A lenta
ruína da física aristotélica, onde as qualidades da matéria explicavam suas
leis, começou nos úmidos castelos ingleses, quando John Locke dividiu o ser
sensível em Qualidades primárias e Qualidades secundárias. As primeiras,
abstratas e depuradas, como Forma, Dimensões, Densidades, Peso, etc.. era tudo
aquilo que podia ser matematicamente traduzido e quantificado, era o estofo
substancial das coisas e existiam enquanto realidades objetivas. As qualidades
Secundárias, cores, sabores, temperaturas, tudo que fosse tributário e caudatário
dos nossos sentidos, eram considerados “qualia”, produtos da interação de nossa
mente com os objetos da experiência e gozavam de uma existência vicária da
mente e das primeiras qualidades substanciais. Esse esquema consolidou-se no bojo
vitorioso da ciência ocidental e hoje se tornou um lugar comum afirmar que o mundo
é feito de energias, vibrações, emaranhados quânticos e turbilhões ondulatórios
em perpétuo estado de “Mens Momentânea”; as qualidades do mundo, compostas por
esses pacotes de energia misturadas aos padrões sensoriais da nossa mente, ganham
cada dia mais relatividade e são tratadas como um bolor psíquico, quando
abordadas pela ciência. Curioso então é como essa fratura materialista culmina
por fortalecer o realismo ingênuo que ele pretendia combater, isto é, a crença
aristotélica de ser o mundo verdadeiro tal como ele nos apresenta. Isso ocorre
por um atalho onde, expulsa pela ciência matemática, as sensações encontram
asilo na memória que as retém e as guarda por anos e décadas. Quem não é capaz
de lembrar centenas de experiências vividas há décadas passadas, como o
primeiro voo de avião, a primeira colher de iogurte ou da lua cheia que
brilhava sobre a cama nas férias, na fazenda do vovô? E, no entanto, nada
disso, se reduzido à suas qualidades primárias, suas ondulações físicas e seus
recortes espaciais, teria existência ontológica e verdadeira, seria apenas
constructos mentais! Ora, sendo estas sensações apenas um efeito da experiência
cerebral, não tendo existência material “em si”, como poderiam elas ser
preservadas na memória? Como pode a memória preservar estados da consciência se
esses estados só existem em contato com sua outra banda, as vibrações outrora experimentadas, ausentes no momento em que os relembro? Imaginar que os estados
de consciência vividos possam ser traduzidos em registros químicos e guardados
no cérebro é supor que eles podem ter suas próprias qualidades primárias, isto
é, que possam existir em si mesmas, aquele perfume, aquela valsa de formatura,
aquele beijo com sabor de sorvete na primeira namorada! Pois que continuam
existindo quando delas eu não estiver recordando. Para evitar essa petição de
princípio, atribuir uma realidade objetiva às lembranças que foram decalcadas
de algo que não existia senão na relação do cérebro com o mundo sensível, é
preciso conceder à memória uma dimensão absolutamente não material, uma força
do espírito e, através dessa força do espírito, dessa nossa alma liberta da
matéria, explicar com ela a percepção das qualidades segundas do mundo, das
cores e tonalidades sentimentais, dos aromas e carícias sensuais, de tudo que
realmente não seja apenas número, dimensões e quantidades discretas, mas que
existem como outra alma do mundo, da qual a nossa alma particular é intima e
aparentada¹. Isso explicaria que, em primeiro e eminente lugar, no estudo da
natureza, teríamos as qualidades secundárias como um comércio espiritual entre
nossa alma cognoscente que relembra e a alma do mundo, para em seguida explicar
a relação rasteira da nossa percepção com o substrato energético do mundo
material². Mundo este que passaria a ser uma abstração e uma decupagem do mundo
primeiro e naturalíssimo que existe tal como se nos apresenta: esse texto, essa
varanda, esse luar, aquele busto do filósofo estagirita na vitrine do
antiquário..
1. Por esse caminho, podemos investigar uma via de conciliação e paridade entre a ciência e a religiosidade, tema tão caro e tão frustrante até hoje especulado por gnósticos de ocasião!
2. Aristóteles já havia prenunciado esse acordo ao atribuir um estatuto espiritual ao Intelecto Agente, princípio que responde tanto pela concepção dos nossos conceitos quanto pelas formalidades que organiza a matéria. Kant, aquela vagina ambulante, iria depois introjetar esse princípio no âmbito da razão apenas, não mais do Ser em sua totalidade.
A lenta ruína da física aristotélica, onde as qualidades da matéria explicavam suas leis, começou nos úmidos castelos ingleses, quando John Locke dividiu o ser sensível em Qualidades primárias e Qualidades secundárias. As primeiras, abstratas e depuradas, como Forma, Dimensões, Densidades, Peso, etc.. era tudo aquilo que podia ser matematicamente traduzido e quantificado, era o estofo substancial das coisas e existiam enquanto realidades objetivas. As qualidades Secundárias, cores, sabores, temperaturas, tudo que fosse tributário e caudatário dos nossos sentidos, eram considerados “qualia”, produtos da interação de nossa mente com os objetos da experiência e gozavam de uma existência vicária da mente e das primeiras qualidades substanciais. Esse esquema consolidou-se no bojo vitorioso da ciência ocidental e hoje se tornou um lugar comum afirmar que o mundo é feito de energias, vibrações, emaranhados quânticos e turbilhões ondulatórios em perpétuo estado de “Mens Momentânea”; as qualidades do mundo, compostas por esses pacotes de energia misturadas aos padrões sensoriais da nossa mente, ganham cada dia mais relatividade e são tratadas como um bolor psíquico, quando abordadas pela ciência. Curioso então é como essa fratura materialista culmina por fortalecer o realismo ingênuo que ele pretendia combater, isto é, a crença aristotélica de ser o mundo verdadeiro tal como ele nos apresenta. Isso ocorre por um atalho onde, expulsa pela ciência matemática, as sensações encontram asilo na memória que as retém e as guarda por anos e décadas. Quem não é capaz de lembrar centenas de experiências vividas há décadas passadas, como o primeiro voo de avião, a primeira colher de iogurte ou da lua cheia que brilhava sobre a cama nas férias, na fazenda do vovô? E, no entanto, nada disso, se reduzido à suas qualidades primárias, suas ondulações físicas e seus recortes espaciais, teria existência ontológica e verdadeira, seria apenas constructos mentais! Ora, sendo estas sensações apenas um efeito da experiência cerebral, não tendo existência material “em si”, como poderiam elas ser preservadas na memória? Como pode a memória preservar estados da consciência se esses estados só existem em contato com sua outra banda, as vibrações outrora experimentadas, ausentes no momento em que os relembro? Imaginar que os estados de consciência vividos possam ser traduzidos em registros químicos e guardados no cérebro é supor que eles podem ter suas próprias qualidades primárias, isto é, que possam existir em si mesmas, aquele perfume, aquela valsa de formatura, aquele beijo com sabor de sorvete na primeira namorada! Pois que continuam existindo quando delas eu não estiver recordando. Para evitar essa petição de princípio, atribuir uma realidade objetiva às lembranças que foram decalcadas de algo que não existia senão na relação do cérebro com o mundo sensível, é preciso conceder à memória uma dimensão absolutamente não material, uma força do espírito e, através dessa força do espírito, dessa nossa alma liberta da matéria, explicar com ela a percepção das qualidades segundas do mundo, das cores e tonalidades sentimentais, dos aromas e carícias sensuais, de tudo que realmente não seja apenas número, dimensões e quantidades discretas, mas que existem como outra alma do mundo, da qual a nossa alma particular é intima e aparentada¹. Isso explicaria que, em primeiro e eminente lugar, no estudo da natureza, teríamos as qualidades secundárias como um comércio espiritual entre nossa alma cognoscente que relembra e a alma do mundo, para em seguida explicar a relação rasteira da nossa percepção com o substrato energético do mundo material². Mundo este que passaria a ser uma abstração e uma decupagem do mundo primeiro e naturalíssimo que existe tal como se nos apresenta: esse texto, essa varanda, esse luar, aquele busto do filósofo estagirita na vitrine do antiquário..
1. Por esse caminho, podemos investigar uma via de conciliação e paridade entre a ciência e a religiosidade, tema tão caro e tão frustrante até hoje especulado por gnósticos de ocasião!
2. Aristóteles já havia prenunciado esse acordo ao atribuir um estatuto espiritual ao Intelecto Agente, princípio que responde tanto pela concepção dos nossos conceitos quanto pelas formalidades que organiza a matéria. Kant, aquela vagina ambulante, iria depois introjetar esse princípio no âmbito da razão apenas, não mais do Ser em sua totalidade.
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