Um pouco antes
da aurora, eles se encontram diante do pequeno templo, na margem das águas.
Hoichi gira três vezes sobre si mesmo e escuta. De novo encontra-se cego e só.
Então, pela primeira vez, ele cai em si e pergunta:
_ONDE ESTIVE?
O bonzo, que lhe
havia dado asilo e vindo com a aurora retomar o seu ofício, foi surpreendido ao
encontrar nesta manhã o músico encostado no muro do templo na mesma posição
onde na véspera à tarde ele o havia deixado. Ele não fala, não se move até a
hora do crepúsculo e quando levantavam-lhe o braço para fazê-lo comer ou
mantê-lo firme sobre as pernas, ele caía por terra como um fantoche e o bonzo
lhe acreditava morto. Convocou um mensageiro que envia ao povoado mais próximo
com a missão de preparar o enterro e põe-se a velar o corpo. A sombra das árvores
configurava temores. A noite ganhava a terra. Foi então que, apelado por não se
sabe que espírito do outro mundo, o músico cego se levanta. Possuía um passo de
sonâmbulo e como guiado por uma mão estrangeira tanto havia o ar inconsciente
de seus próprios movimentos. O pequeno bonzo não conseguiu lhe segurar, o medo
concorrendo com o cansaço. Levava a mão à boca, aos olhos e levantava a túnica
com os dedos trêmulos à cada passo que davam. Chegaram assim diante das velhas
grades do cemitério. O pequeno bonzo recua. Cai ajoelhado de terror. Sentiu
conduzido aos limites extremos da vida. As grades estavam abertas, o som que
ouve lhe parece com o entrechocar de espadas, com o barrido de elefantes
fantásticos; e o músico inclinado sobre as lápides de um túmulo, a figura
extática, parecia assistir o desenrolar de misteriosos feitiços e agitava sua
biva com bruscos sobressaltos. Eles reencontraram-se um pouco antes da manhã no
caminho que os conduziam ao templo isolado. O músico fatigado e como bêbado
tremia as pernas e o bonzo lhe conduzia.
- Você está
enfeitiçado, Hoichi - disse ele - você está enfeitiçado, sofreu o chamado dos
espíritos, você foi...arrancado da vida. Cuidado para não partir de uma vez por
todas. Eles lhe torturarão, meu amigo, você ficará desesperado com os
tormentos. - Assim iam eles, o músico tremendo as pernas e o bonzo, o pequeno
bonzo, com passos curtos lhe conduzindo.
- Mas não tenha
medo, esta noite eu lhe vestirei com a roupa-que-protege, o vestido mágico que
afugenta os espíritos.
Chegaram ao
templo e como a noite se aproximava, o bonzo, ajudado por um acólito, tratou de
desnudar o músico e sobre a carne eles traçaram os exorcismos que espantam os
espíritos. Assim coberto de inscrições, ele tinha a aparência revestida por um
tecido de estampas negras. Eles lhe cobriram a face, os membros, todo o corpo e
com a noite aproximando-se eles se foram; e o músico a quem o terror havia
retornado com a consciência estava encolhido em si mesmo, e esperava. Sombras
esvoaçavam sobre sua cabeça, juncos distantes gemiam sobre as águas. Ele sentia
sua cabeça se afundar nos ombros a cada ruído que se exalava da noite. Ele
desejou estar morto. E imediatamente a grande voz metálica do samurai ressoou.
Ele se crispou e se dobrou entre as pernas, um grande arrepio lhe percorre e
ele sente eriçar os pelos do seu crânio. Mas o samurai indeciso girava sobre si
mesmo como um homem desamparado. Hoichi lhe ouvia trepidar. - Hoichi - gritava
- Hoichi! Você é esperado no palácio para nos cantar a sequência da estória.
Hoichi, onde você está? - Súbito ele se estanca. “ Por todos os deuses”- grita
ele - Se não vejo o músico, vejo no mínimo suas orelhas, levarei-as
imediatamente ao meu mestre para lhe provar que empenhei-me nesta missão.”
Aproximou-se
então do local onde o músico estava, onde somente eram visíveis suas duas
orelhas, e as arrancam-lhe. O bonzo havia esquecido de pintar os versos
protetores sobre suas orelhas.
Eis como perdeu as orelhas Hoichi, o músico deplorável.
* Este singular conto do Antonin Artaud, encontrei em um volume de suas obras completas, editado pela Gallimard, e hoje perdido o exemplar. Recordo-me de ter sido um dos últimos, o que indica ter o Artaud escrito no final da sua vida, talvez no mesmo período em que redigia um texto clássico seu, sobre Van Gogh, "O Suicidado da Sociedade". Talvez Van Gogh tenha lhe servido de inspiração, seu inconsciente procurando um motivo plausível para o genial pintor holandês ter cortado sua orelha fora, e lhe dando como resposta essa "pintura japonesa", ele, Van Gogh, que tanto amava a pintura dos mestres gravadores do Japão. Longe de tecer qualquer comparação, logo em seguida a esta tradução, escrevi um texto curto sobre monges orientais e traduções que pode ser lido neste mesmo blog, no link,
https://cassianoribeiro.blogspot.com/2018/05/errando-e-acertando.html
Vá lá conferir, mas veja se não corta nada!
https://cassianoribeiro.blogspot.com/2018/05/errando-e-acertando.html
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